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O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DAS PERSPECTIVAS DE GÊNERO

CAPÍTULO 2. A CONDIÇÃO DA MULHER RURAL NO ESPAÇO PÚBLICO E PRIVADO

2.1 O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DAS PERSPECTIVAS DE GÊNERO

Ao evocar as mulheres, enquanto sujeito político, na atualidade dos movimentos, é necessário observar uma evolução demarcada pelos estudos acadêmicos a partir da década de 70, os quais favoreceram a emergência e consolidação da condição feminina como objeto de estudo e, que de certo modo, foram influenciados por reivindicações do movimento feminista.

Nessa fase a preocupação com a igualdade, estendeu-se das leis aos costumes e temáticas calcadas em preceitos normativos que valorizavam a vinculação da mulher ao espaço doméstico ou reprodutivo e do homem ao espaço público, produtivo passaram a ser problematizadas. Dentre os temas se destacam a posição subordinada das mulheres na sociedade, a precarização do trabalho feminino, a divisão sexual do trabalho, a violência doméstica, o controle da sexualidade, etc. O surgimento do conceito de gênero permitiu interpretações mais apuradas quanto aos papéis masculinos e femininos, além de articulações entre gênero e relações de poder (BRUSCHINI, 1998 apud OLIVEIRA, 2007).

Os dilemas e contradições entre as concepções de igualdade e diferença acerca das discussões de gênero avançaram problematizando os direitos tanto do homem como da mulher de serem iguais perante a lei. Pois, crescia a defesa da ocupação por parte da mulher no espaço público da política e como cidadã (FISCHER, 2006). A via igualitária desafiava as hierarquias entre homens e mulheres, mas, segundo a autora, ainda estaria pautada nas ideias do sujeito universal, que historicamente solapavam as diferenças em torno de um ideal masculino e europeu de indivíduo moderno.

45 Scavone (2007) considera que o diálogo de Scott com autores pós-estruturalista como Michel Foucault e Gilles Deleuze fortaleceram a crítica da existência de um sujeito universal. Ganha ênfase, ainda, uma perspectiva relacional que passa a considerar que o mundo das mulheres é parte do mundo dos homens, rejeitando assim a força interpretativa de esferas separadas. As assimetrias entre homens e mulheres e, também, entre mulheres passam a ser ponderadas. O poder começa a ser percebido de uma forma menos maniqueísta, enfraquecendo-se a perspectiva de dominação que concebe o poder de forma unilateral, pois, este se encontra em todas as esferas da vida, principalmente, nas especificidades da raça, da classe social, de opção sexual, etc.

Nesse aspecto a perspectiva de gênero amplia a compreensão das diferenças entre homens e mulheres construídas pelas práticas sociais, que muitas vezes são naturalizadas na família, na política, nas relações de trabalho, ou seja, nos espaços sociais de produção e reprodução. A compreensão das desigualdades favorece a desnaturalização das práticas sociais e despolarização do poder entre os gêneros masculino e feminino.

O debate acerca das relações de poder também é apresentado por Bourdieu (2005), por meio da condição de dominação masculina “cristalizada” em uma ordem social portadora de instrumentos simbólicos, que garantem a divisão do espaço social, naturalizando o lugar da mulher na esfera do privado (casa, trabalho reprodutivo) e do homem na esfera do público (política, trabalho produtivo). Segundo o autor, as divisões entre os sexos parecem estar na ordem do que é normal, natural, pois “[...] está objetivado nas coisas (na casa todos os cômodos são sexuados) e em todo mundo social incorporado nos corpos e nos habitus12 dos agentes, funcionando como um sistema de ação, de pensamento e percepção” (Bourdieu, 2005, p.17).

Essas diferenças construídas socialmente se estabelecem como um conjunto objetivo de referências, face às quais o conceito de gênero fornece arcabouço para a percepção da organização concreta e simbólica de toda a vida social correspondente a um estado das relações de poder. As críticas feministas a perspectiva da dominação masculina de Bourdieu dizem respeito ao pressuposto da ‘aceitação’ que as mulheres teriam com os dominantes (os homens). Segundo Bourdieu as mulheres internalizariam em seus corpos e mentes esquemas de dominação através dos habitus sexuado. Assim, elas agiriam sob o efeito da “submissão

12 Para Bourdieu, o habitus funciona como um sistema de ação e de disposições que nos leva a agir de determinada forma de acordo com a circunstância dada pelas estruturas sociais, esses arranjos são flexíveis e podem ser fortes ou fracos.

46 encantada”, reproduzindo as formas de dominação a que estão submetidas. Mas, a nosso ver, apesar de consubstanciar essa divisão de mundo pela dominação masculina, é a sua teoria sobre o campo que possibilita entender que as relações de poder estão permeadas nas estruturas que objetivam as situações e os agentes que as vivenciam, porém estes também atuam na construção da realidade social.

A crítica feita a Bourdieu se ancora no fato de que atualmente se tem observado a presença das mulheres e dos homens enquanto sujeitos propositivos em meio às esferas políticas formais e nos movimentos sociais como o negro, indígena, do campo como MST- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra-, a Via campesina (setor Brasil), o MAB, o MMTR – Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais. Tal envolvimento tem evidenciado a compreensão da dominação e com isso o desequilíbrio de poder e a forte ligação com a busca por melhoria das suas condições de vida e de trabalho, através das lutas voltadas pelo acesso à moradia, pela permanência na terra e pela garantia da segurança alimentar13. Tais lutas são conduzidas através de ações reivindicatórias que vão além do caráter econômico, englobando também, o caráter ambiental, étnico, de equidade de gênero, entre outros.

O reflexo da diversidade de sujeitos envolvidos nas ações coletivas desloca o protagonismo da classe trabalhadora e do espaço da produção. ONG’s, setores progressistas da igreja católica e setores do próprio Estado passaram a se constituir em ações coletivas em diversos campos de luta. Dentre esses movimentos destaca-se o movimento feminista14. De acordo com Oliveira (2006, p.11) “(...) As mulheres têm se juntado na maioria das vezes, para conquistar direitos negados, para emancipar-se em situações específicas e enfim para tornarem-se sujeitos ativos de suas escolhas e de suas vidas.” A expressão dessas reivindicações feministas tem ganhado força no interior de outros movimentos, surtindo efeitos na inserção de pautas de lutas diferenciadas em relação a seus companheiros homens.

Quanto a teoria do patriarcado, embora datada, serviu para evidenciar as relações de poder envolvendo a construção da identidade de homens e mulheres na sociedade. O poder do pai foi posto em análise, evidenciando-se seu lastro com o direito à propriedade de bens e

13

Ver Gohn (2007) e (2010).

14 De acordo com Gohn (2010, p. 90) o movimento feminista é diferenciado do movimento das mulheres. As feministas estão envolvidas em debates e na organização do campo feminista, tem influência na política, participam das coordenadorias e das políticas sociais. São centradas nas demandas de gênero, na autonomia e na responsabilidade própria de cada mulher. Já na ação coletiva das mulheres, apesar de ser mais numerosa, é quase invisível enquanto movimento das mulheres; a visibilidade social e política estão na demanda da qual são portadoras: creches, melhorias na educação, postos e equipamentos de saúde, etc. São demandas que atingem toda população, porém tem sido protagonizada pelas mulheres.

47 sobre a família. Conforme Max Weber observou, o patriarcado se apresentaria como um tipo de dominação presente em sociedades pré-capitalistas e seu legado entraria em corrosão com o processo de racionalização e burocratização, característicos do sistema capitalista. Neuma Aguiar (2000) destaca a necessidade de se evidenciar as alterações do patriarcado agrário e escravista ao longo do tempo, ainda que a associação da mulher ao espaço privado tenha permanecido. Esta situação restringe as possibilidades de acesso da mulher à cidadania.

Já as discussões que trataram da situação da mulher no mercado de trabalho destacam as diferenças salariais entre homens e mulheres explicando-as por meio das assimetrias de poder entre homens e mulheres. Segundo Aguiar (2000) a justificativa para a maior remuneração do homem seria justificada com base na responsabilidade socialmente a ele atribuída de sustento dos filhos e da esposa. No caso brasileiro Saffioti (1992) apud Aguiar (2000) apresentou as discussões de gênero acrescidas à dimensão da raça, evidenciando as decorrências da abolição da escravatura e do processo de diferenciação dos eixos urbano/industrial e nordeste/sudeste. A autora coloca que a reclusão doméstica da mulher se abranda com o avanço da cidade, mas considera que no meio rural a reclusão feminina ao ambiente doméstico ainda resiste. Assim, as autoras consideram que na sociedade capitalista as assimetrias de poder extrapolam a figura do pai e do marido, alcançando a esfera pública, na qual há a preponderância do homem nas instituições, na política e na economia.

2.2 A naturalização da dissociação entre espaço público e privado e entre trabalho

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