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3.1 PARTICULARIDADES POTIGUARES

3.1.2 O Processo de urbanização tardio

“A Cidade Nova, com suas avenidas e seus parques sombreados, é o bairro da aristocracia, a cidade artística, onde a riqueza impressiona pelo luxo e o bom gosto das construções” (DANTAS, 1998, apud SANTOS, 2000b, p. 111).

Até o início do século XX o poder público não chegou a realizar intervenções expressivas de caráter modernizador na cidade do Natal, no entanto, tanto o governo quanto à elite natalense já manifestavam o desejo de construir uma imagem moderna da cidade, baseada em exemplos europeus e americanos, inserindo-a no cenário urbano nacional, assim como uma capital deveria ser.

Dantas (1998) aponta três momentos chaves nas intervenções urbanísticas para a formação do espaço de Natal: o Plano de Cidade Nova ou Plano Polidrelli (1901 –1904), o

Plano Geral de Sistematização ou PlanoPalumbo (1929 – 1930) e o Plano Geral de Obras

do Escritório Saturnino de Brito, fomentado nos anos 30 e especializado em obras de 24 O termo “dorminhoquenta” é uma denominação utilizada por Luís da Câmara Cascudo para caracterizar o

ritmo da cidade de Natal no início do século XX.

25 Principalmente dos bairros de Petrópolis e Tirol, onde se encontra o principal acervo arquitetônico modernista

saneamento. Esse conjunto de intervenções foi responsável por tirar Natal de uma estagnação observada desde a sua fundação em 1599 e, como relata Câmara Cascudo, “transformou Natal, livrando-a do colonialismo teimoso em que vivia” (CASCUDO, 1980, p. 422). Essas ações urbanas transformaram a dinâmica urbana e a paisagem, mas também passaram, a partir da década de 20, a modificar o cotidiano das pessoas, fazendo-se estabelecer uma nova forma de relação com a cidade pela incorporação de hábitos, usos e valores mais condizentes com a nova realidade.

O Plano de Cidade Nova ou Plano Polidrelli (figura 5), por ser de autoria do agrimensor italiano de mesmo nome, constituiu-se o primeiro passo de um movimento renovador e modernizador que apontava para uma Natal em sintonia com os novos tempos da República.

Marcados pelo ideário progressista e futurista que contagiou o governo de Pedro Velho de Albuquerque Maranhão e a elite intelectual da capital. Tratava-se de um plano regulador de expansão, de caráter nitidamente contemporâneo as grids ortogonais norte- americanas e com dimensões generosas, que previa a construção de uma cidade com traçado

FIGURA 5 - Plano de Cidade Nova ou Plano Polidrelli (1901-1904). Fonte: MIRANDA, 1981

em xadrez26, diferenciando ruas e avenidas, bem diferente daquela que se encontrava entre os

limites dos bairros de Cidade Alta e da Ribeira27 e que era símbolo da antiga cidade colonial, com ruas desalinhadas e com ambiente propício às epidemias.

O bairro novo seguia o exemplo de cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, onde beleza, limpeza, ruas alinhadas e saneadas eram o símbolo de uma cidade moderna28. Cidade Nova caracterizou-se como “[...] promotor da modernização, na medida em que ampliou os limites da cidade e estabeleceu as bases para uma ocupação mais ordenada” (SOARES, 1999, p. 39), por outro lado foi responsável por transformar a sociedade, pois “[...] os modos de vida, comportamentos e hábitos da elite local foram recobertos por um verniz civilizatório” (OLIVEIRA, 1997, p. 159), o que contribuía para formar uma imagem moderna e, segundo Soares (1999) e Santos (1998), para enaltecer o caráter elitista e segregacionista atribuído ao bairro.

Na segunda gestão do governador Alberto Maranhão (1908 – 1913), e com suas ruas e quadras demarcadas desde 1904, Cidade Nova manteve um lento processo de ocupação, mesmo com a criação do bairro de Petrópolis, a abertura de mais ruas e avenidas, incluindo a avenida Oitava (atual Hermes da Fonseca), e a inauguração de novas linhas de bondes comunicando Cidade Alta, Ribeira e Cidade Nova, na altura do Aero Clube, no bairro do Tirol. No entanto, desde esse período, o novo bairro já se caracterizava por abrigar as mais exuberantes e ricas mansões de propriedade de bacharéis, coronéis e famílias ilustres da cidade que, mais tarde, haveriam de ceder lugar aos exemplares modernistas que ocupariam a área a partir dos anos 50. “A Cidade Nova, cujo plano havia sido concebido em 1901 e ampliado em 1904 pelo agrimensor Antonio Polidrelli, foi escolhida como local das residências de elite” (SANTOS, 2000, p. 38).

Somente a partir dos anos 40, com a II Guerra Mundial, é que a ocupação de Cidade Nova, agora dividida entre os bairros de Petrópolis e Tirol, “[...] foi acelerada como conseqüência de obras de infra-estrutura [...], do crescimento da população de Natal e do aumento da demanda por moradias” (SANTOS, 1998, p. 47). Mesmo assim, durante a década de 20, novas intervenções foram realizadas na área pelo então governador Omar O’Grady e

26 Segundo Santos (1998), o desenho em forma de xadrez não incuti nenhuma preocupação além de definir ruas,

avenidas e quadras e adequar-se ao terreno plano destinado à expansão da cidade, ou seja, não houve por parte de seus criadores, Jeremias Pinheiro da Câmara e Antônio Polidrelli, nenhuma intenção de seguir preceitos ou critérios urbanísticos, mesmo assim, a sua proposta de estruturação tornou-se marcante para o desenvolvimento da cidade até os dias de hoje.

27 Respectivamente os bairros de fundação e comercial da cidade neste período.

28 Em Eduardo (1998) encontram-se considerações mais aprofundadas sobre as inovações propostas para a

serviram de base para a implantação, em 1929, do Plano Geral de Sistematização (figura 6). Iniciava-se, assim, o segundo momento das ações públicas urbanísticas na cidade.

Em 1928, Mário de Andrade, grande literato brasileiro e importante personagem da manifestação paulista pela arte moderna, veio à Natal para visitar Câmara Cascudo. Em suas andanças para reconhecer a capital menciona: “Gosto de Natal demais. Com os seus 35 mil habitantes, é um encanto de cidadinha clara, moderna, cheia de ruas conhecidas encostadas na sombra de árvores formidáveis” (ONOFRE JÚNIOR, 1984, p. 99).

O Plano Geral de Sistematização traduzia o estilo das melhorias urbanísticas propostas por O’Grady, ou seja, constituía-se mais um plano de reformas do que uma proposta de ordenação urbana, embora fizesse parte da proposta do arquiteto Giácomo Palumbo, autor do projeto, a expansão da malha definida por Polidrelli com o intuito de absorver o crescimento da população para até 100 mil habitantes. O plano previa, principalmente para a área referente à Petrópolis e Tirol, a remodelação da feição das ruas, pois, até então, elas haviam sido apenas abertas e calçadas. Portanto, Palumbo propunha “[...] delimitar-lhe os canteiros, calçadas ajardinadas para o passeio e amplas avenidas, construindo a imagem de cidade moderna, de inspiração européia no desenho e americana na gestão” (DANTAS, 1998, p. 117).

Embora não tenha sido totalmente implantado, o plano de Palumbo tinha como principal objetivo ser definitivo no processo de organizar a cidade de acordo com o desenvolvimento e crescimento dos seus diversos setores; por isso mesmo, foi delineado a partir de dois instrumentos racionalizadores: o plano regulador, proposto em 1904 e o zoneamento que, atribuindo a cada parte da cidade uma função específica, acabou

FIGURA 6 - Plano de Sistematização ou Plano Palumbo (1929). Fonte: MIRANDA, 1999

denominando Cidade Nova como bairro jardim29. Além de definir a estruturação da cidade

dentro dos moldes do urbanismo mais avançado da época, o Plano de Sistematização já incluía diretrizes e intervenções que otimizavam o fluxo do automóvel, um forte signo da modernidade que firmou presença na capital a partir da exposição do mais moderno modelo Ford em 1928, na Praça Leão XII, na Ribeira. “De fato, a partir dessa época é que o automóvel entrava nas cogitações dos administradores e urbanistas, dada a preocupação que tomou conta de todos para adequar o espaço urbano às exigências do moderno” (SOARES, 1999, p. 95).

É importante mencionar que o desenvolvimento de Natal na década de 20 esteve relacionado com a movimentação do espaço aéreo natalense, favorecida pela posição geográfica da cidade. “Natal se habituou desde cedo com os aviões e hidroaviões” (CASCUDO, 1980, p. 408). Cascudo falava assim porque Natal se transformou em parada obrigatória para aviões franceses, alemães e americanos. A fundação do Aero Clube do Rio Grande do Norte (1928 – 1929) firma a importância da cidade no cenário da aviação mundial e inicia um outro capítulo da história que culmina com a transformação de Parnamirim, município vizinho a Natal, em importante base aérea americana na II Guerra Mundial, e deflagra um outro processo de desenvolvimento favorecido pelos investimentos em infra- estrutura, pela movimentação de capital e pelo crescimento populacional da cidade30. O Plano Geral de Sistematização significou uma resposta urbanística ao momento de desenvolvimento pelo qual vinha passando a cidade – a belle époque, principalmente pelo seu papel de centro aviatório internacional.

Apesar de lançar Natal para o futuro, o urbanismo praticado pelos Planos Polidrelli e de Sistematização não mantinham compromissos estreitos com os modelos de cidades modernas européias divulgadas nas primeiras décadas do século, cujo maior objetivo era estabelecer a ordem e o bem-estar social através das técnicas racionalista e funcionalista, produtos da Revolução Industrial. É somente na década de 30, com o Plano Geral de Obras do Escritório Saturnino de Brito que se abrem as portas para a plástica e a estética moderna inseridas no contexto arquitetônico local, marcado pelos atributos ecléticos e passadistas.

29 O zoning proposto pelo plano previa a divisão da cidade nos seguintes bairros: comercial, residencial, jardim,

operário e zona administrativa.

30 “Entre 1900 e 1920 a população de Natal evoluiu de 16.056 habitantes para 30.696. [...] Em 1934, a população

de Natal alcançou 40.884 habitantes. E em 1940 chegava a 55.119 [...]” (SANTOS, 1998, p. 60). Em 1950, em virtude da construção de Parnamirim Field, a base americana, a população de Natal já era de 103 mil habitantes, entre militares yankees e civis. As novas oportunidades surgidas principalmente com o crescimento da circulação de capital eram um atrativo para se estabelecer na cidade.

O Plano Geral de Obras, realizado pelo Escritório Saturnino de Brito, consistiu em um anteprojeto de melhorias urbanas, prevendo edifícios governamentais, bairros residenciais, além da implantação de uma rede de abastecimento d’água e de esgotos sanitários para a cidade [...] (DANTAS, 2000, p. 43) (figura 7).

FIGURA 7 - Plano Geral de Obras do Escritório Saturnino de Brito, década 30 Fonte: MIRANDA, 1981

Com relação às propostas arquitetônicas, pode-se dizer que o Escritório Saturnino de Brito, em funcionamento a partir de 1935, foi quem primeiro manuseou o legado modernista na cidade do Natal, mesmo que no início do plano suas obras tenham denunciado estilos remanescentes do período eclético. Na verdade, esse momento de transição verificado na década de 30 em muito se assemelha com o quadro geral da arquitetura no Brasil: um conjunto de atributos passadistas que confundiam nossas referências arquetípicas e constituíram, dessa forma, uma expressão arquitetônica que não era genuinamente brasileira. Adotar a linguagem moderna seria uma forma de dar um novo rumo à arquitetura brasileira, tornando-a identidade nacional31.

Além do Edifício Sede da Comissão de Saneamento, localizado na Ribeira, outros projetos como o da Estação Ferroviária (figura 8), do Aeroporto (figura 9) e do Centro Administrativo reforçam a idéia de inovação estética proposta pelo Escritório e, embora tais propostas nunca tenham saído do papel, elas já apresentavam uma plástica caracterizada pelos volumes geométricos - retos ou curvos - compostos de linhas puras, a assimetria, o uso de novas técnicas construtivas, como o concreto armado, e de novas implantações dos edifícios no lote, considerando parâmetros como a orientação e os recuos.

As propostas inovadoras de Saturnino de Brito se contrapõem, pelo menos no âmbito arquitetônico, ao caráter técnico atribuído às suas intervenções urbanas, caracterizadas por manter uma maior preocupação em realizar obras de infra-estrutura básica e de saneamento para garantir a salubridade da cidade, deixando, com isso, a estética em segundo plano. De

31 Atualmente o cenário arquitetônico do Brasil convive novamente com a falta de uma nova postura para a

arquitetura nacional capaz de atribuir à produção contemporânea um caráter de símbolo do país. Cavalcanti (2000) aponta a reapropriação do legado modernista como uma solução para se combater a incerteza de modelos representada por cópias do que há de pior na arquitetura americana e européia.

FIGURA 8 - Plano Geral de Obras Estação, projeto da Estação Ferroviária, década de 30. Fonte: MIRANDA, 1981

FIGURA 9 - Plano Geral de Obras, projeto do Aeroporto, década de 30.

qualquer forma, essa contribuição precursora do modernismo do Escritório Saturnino de Brito veio a ser referência, na década de 50, para os profissionais que, quebrando definitivamente com os modelos historicistas, se apropriaram dos cânones modernistas no intuito de colocar a arquitetura potiguar em sintonia com a produção nacional.

Durante esse período de intervenções, a modernização urbana significou muito mais uma busca por civilidade, pela inserção da cidade no cenário nacional com ares de capital, do que um processo fomentado pelo setor industrial – ainda muito incipiente - ou pelas demandas capitalistas e sociais. A presença americana na década de 40 viria a ser um impulso para a sociedade natalense abrir mão de costumes arraigados e, mesmo que lentamente, “acordar” para receber as novidades do 1o mundo.