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Processos de autogoverno das escolas: da realidade à legalidade

Capítulo II – Faces e fases da gestão democrática da educação pública no Brasil e em

2. O contexto português

2.1 Processos de autogoverno das escolas: da realidade à legalidade

O histórico português na experimentação da autonomia escolar há mais de quatro décadas chamou-nos a atenção para esta pesquisa porque se originou em práticas anteriores às previsões legais sobre o assunto. Em um percurso tipicamente construtivo, foram os fatos que ensejaram as leis.

Diferentemente do Brasil, em Portugal a democracia na educação esteve frequentemente associada, ao menos desde os anos 80 do século XX, a processos de autogoverno das instituições de ensino. As raízes desta reivindicação nas escolas em Portugal são extrajurídicas e não só antecederam como propiciaram o alcance de uma roupagem constitucional para o tema.

A este propósito Lima (2006, 2014:1069) deixa claro o papel fundamental da eclosão revolucionária de 1974 para a efetiva vivência da autonomia escolar no Portugal daquela época, com práticas de autogoverno que configuraram o que denominou de “autonomia de

facto”16. Foi nessa época que a autonomia começou a ser efetivamente praticada, ampliando- se o protagonismo dos atores escolares nos diversos processos decisórios educativos por meio de mecanismos como o das assembleias e o da substituição da unipessoalidade pela colegialidade nos órgãos diretivos.

Esse período puramente experiencial, de profusão de práticas de autogestão nas organizações escolares, cunhado também por Lima (2011:59) de “primeira edição da gestão democrática” foi, no entanto, curto, pois, como esclarece o autor (idem: 18), não tardou a vir a normatização pelo I Governo Provisório de 1974, através do DL 221.

As normas que se seguiram adotaram frequentemente a forma de decretos-leis, tipo de ato normativo que é muito usual em Portugal. Tais decretos possuem o mesmo valor das leis (art. 112º, 2., CRP) mas possuem uma tramitação mais célere e menos colegial que a destas, porque são apresentados diretamente pelo Governo e submetem-se à Assembleia da República apenas excepcionalmente, para o exercício da sua função fiscalizatória (artigos 162º, c) e 169º, 1., da CRP). As políticas educativas em Portugal até hoje são preponderantemente legisladas por decretos-leis, como se verá ao longo deste trabalho.

Na ocasião de que agora se trata, ainda em sede de governo provisório e antes mesmo de ser formulado o processo de escolha democrática dos órgãos de gestão dos

50 estabelecimentos de ensino, o DL nº 221, de 27 de maio de 1974, dispôs que a direção dos estabelecimentos de ensino poderia ser confiada pelo Ministro da Educação e Cultura a comissões democraticamente eleitas ou a eleger depois de 25 de Abril de 1974.

Publicado, em 21 de dezembro do mesmo ano, do DL nº 735-A, com o desígnio de regular os órgãos de gestão dos estabelecimentos oficiais dos ensinos preparatório e secundário e de ali criar estruturas democráticas, assegurava, como mencionado em seu preâmbulo “a adequada representação dos docentes, discentes e funcionários administrativos e auxiliares”. Iniciava-se a “segunda edição da gestão democrática das escolas” (Lima, 2011:60) e, em caráter experimental, a vigorar durante o ano escolar de 1974-1975, foram regulados os Conselhos diretivo, pedagógico e administrativo. Previu-se que sua revisão deveria ocorrer até 31 de agosto de 1975, mas isso não aconteceu.

Do que então foi nomeado de “vazio legal” pelo preâmbulo do Decreto-Lei que lhe sucedeu, o de nº 769-A, de 1976, teria resultado o que ali foi chamado de “prejuízos incalculáveis”. Mencionando que “a disciplina indispensável para garantir o funcionamento de qualquer sistema educativo” havia ruído, o ato normativo de 1976 alvitrou “separar a demagogia da democracia”.

(Re)estabeleceu a regulamentação da gestão das escolas mantendo os mesmos órgãos colegiados previstos no DL 735-A/74, mas realçou a necessidade de “atribuição de responsabilidades” e incluiu uma pormenorizada disciplina das correspondentes eleições com 16 artigos. O DL 769-A/76 também conferiu ao Ministro da Educação, “no caso de grave infração às disposições legais”, o poder de destituir o conselho diretivo e nomear representação sua até a tomada de posse dos novos eleitos (art. 54º).

Embora tenham surgido em meio às práticas de autogoverno das escolas, esses primeiros decretos não se referiram à autonomia escolar, como o fizeram os que vieram na década seguinte. Nesse momento eram os aspectos relativos à democracia, às eleições e à participação dos integrantes da comunidade educativa que mais surgiam nos atos normativos. A complexidade fática da pluralidade de iniciativas escolares foi vista como subversiva a regras (tomadas por) implícitas, motivo pelo qual cuidou-se de logo a seguir explicitarem-se normas, o que acabou por demarcar limites e (re)injetar uniformidade a uma atuação escolar que vinha ganhando corpo em territórios periféricos e de forma mais livre (Lima, 2011).

Os significativos registros de vivência democrática no governo das escolas portuguesas antecedentes a uma emolduração constitucional e/ou legislativa que a tivesse

51 prescrito, indicam que as regras do direito vieram, como diria Barroso (2006:79), para a “atribuição de efeitos jurídicos aos fatos da vida”.

Desde a designada “legalização retrospectiva” (Lima, 2011:58) até os dias de hoje foram expedidos muitos outros atos normativos que abordam, direta ou indiretamente, o assunto da gestão democrática e da autonomia escolar, sendo de se destacar a Lei de Bases do Sistema Educativo e os Decretos-Leis nºs 43/89, 115-A/98 e 75/08, este modificado pelo DL 137/12.

O gerir democraticamente o ensino fincou-se na Constituição da República Portuguesa como princípio a partir da revisão operada pela Lei Constitucional nº 1 de 1982 e a absorção do propósito de democracia na gestão das escolas pelo mundo jurídico, com o

plus da sua alocação no topo hierárquico-normativo, espelham o valor que lhe foi atribuído

pelo poder constituinte da época.

As perguntas que nos surgiram diante desse cenário foram quais os efeitos jurídicos que se pretendeu atribuir, e a que fatos, através de uma visibilidade desta monta e com a atribuição de potência normativa em seu calibre máximo à gestão democrática da educação.

O próximo item cuidará da primeira etapa desta nova fase legislativa sobre autonomia escolar, que decorreu até o final da década 90 em Portugal.

2.2 Os desenhos legislativos da autonomia escolar portuguesa dos anos 80 e 90