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O Processo Administrativo como Instrumento de Garantia do Estado Democrático de

Um Estado que se fundamenta na ordem constitucional assegura aos indivíduos uma série de direitos de índole humanitária que refletem, em maior ou menor grau, históricas e evolutivas conquistas de cidadania.

Essas conquistas não foram reconhecidas a uma só vez, mas após disputas históricas da luta de classes e das ameaças de ruptura com a ordem existente. O desenvolvimento de novas concepções de direito, de justiça e de compenetração nas necessidades dos indivíduos serviram de base para a evolução para um Estado Democrático de Direito.

Consolidaram-se, assim, as ideias de defesa, devido processo legal e efetiva participação do cidadão nas decisões administrativas como alicerces de qualquer ordem jurídica democrática.

Durante um bom tempo o processo disciplinar foi a base quase solitária das preocupações dos administrativistas com o assunto. A partir de 1966, com o surgimento do Código Tributário Nacional, o tema foi alavancado no campo tributário, ganhando fôlego com

o contencioso administrativo fiscal (Decreto Federal n. 70.235, de 06/03/1972), as normas do Conselho de Contribuintes da União (Lei n. 8.451, de 23/12/1992) e do processo de consulta (Lei Federal n. 9.430/96) 22.

A visão restritiva com que se verificava a presença ou não de um processo abriu caminho para comportamentos administrativos violadores dos princípios constitucionais processuais, notadamente o direito ao contraditório, à ampla defesa, à motivação das decisões e ao duplo grau de conhecimento.

A inexistência de forma era a regra dos atos administrativos que repercutiam no campo dos interesses individuais.

Por muito e muito tempo o termo processo foi associado à função jurisdicional, não se cogitando sua utilização na via administrativa.

Foi somente a partir da década de 50 que processualistas e administrativistas convergiram para a ideia de processo ligado ao exercício do poder estatal.

A ideia da utilização do processo nas relações entre Administração e cidadãos simboliza a dinâmica de um rito composto por uma série de atos que culminam numa decisão final.

Odete Medauar vê a processualidade como uma expressão do vir a ser de um fenômeno, onde existe um período de dinâmica, em que atuações evoluem. E complementa: a figura jurídica do processo é distinta da figura do ato, mas ambas guardam correlação, como instrumentalidade da primeira em relação ao segundo23.

Assim, por meio dessa afirmação pode-se concluir que o processo é o instrumento utilizado para dar corpo a uma série de atos coordenados que culminam em uma decisão final.

22 SUNDFELD, Carlos Ari. Processo e Procedimento Administrativo no Brasil. In: ______; MUNÕZ,

Guillermo Andrés (Coord.). As Leis de Processo Administrativo: lei federal 9.784/99 e lei paulista 10.177/98, p. 22.

O esquema processual abrange todos os atos vinculados à elaboração do ato final. Embora dotados de vida própria, os atos da série processual encontram sua razão de ser na decisão final. No entanto, esse vínculo teleológico a um resultado unitário não elimina a relevância dos atos parciais, sobretudo no tocante à garantia de direitos e ao seu papel de oferecer condições para uma decisão correta.

A superação do sistema político autoritário-militarista implantado no país em 1964 exigiu a elaboração de uma nova Constituição, a qual foi promulgada em 05 de outubro de 1988.

O retorno à democracia, sob o influxo de uma nova Constituição, apresentou um reflexo imediato no tocante ao direito público brasileiro, que foi amplamente revitalizado.

No entanto, foi somente em 29 de janeiro de 1999, que foi editada a Lei Geral do Processo Administrativo, a qual teve como condão atender aos interesses das duas pontas da relação jurídico-administrativa. Do lado do administrador, ela serviu para dotar as decisões de maior racionalidade e, portanto, maior eficiência. Já em relação ao cidadão, permitiu um maior controle tanto da legalidade quanto do mérito da ação administrativa, imprimindo acentuada transparência, facilitando significativamente a defesa de direitos perante o Poder Público.

Dessa forma, é facilmente perceptível a vinculação entre essas inovações legislativas e o alcance dos ideais democráticos no Brasil, bem como lhes atribuir a condição de consectários dos programas de qualidade na Administração Pública.

No Estado Democrático-Social, com maior ou menor amplitude, participa o Poder Público ativamente da vida social, acarretando, com isso, o crescimento exponencial das demandas em que as pessoas integrantes da Administração direta e indireta se situam em um dos pólos da relação, o que, à falta de condições culturais e institucionais adequadas para a solução das controvérsias na via administrativa, acaba por produzir o emperramento da máquina do Judiciário.24

24 RAMOS, Elival da Silva. A Valorização do Processo Administrativo: o poder regulamentar e a

invalidação dos atos administrativos. In: SUNDFELD, Carlos Ari. MUNÕZ, Guillermo Andrés (coords.). As Leis de Processo Administrativo: lei federal 9.784/99 e lei paulista 10.177/98, p. 80.

Portanto, potencialmente, a recente legislação sobre processo administrativo está apta a contribuir para o desafogo do Poder Judiciário e conseqüente agilização de seu atuar e, de outra parte, para emprestar maior rapidez e adequação às soluções das lides administrativas.

Segundo Canotilho, deve ser assegurado um conjunto mínimo de direitos para garantia de um procedimento administrativo justo, como

o direito de participação do particular nos procedimentos em que está interessado, a imparcialidade da Administração, o princípio da informação, o princípio da fundamentação dos atos administrativos lesivos de posições jurídicas subjetivas, o princípio da conformação do procedimento segundo os direitos fundamentais, o princípio da boa-fé (...)25.

O advento da Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999, traduz tardia sensibilidade do legislador aos reclames de segurança, liberdade e igualdade. A Lei de Processo Administrativo buscou suprir a necessidade de serem reunidas, dentro de um sistema harmônico e uniforme de normas gerais, as regras às quais devam obediência os processos administrativos.

Com a existência de uma legislação própria sobre processo administrativo, os trâmites perante a Administração Pública passaram a ser jurisdizado, pondo ordem nas gestões, dando garantia aos administrados em seu trato com a Administração Pública e submetendo a regras precisas e claras a atividade administrativa, uma vez que fixa limites a certos aspectos dessa atividade26.

Um Estado Democrático de Direito exige essencialmente que a tomada de decisões administrativas seja disciplinada de modo a assegurar respeito aos direitos individuais e a consubstanciar limitações dos poderes dos administradores públicos.

Neste contexto, as normas de processo administrativo revelam-se como instrumentos fundamentais da cidadania.

25 CANOTILLO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 72. 26 AMARAL, Ana Lúcia et al. Procedimento Administrativo: proposta para uma codificação, p. 186.