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O princípio do interesse superior da criança aplicado à criança refugiada

2. OS DIREITOS DAS CRIANÇAS REFUGIADAS

2.5 O princípio do interesse superior da criança aplicado à criança refugiada

O princípio do interesse superior da criança, alçado a princípio fundamental na Convenção sobre os Direitos da Criança de 1990, tem sua origem “no instituto do

parens patriae que, na Inglaterra do século XIV, já se aplicava para a proteção dos

indivíduos que eram tidos como incapazes, além da proteção de suas propriedades caso as possuíssem. A responsabilidade era, inicialmente, da Coroa, mas, posteriormente, foi delegada ao Chanceler274.”

O instituto do parens patriae é definido, conforme Griffith, como “a autoridade herdada pelo Estado para atuar como guardião de um indivíduo com uma limitação

270 Cf. A.A. Cançado Trindade, Desafios e conquistas …ob. cit p. 424, in e.g., F. Crépeau, Droit d'asile

- De l'hospitalité aux contrôles migratoires, Bruxelles, Bruylant, 1995, pp. 17-353. Como observa o autor, "depuis 1951, avec le développement du droit international humanitaire et du droit international

des droits de l'homme, on avait pu croire que la communauté internationale se dirigeait vers une conception plus `humanitaire' de la protection des réfugiés, vers une prise en compte plus poussée des besoins des individus réfugiés et vers une limitation croissante des prérrogatives étatiques que pourraient contrecarrer la protection des réfugiés, en somme vers la proclamation d'en `droit d'asile' dépassant le simple droit de l'asile actuel" (p. 306). Lamentavelmente, com o incremento dos fluxos

migratórios contemporâneos, a noção de asilo volta a ser entendida de modo restritivo e a partir do prisma da soberania estatal: a decisão de conceder ou não o asilo passa a ser efetuada em função dos "objectifs de blocage des flux d'immigration indésirable" (p. 311). - Para outro estudo recente a respeito, cf. Ph. Ségur, La crise du droit d'asile, Paris, PUF, 1998, pp. 5-174.

271 Para um debate recente, cf. J. Allain, "The Jus Cogens Nature of Non-Refoulement", p. 13 International Journal of Refugee Law (2002) pp. 533-558.

272 Daí as necessidades crescentes de proteção dos refugiados, dos deslocados e migrantes, neste

início do século XXI, o que requer uma solidariedade em escala mundial; S. Ogata, Challenges...,

op.cit., supra n.º (49), pp. 7-9; S. Ogata, Los Retos..., op.cit., supra n. (49), p. 11.

273 Cf. A.A. Cançado Trindade, International Law for Humankind: Towards a New Jus Gentium - General Course on Public International Law - Part I, 316 Recueil des Cours de l'Académie de Droit International de la Haye (2005) pp. 31-439; A.A. Cançado Trindade, International Law for Humankind: Towards a New Jus Gentium -General Course on Public International Law - Part II, p. 317. Recueil des Cours de l'Académie de Droit International de la Haye (2005) pp. 19-312.

274 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do Direito de Família. 1 ed.

jurídica275”, portanto, o Estado inglês, através do seu representante legal, assume o

dever de “proteger todas as crianças, assim como os loucos e débeis, ou seja, todas as pessoas que não possuíam discernimento para administrar os próprios interesses276.”

As Cortes de Chancelaria inglesas, no século XVIII, estabeleceram a distinção das atribuições do instituto do parens patriae de proteção à infância das de proteção aos loucos e débeis. Griffith apresenta dois importantes julgados de 1763, do Direito consuetudinário inglês, como os marcos iniciais da primazia do interesse superior da criança. Em 1836, no séc. XIX, o princípio da primazia do interesse superior da criança produz efeitos jurídicos no Direito inglês, conforme leciona Griffith (1991)277:

[...], referindo-se às origens históricas do referido instituto, reporta-se ao caso Finlay v. Finlay, julgado pelo Juiz CARDOZO, em que ficou ressalvado que, ao exercitar o parens patriae, a preocupação não deveria ser a controvérsia entre as partes adversas e nem mesmo tentar compor a diferença entre elas. “O bem-estar da criança deveria se sobrepor aos direitos de cada um dos pais”. [...]. Somente em 1836, porém, este princípio tornou-se efetivo na Inglaterra. (GRIFFITH, 1991 apud PEREIRA, 2008, p. 2)

A Declaração de Genebra, de 1924, foi a precursora quanto à necessidade, internacionalmente, de se elaborar políticas e legislação específica referente aos cuidados relativos à criança. Os doutrinadores Steiner e Alston lecionam, por sua vez, o seguinte278:

A primeira menção a “direitos da criança” como tais em um texto reconhecido internacionalmente data de 1924, quando a Assembleia da Liga das Nações aprovou uma resolução endossando a Declaração dos Direitos da Criança, promulgada no ano anterior pelo Conselho da Organização Não Governamental “Save the children International Union”. Em 1959, a Assembleia Geral das Nações Unidas promulgava a Declaração dos Direitos da Criança, cujo texto iria impulsionar a elaboração da Convenção.

275 GRIFFITH, 1991 apud PEREIRA, Tânia da Silva. O Princípio do “melhor interesse da criança”: da

teoria à prática. Consulta em: 26.02.2015.

www.gontijo.familia.adv.br/2008/artigos_pdf/tania_da_silva_pereira/melhorinteresse.pdf. p. 2 e seguintes.

276 PEREIRA, Tânia da Silva. O Princípio do “melhor interesse da criança”: da teoria à prática.

Consulta em: 26.03.2015.

www.gontijo.familia.adv.br/2008/artigos_pdf/tania_da_silva_pereira/melhorinteresse.pdf. p. 2 e seguintes.

277 Cf. Idem, ibidem.

A Convenção sobre os Direitos da Criança de 1990, mais importante literatura jurídica, reconheceu a criança como sujeito autónomo de direito, como também titular de direitos humanos fundamentais, quais sejam: os direitos comuns a todo o ser humano e os direitos específicos inerentes às suas necessidades enquanto criança279.

A Convenção sobre os Direitos da Criança de 1990 erigiu, como critério das decisões judiciais e administrativas que afetam a vida da criança, o consagrado princípio do interesse superior da criança a ser adotado pelas instituições dos Estados Membros. Aludido princípio encontra-se na Convenção sobre os Direitos da Criança de 1990 com a seguinte redação:

1. Todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança. 2. Os Estados Partes comprometem-se a garantir à criança a proteção e os cuidados necessários ao seu bem-estar, tendo em conta os direitos e deveres dos pais, representantes legais ou outras pessoas que a tenham legalmente a seu cargo e, para este efeito, tomam todas as medidas legislativas e administrativas adequadas. 3. Os Estados-Partes garantem que o funcionamento de instituições, serviços e estabelecimentos que têm crianças a seu cargo e asseguram que a sua proteção seja conforme às normas fixadas pelas autoridades competentes, nomeadamente nos domínios da segurança e saúde, relativamente ao número e qualificação do seu pessoal, bem como quanto à existência de uma adequada fiscalização.

A noção de pessoa humana como um ser em relação aos outros traz novas perspectivas ao pensamento jurídico com reflexos na noção basilar de “interesse da criança”. “Este conceito possui um caráter apelativo e um valor retórico, aparentemente consensual. Na prática processual, assume contornos distintos consoante a mentalidade e a sensibilidade do juiz280. O “interesse da criança”

constitui um conceito vago e genérico utilizado pelo legislador, por permitir ao juiz alguma discricionariedade, bom senso e alguma criatividade, cujo conteúdo deve ser apurado no exame do caso concreto281.

279 AURORA FONSECA, A Convenção dos Direitos da Criança e a legislação portuguesa, Civitas, pp.

8-9.

280 SOTTOMAYOR, Maria Clara. Temas de Direito das Crianças, Junho de 2014. Edições Almedina

S.A. pp. 313 e seguintes.

281 SOTTOMAYOR, Maria Clara. Regulação do Exercício do Poder Paternal nos Casos de Divórcio. 2

O interesse superior da criança, como conceito indeterminado, permite abrir a porta às convicções pessoais e aos preconceitos dos juízes, gerando um fenómeno de discricionariedade judicial versus democratização da função judiciária. Apreciações divergentes sobre a natureza conceitual de interesse da criança põem em causa a segurança jurídica e o direito à igualdade, valor essencial do Estado de Direito, que exige tratamento idêntico de situações semelhantes.

Todavia, aludido princípio só pode definir-se através de uma perspetiva sistemática e interdisciplinar, mas que nunca pode deixar de ponderar o grau de desenvolvimento sócio psicológico da criança, já que o processo de desenvolvimento é uma sucessão de estágios, com características e necessidades próprias282.

Uma das características, constantes na alínea i), art. 84, do reconhecimento do superior interesse da criança é o seu direito de ser ouvido e a ser tida em consideração a sua opinião, conferindo-lhe a possibilidade de participar nas decisões que lhe dizem respeito, com a sua autonomia e identidades próprias. Constituem bens e interesses da criança refugiada a vida, a sobrevivência, a integridade física e psíquica e a liberdade física e ideológica.

O Direito da Criança tem evoluído, sendo a tendência moderna a de abandonar a ideia negativa de incapacidade de exercício para a substituir pela capacidade natural da criança, conforme a sua capacidade para atos relacionados com sua vida pessoal e afetiva. O novo panorama jurídico concebe a criança refugiada como sujeito de direitos. Os Tribunais devem adaptar-se a este novo panorama e proteger a criança refugiada, sendo esta a única forma de atenderem ao seu superior interesse. Destaque-se que uma criança refugiada é uma pessoa com a mesma dignidade e direitos dos adultos283.

282 ALMIRO, Rodrigues. Interesse do menor, contributo para uma definição. Revista Infância e

Juventude, n.º 1, 1985, pp. 18-19.

283 SOTTOMAYOR, Maria Clara. Temas de Direito das Crianças, Junho de 2014. Edições Almedina

Capítulo 3

A Proteção Internacional dos Direitos das Crianças Refugiadas