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Definindo-se evento como a interação momentânea dos atores em um dado intervalo de tempo, a análise aqui realizada mapeia a sequencia de eventos ocorridos entre 1992 e 1997, assim como o desenvolvimento dos problemas, das soluções e da conjuntura política ao longo da trajetória de todo o processo. Para tal, o processo decisório sob estudo será decomposto em três fases sucessivas, cada uma delas composta por um conjunto particular de eventos.

Os eventos observados foram as reuniões das comissões especiais criadas no Congresso Nacional com a finalidade de tratar da reforma do código. Algumas foram audiências públicas em que onde diversos atores discutiram a reforma. Conforme se verá adiante, tais audiências foram significativas na produção da ideias que fundamentaram a decisão tomada. Ideias que foram em grande parte absorvidas pelos atores governamentais no Congresso. Além das audiências públicas, os documentos analisados também permitiram observar eventos em que somente os parlamentares estiveram presentes, como as reuniões para deliberar sobre emendas oferecidas aos textos.

39 Ao todo foram 34 os eventos observados, todos eles promovidos pelo Congresso Nacional. A maioria ocorreu em Brasília, havendo apenas 3 exceções, uma audiência pública em São Paulo-SP, outra no Rio de Janeiro-RJ e outra em Belo Horizonte-MG. O anexo 3 contém os eventos, a data de ocorrência e o tema abordado.

Os 34 eventos foram distribuídos nas seguintes fases: 1) tramitação na Câmara; 2) tramitação no Senado; 3) retorno à Câmara; 4) veto e sanção presidencial. Além destas três fases, foi necessário também incluir uma descrição dos antecedentes de todo o processo, pois a agenda governamental, que condiciona a agenda de decisão, foi formada antes do processo decisório analisado.

Como dito anteriormente, não foram obtidos dados que permitissem a análise sistemática dos eventos ocorridos antes da chegada da proposta ao Congresso Nacional. Contudo, a proposta que chegou à Câmara dos Deputados não veio do nada e seus antecedentes precisam ser esclarecidos. Sendo assim, faz-se necessária uma descrição dos componentes históricos da reforma do código, isto é, de como os problemas de trânsito foram historicamente definidos até aquele momento, que soluções vinham sendo adotadas e que conjunturas políticas marcaram a trajetória da administração de trânsito até a entrada do tema na agenda de decisão em 1992.

A primeira fase é composta por 14 reuniões ocorridas na Câmara dos Deputados, realizadas pela comissão especial destinada a apreciar a reforma do código de trânsito. Conforme se verá adiante, a primeira fase foi crucial na significação dos principais problemas de trânsito no Brasil, assim como no desenho administrativo para lidar com tais problemas. A segunda fase engloba 18 eventos que no conjunto correspondem à fase de tramitação do Senado Federal. Após as decisões na Câmara e conforme o processo legislativo brasileiro, o projeto de lei foi remetido ao Senado onde tramitou por quase dois anos. Depois de finalizados os trabalhos nesta última casa, o projeto de reforma do código foi devolvido à Câmara para votação. A terceira fase é composta pelos 2 últimos eventos observados no Congresso, correspondendo à tramitação final na Câmara dos Deputados. Consiste principalmente dos eventos relativos à aprovação do novo código de trânsito brasileiro. A quarta e última fase foi o veto presidencial, em que se procura verificar o papel do Presidente da República no desenho administrativo do trânsito no Brasil.

Cada uma das fases será analisada separadamente. Em cada uma delas será rastreado o desenvolvimento de três trajetórias: a interpretação do problema, das soluções e do fluxo político. Além do desenvolvimento em separado de cada fluxo, também se buscará o

40 momento de conjunção entre eles, de forma a verificar a abertura da janela de oportunidade para a mudança na administração do trânsito urbano brasileiro.

Se a sequencia dos eventos realmente é um fator importante, então se espera que o desenvolvimento dos três fluxos em cada uma das fases tenha exercido influência sobre o desenvolvimento dos mesmos fluxos nas fases subsequentes, afetando o desenvolvimento dos problemas, das soluções e da conjuntura política no sentido em que decisões precedentes influenciaram decisões subsequentes.

Assim sendo, caso a análise aqui realizada consiga demonstrar que a sequencia de acontecimentos realmente é importante para a explicação, então se poderá concluir que, durante o processo decisório sob análise, o desenvolvimento dos problemas de trânsito, suas soluções e a conjuntura política subjacente são histórico-dependentes.

41 3 ATORES

Os dados obtidos apontam que o processo decisório de reforma do Código de Trânsito no Brasil foi marcado pela existência de múltiplos atores. Vários atores governamentais e não governamentais participaram ativamente do processo, comparecendo em vários dos eventos observados, com especial destaque para as audiências públicas em que apareceram diversas organizações ligadas à área de trânsito.

Como o conjunto de itens na agenda de decisão era grande, nenhum dos atores esteve atento a todas as dimensões dos problemas de trânsito. Nem todas as alternativas de solução foram consideradas por cada um deles. Do amplo conjunto de preferências e identidades que surgiram durante o processo decisório, cada ator esteve focado em apenas um subconjunto. De acordo com o exposto acima, este trabalho analisa apenas a posição dos atores que manifestaram explicitamente atenção à descentralização administrativa do trânsito.

Os atores são aqui classificados conforme a tipologia de Kingdon (1995) em atores governamentais e não governamentais, apesar de tal classificação ser imprecisa no caso de algumas organizações presentes no processo decisório sob análise. Por exemplo, um mesmo ator compareceu a um dos eventos como representante do CONTRAN e em outro evento como representante da ANTC, a primeira governamental e a segunda não. Um exemplo ainda mais interessante é o de um ator que representou, em reuniões distintas, o DETRAN-DF, a ABDETRAN, e a SSP-DF.

Contudo, o problema mais relevante diz respeito à classificação das organizações estaduais e municipais de trânsito. A linha divisória traçada por Kingdon (1995) para classificar os atores em governamentais e não governamentais é a autoridade formal, sendo que “pessoas em posições governamentais tem autoridade formal garantida por estatutos e pela Constituição, um status que as pessoas fora do governo não tem” (Kingdon, 1995, p. 45). Todavia, o significado de autoridade formal deve ser mais claramente definido, pois no caso estudado, a principal disputa, o principal ponto de divergência, foi justamente a descentralização da autoridade formal para o exercício do poder coercitivo do estado, que no caso do trânsito se manifesta na fiscalização de trânsito.

De acordo com Espírito Santo (2001), a autoridade formal sobre o trânsito pode ser dividida em legislativa, jurisdicional e administrativa, as duas últimas constituindo a execução das leis de trânsito. Se a definição de autoridade formal de Kingdon (1995) for interpretada de forma ampla o suficiente a ponto de significar também a autoridade para o exercício do poder

42 coercitivo do estado, isto é, a autoridade jurisdicional e administrativa, então as organizações estaduais deveriam ser classificadas como atores governamentais ao passo que as dezessete organizações municipais pré-existentes ao processo de reforma seriam classificadas como atores não governamentais, pois no caso sob análise, a autoridade formal para o exercício da fiscalização de trânsito era garantida pelo Código de 1966 aos estados, mas não aos municípios. Conforme a tipologia de Kingdon (1995), os municípios são categorizados como oficiais governamentais como lobistas (governmental officials as lobbystis), particularmente interessados no peso orçamentário de decisões do governo federal.

Contudo, se o conceito de autoridade formal for restrito à autoridade legislativa, dada pela Constituição, para propor e alterar a legislação de trânsito, como é o caso da reforma do código de trânsito, então as organizações que administram o trânsito nos estados e nos municípios podem ser classificadas como grupos de interesse. Assim sendo, o conceito de autoridade formal aqui empregado é o mais restrito.

A tipologia adotada é útil no estudo do processo decisório de reforma do código porque permite classificar as organizações estaduais e municipais de trânsito como grupos de interesse que atuaram no Congresso Nacional. Eles representaram os dois principais polos em torno da disputa pela reforma da administração do trânsito, pois a descentralização administrativa trazia em seu bojo a descentralização da autoridade legal para o exercício da fiscalização de trânsito, atividade que envolve ao mesmo tempo o poder coercitivo do estado e a arrecadação das multas de trânsito, esta última importante fonte de receita para os cofres públicos. Assim, os estados e municípios em disputa por essa autoridade legal atuaram em diversas etapas do processo, cada um a seu modo, na tentativa de introduzir suas propostas na agenda de decisão.