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O princípio constitucional da gestão democrática e seus reflexos

Capítulo II – Faces e fases da gestão democrática da educação pública no Brasil e em

1. O contexto brasileiro

1.1 O princípio constitucional da gestão democrática e seus reflexos

Expresso no inciso VI do art. 206 desde a redação original da Constituição da República de 1988, ao princípio da gestão democrática do ensino público não sucedeu qualquer emenda modificando seus termos, que previam um formato posterior a ser desenhado em lei. Mas não basta erigir um reclamo público a princípio constitucional para alterar uma realidade, é preciso que ele tenha sido construído em bases sólidas, que permitam não só acreditar na sua concretização como demandá-la.

É frágil um princípio, ainda que coberto de juridicidade, acaso se nutra simplesmente da esperança de que novas regras automaticamente erradiquem antigas patologias, mormente acaso esta esperança se resuma, nas palavras de Freire (2016:15), em “pura espera”. O jurista-educador brasileiro realça que “precisamos da esperança crítica” (idem).

É com essa postura que refletimos sobre em que medida a necessidade e a importância da participação ampliada nas decisões no âmbito educativo já estavam socialmente sedimentadas como convicções, antes de alçadas a princípio constitucional no Brasil.

A gestão democrática da educação teria sido um clamor temporário por abertura participativa em circunstâncias de interpelação política de um regime centralizador?

Para alargar a compreensão sobre seus antecedentes mais remotos fizemos uma digressão em mais de oito décadas.

No ano de 1932, Anísio Teixeira e outros vinte e quatro intelectuais brasileiros subscreveram o texto que ficou conhecido como Manifesto dos Pioneiros da Educação

Nova, a qual teve indicado por seu fundamento o “princípio da vinculação da escola com o

meio social, tem o seu ideal condicionado pela vida social atual, mas profundamente humano, de solidariedade, de serviço social e cooperação”. Foram incisivas as referências

36 do Manifesto sobre a necessidade de que a escola pública do Brasil se tornasse democrática, a começar pela sua abertura a todos os públicos por meio da gratuidade e pela renovação dos seus métodos de ensino.

No final do referido documento o tópico “A democracia, um programa de longos deveres” reconhece as profundas dificuldades da consolidação de uma democracia sem uma educação que a construa.

Se por um lado o Manifesto nos mostra que a democracia na educação não tratou propriamente de uma demanda com origem popular no Brasil, por outro evidencia que este pleito não é novo e que a conquista de vê-lo atualmente consagrado na maior lei do país foi um processo longo e perseverante, que indica ser fruto de uma aspiração concreta.

O caráter utópico dessa aspiração foi interpelado por Paro (1987), ao postular diretamente ao Congresso Nacional Constituinte a inserção de medidas e princípios que viabilizassem a participação ampliada na vida da escola na lei maior que então estava sendo elaborada. E verdade é que hoje, finalmente, temos o princípio constitucional da gestão democrática do ensino público.

Vale, no entanto, o alerta de Peroni (2008) no sentido de que “avançamos nas propostas de direito à educação e de gestão democrática, mas no mesmo período o mundo já vivia uma crise do capitalismo, e suas estratégias de superação (...) redefiniam o papel do Estado para com as políticas sociais (...)”. Isso quer dizer que chegamos tarde no processo de democratização, na verdade quando ele já sofria involuções, e além disso o que para nós poderia parecer o final de uma jornada, era apenas o início das trilhas legislativa e, principalmente, experiencial.

O percurso do princípio constitucional para as leis e/ou para as práticas (inverso ao português, portanto) tem-se apresentado mais tortuoso.

Não há por exemplo, até ao momento, norma de âmbito nacional no Brasil que disponha sobre as possíveis formas de reconhecimento e os contornos da autonomia escolar pelos sistemas de ensino. Esta circunstância, no entanto, além de consentânea com o princípio federativo, poderá(ia) vir a não ser de todo negativa, como temos visto ao estudarmos a situação portuguesa na matéria. Em Portugal a excessiva e minuciosa normatização nacional no assunto (mas curiosamente fora da Lei de Bases do Sistema Educativo) parece estar a produzir o efeito inverso, de intrusão heterônoma na vida das escolas.

A atual LDB, em vigor desde o ano de 1996 no Brasil, enunciou no art. 3º, VIII que o formato da gestão democrática seria não somente ali estabelecido, como também pela

37 legislação dos sistemas de ensino. No art. 14 definiu dois princípios que os sistemas precisariam respeitar na matéria: participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola e participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.

No que toca especificamente à autonomia escolar, a LDB brasileira previu no art. 15 que: “Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro público”.

Ao mencionar sistemas de ensino no plural o legislador refere-se aos estaduais, distrital e municipais, já que no Brasil, diferentemente de Portugal, vige o pacto federativo. Cada ente do pacto teria então autonomia em relação à União para organizar seu próprio sistema educativo e, através deste, proporcionar às escolas os aludidos graus de autonomia. Essa é uma escolha condizente com as dimensões territoriais do Brasil e que seria bastante positiva para uma construção que preservasse as peculiaridades locais, porém de lá para cá quase nada se viu sobre autonomia escolar.

O que se assistiu foi, primeiro, a uma longa demora dos entes federativos em estruturar seus sistemas educativos e, segundo, na esmagadora maioria dos casos, a uma inércia mesmo no trato da autonomia das escolas, pelo menos até a edição do último Plano Nacional de Educação-PNE.

Mais uma vez pareceu estar presente o arraigado costume de expectar que uma legislação prospectiva opere as mudanças, tão característico da sociedade brasileira.

Estabelecido então pela Lei Federal nº 13.005, em junho do ano de 2014, o novo plano reacendeu o tema da gestão democrática ao encampar a sua promoção como diretriz (art. 2º, VI) e em função do teor de sua meta nº 19, onde dispôs que no prazo de dois anos era preciso assegurar condições para a efetivação da gestão democrática da educação.

Prosseguiu a referida legislação prevendo recursos e apoio técnico da União para a empreitada e, já na estratégia 19.7, o favorecimento de processos de autonomia pedagógica, administrativa e de gestão financeira nos estabelecimentos de ensino.

Outro ponto muito importante do Plano Nacional de Educação em vigência no Brasil diz respeito ao preconizado em seu art. 9º.

Tal dispositivo fixou prazo até junho de 2016 para que Estados, Distrito Federal e Municípios aprovassem (ou adequassem) suas leis específicas sobre a gestão democrática da educação pública para os respectivos sistemas de ensino. Reforçou, portanto, o dever já

38 previsto desde 1996 no art. 14 da LDB, agora com a indicação de um termo final para o seu cumprimento.

Veja-se que esta é uma obrigação diversa da prevista no art. 8º do PNE, que se referiu à elaboração ou adequação, por cada ente federativo, dos seus respectivos planos de educação, à luz das novas diretrizes.6 Em relação ao atendimento deste art. 8º, os dados disponíveis no sítio eletrônico do Ministério da Educação informam que 2, dos 26 Estados, não possuem plano de educação (Minas Gerais e Rio de Janeiro).7

No que se refere aos planos de educação dos Municípios, a organização Educação Integral publicou, em 09 de abril de 2015, o mapa abaixo, a demonstrar que, até àquela altura, apenas 1,2% das 5.570 cidades brasileiras contavam com plano de educação atualizado:

Mapa nº 1 - Situação da elaboração dos planos municipais de educação no Brasil.

Fonte: http://educacaointegral.org.br/reportagens/mesmo-prazo-perto-fim-apenas-35-dos- municipios-ja-tem-novo-pme/

O Observatório do Plano Nacional de Educação aponta a meta 19 como a mais difícil de ser acompanhada por dados estatísticos e esclarece que, quanto ao disposto no art. 9º, do PNE, voltado às leis específicas para a efetivação da gestão democrática, não há elementos disponíveis que permitam, por exemplo, demonstrar o percentual, entre todos os entes da federação, daqueles que o cumpriram.8

6 Art. 8º (caput): Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão elaborar seus correspondentes planos de educação, ou adequar os planos já aprovados em lei, em consonância com as diretrizes, metas e estratégias previstas neste PNE, no prazo de 1 (um) ano contado da publicação desta Lei.

7http://pne.mec.gov.br/planos-de-educacao/situacao-dos-planos-de-educacao (Consulta realizada em 29.08.2018). 8http://www.observatoriodopne.org.br/metas-pne/19-gestao-democratica

39 Na esfera estadual, Souza & Pires (2018) realizaram pesquisa que identificou 11, dentre os 26 Estados, além do Distrito Federal, que atenderam ao disposto no art. 9º do PNE com a elaboração de suas leis específicas sobre gestão democrática. Os referidos autores apontaram, por outro lado, que dentre essas 11 encontradas, somente 2 leis (Rio Grande do Sul e Distrito Federal) abordaram a gestão democrática do sistema de ensino como um todo, cingindo-se as demais ao âmbito das escolas.

O princípio constitucional da gestão democrática é amplo e deve se irradiar em múltiplas dimensões, das escolas para os sistemas, dos sistemas para as escolas.

Seus fundamentos residem na busca por uma educação que promova a equidade, a inclusão, a justiça no acesso e no sucesso escolar. Sabemos que a elaboração das mencionadas leis é apenas um primeiro passo neste percurso, que será tão mais profícuo quanto maior for a legitimidade do seu processo de elaboração.

Daí a necessidade de que assuma a forma de construção coletiva e mobilizadora, que envolva a participação social nas conferências, nos fóruns e nos diversos conselhos legalmente previstos no Brasil para a sua implementação, começando para tanto com o primeiro passo na base do processo decisório-educativo local, o da autonomia das escolas.

É nessa esteira o realce de Berclaz (2013:57) no sentido de que “no atual cenário de crise do paradigma democrático mostra-se fundamental combinar a proposta vigente de democracia representativa com o exercício de uma democracia participativo-deliberativa capaz de expressar-se localmente”.

O Ministério Público brasileiro tem, como instituição à qual a Constituição da República conferiu a responsabilidade da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (at. 127, CRFB), importante papel na reivindicação - inclusive judicial se necessário - do princípio da gestão democrática da educação, especialmente em razão do princípio que lhe assegura a independência funcional em relação aos órgãos governamentais.