• Nenhum resultado encontrado

O projeto Ciências Humanas em Debate

No documento Ciências humanas em debate (páginas 35-42)

Quando a Comissão foi constituída pela PROPe em 2010 para refletir sobre o modo como se pensa e se faz Ciências Humanas na

Unesp, procurou-se inicialmente esboçar um mapa da pesquisa nesse campo na Universidade em nível de pós-graduação, que deu origem ao temário interdisciplinar que integra os apêndices desta obra (“Temas de pesquisa dos programas de pós-graduação da área de Humanidades da Unesp”). Foi a partir desse temário, cujo objetivo é agregar competências na comunidade unespiana em torno de dez grandes temas transversais (cultura e identi- dade; Semiótica, Tecnologia e Ética da Informação e Mídias; Meio ambiente; Trabalho e modernidade; Políticas públicas e Educação; Estado e Políticas públicas; Ensino e aprendizagem; Epistemologia, Filosofia ecológica e História da Filosofia; Estu- dos de linguagem; Arte, Ciências e Processos criativos), que o valor da abordagem interdisciplinar, pelo viés da cooperação, surgiu e se concretizou nos eventos cujos relatos estão coligidos igualmente nos apêndices: “I Fórum de Ciências Humanas da Unesp” (São Paulo–SP, novembro de 2010) e “II Fórum de Ciên- cias Humanas da Unesp” (Bauru–SP, agosto de 2011).

É em torno das ideias e experiências apresentadas e debatidas nesses dois fóruns que apresentamos à comunidade científica esta coletânea chamada Ciências Humanas em debate. Os traba- lhos oriundos dos fóruns foram selecionados e organizados de modo a fornecer ao leitor um panorama geral dos problemas e impasses que a produção científica em Ciências Humanas apre- senta em nossa Universidade, partindo do princípio de que esses problemas e impasses não apenas se nos impõem, mas a toda uni- versidade brasileira. A ênfase sobre a interdisciplinaridade, que verificamos e reiteramos no percurso de gestação desta obra, pode ser vista na organização das partes que compõem a coletânea: “O caráter interdisciplinar da pesquisa em Ciências Humanas” e “A prática interdisciplinar: experiências e reflexões”.

Na primeira parte deste livro, reunimos os trabalhos que refletem sobre a definição e a viabilidade teórico-metodológica do conceito de “interdisciplinaridade” nas Ciências Humanas.

Essa reflexão, em “Multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade nas Ciências Humanas”, de José Luiz Fiorin, é realizada a partir de definições e explorações lexicais que implicam um coerente e sofisticado projeto epistemoló- gico para pensar a área de Linguística segundo um viés menos disciplinar e mais afeito às demandas do objeto de estudo complexo que é a linguagem humana. Já em “A pesquisa em Humanidades: contribuições da interdisciplinaridade”, Mariana C. Broens nos apresenta os antecedentes medievais interdis- ciplinares das Humanidades, em especial da Filosofia, que consagraram o pensamento como atividade solitária, para então defender a suspensão estratégica da atividade solitária em função da necessidade permanente de diálogo e interlocução em torno de problemas concretos.

Essa reflexão sobre a natureza dos problemas abordados no âmbito das Ciências Humanas e das Ciências em geral é que fun- damenta o dilema proposto por Reginaldo Moraes em “Pesquisa na universidade: qual e por quê?”. Nesse ensaio, Moraes expõe as linhas gerais do que considera uma política de pesquisa viável na contemporaneidade para defender a realização de pesquisas de todas as ordens, mesmo daqueles tipos que não têm outros objetivos além de formar pesquisadores, seres pensantes, prepa- rados para criar e inovar. Nessa sociedade que valoriza a pesquisa em todas as suas manifestações, tal atividade é o lugar da prática privilegiada da educação.

Centrada na discussão sobre dois modelos para representar e dimensionar a atividade científica (os modelos mertoniano e trans-

versalista), Maria Alice Rezende de Carvalho, em “A pesquisa em

Ciências Humanas”, discorre sobre o desafio de ler a sociedade por meio de sua atividade científica e vice-versa, estabelecendo como elementos balizadores a institucionalização da pesquisa nas universidades e a gestão de políticas científicas. Ainda no que diz respeito à representação contemporânea das Ciências em

uma época que deveria assistir à prevalência do interdisciplinar, o leitor encontrará ao final da primeira parte desta obra a instigante reflexão do ensaio “Ciências Humanas: fronteira, especificidade e formas de coerção”, de Anderson Vinícius Romanini. Em seu texto, o autor apresenta as Ciências Humanas como o conjunto de ciências que estaria, por definição, em posição de capitanear o projeto interdisciplinar, buscando diálogos com as Ciências Exatas e Biológicas. Ao final de sua exposição, desenvolve uma contundente exortação do comportamento dos pesquisadores que se limitam ao conforto disciplinar e se alojam estrategicamente em seus nichos de pesquisa, embotando o diálogo necessário à boa prática epistemológica.

Na segunda parte desta coletânea, “A prática interdisciplinar: experiências e reflexões”, agrupamos as contribuições que nos pareceram exemplares das várias formas de praticar a pesquisa em Ciências Humanas, seja pelo viés da pesquisa em grupo, da experiência pessoal, seja, ainda, por meio da reflexão sobre assuntos que estão mais ou menos explícitos em nossas preocu- pações e conversas de corredores: a recepção e circulação da nossa produção, o “produtivismo” estéril e a precarização do trabalho docente.

Nos relatos “A experiência de uma rede de pesquisa”, de Maria Encarnação Beltrão Sposito, e “Dicionário histórico do

português do Brasil (séculos XVI a XVIII): do projeto à sua con-

cretização”, de Clotilde de Almeida Azevedo Murakawa, temos duas experiências muito bem-sucedidas, com reconhecimento das instituições parceiras e de órgãos de fomento, do trabalho em cooperação institucional e disciplinar. Na experiência de Sposito, as cidades médias atuaram como objeto agregador de compe- tências no Brasil e na América Latina, constituindo uma grande rede de pesquisa, que, como bem mostra o relato da pesquisa- dora, impõe desafios no seu gerenciamento. O texto tem como qualidade adicional expor a metodologia da rede de pesquisa

coordenada pela autora, o que pode auxiliar o pesquisador que quer formar ou integrar uma rede do gênero. No relato de Mura- kawa, percebemos como elementos objetivos e subjetivos da pesquisa compõem o cenário complexo de gerenciamento de um projeto dessa proporção. Esse projeto, que possui uma estrutura mais compacta do que a do projeto sobre cidades médias, reúne pesquisadores de linguística e de computação na formação de um banco de dados sobre o português dos séculos XVI ao XVIII que servirá não só ao projeto, mas a toda comunidade acadêmica.

No âmbito da experiência pessoal, encontra-se o relato “Uma experiência interdisciplinar”, de Alfredo Pereira Júnior, que nos conta como se deu o seu percurso de filósofo e professor de Filo- sofia da Ciência nos cursos de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp de Botucatu. Essa trajetória, marcada por intensas trocas acadêmicas interinstitucionais e intercâmpus no Brasil e no exterior, foi pautada por um esforço pessoal de compreensão e produção, que, embora por vezes incompreendido pelos comitês de área dos órgãos de fomento, em um dado momento foi aco- lhido e valorizado.

O artigo de Gladis Massini-Cagliari, “O Qualis das Ciências Humanas e o contexto da Unesp”, após uma apresentação minu- ciosa da distribuição e dos critérios de avaliação e enquadramento dos períodos de Ciências Humanas segundo o Qualis-Capes, apresenta como dilema a fazer face na divulgação científica em Humanidades o modelo de publicações em livros e em capítulos de livro. Essa questão, que do ponto de vista da área de Humanas está longe de configurar exatamente um problema, na perspectiva da avaliação das nossas pesquisas, sobretudo em comparação com a produção científica de outras ciências, revela equívocos de compreensão e dimensionamento da produção científica em Ciências Humanas. Esses equívocos, em larga medida, tenderiam a ser minimizados pelo Qualis Livros. A despeito dos descami- nhos do universo da avaliação da produção científica ou, ainda,

em resposta justamente a esses descaminhos, Massini-Cagliari conclama os humanistas, na esteira de Lindsay Waters, a fazerem seu trabalho enquanto críticos da razão.

O trabalho “Pesquisa em grupo e ‘produtivismo’”, de João Batista Toledo Prado, advoga pela construção de critérios de avaliação e de programas de pesquisa que respeitem a dinâmica intrínseca das áreas específicas das Ciências Humanas, em con- traponto a diretrizes extrínsecas, articuladas tendo como base outros modelos de produção de ciência e objetivos políticos e econômicos desconectados da lógica própria da produção de conhecimento. Em sua área de pesquisa, que é a de Estudos Clássicos, relata-nos como, desde os anos 1980, uma escola de latinistas e, portanto, um grupo sólido de pesquisa, se erigiu em torno da figura de Alceu Dias Lima – aposentado compulsoria- mente em 2000 como titular da cadeira de Língua e Literatura Latinas da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Arara- quara –, muito tempo antes das exigências que estão na ordem do dia para os órgãos reguladores da pesquisa.

Conferindo uma dimensão política e ética aos critérios de avaliação do trabalho docente, a segunda parte desta coletânea encerra-se com o trabalho “As métricas da avaliação: precarização e intensificação do trabalho docente”, de Sueli Guadelupe de Lima Mendonça. Nesse trabalho, a universidade é chamada à sua responsabilidade cultural e social, o que a coloca em explícita contradição com os meios correntes de avaliar e gerir a produção de conhecimento em nossos dias, que tem um perfil liberal típico dos sistemas privados, cuja base é a competição e o produtivismo. A solução preconizada pela autora para romper o círculo vicioso da produção com fins meramente quantitativos é a reflexão sobre a natureza, a razão, a finalidade última e a metodologia do nosso trabalho cotidiano.

Por fim, nos “Apêndices” da obra, o leitor encontrará os rela- tos “I Fórum de Ciências Humanas da Unesp” e “II Fórum de

Ciências Humanas da Unesp”, ambos assinados pela Comissão de Ciências Humanas da PROPe, e o documento “Temas de pes- quisa dos programas de pós-graduação da área de Humanidades da Unesp”, preparado pela mesma Comissão, todos com o obje- tivo de registrar e oferecer ao debate essa importante iniciativa da PROPe, que, de maneira pioneira, dispôs-se a conhecer e dar atenção às demandas da área de Ciências Humanas na Unesp.

As reflexões sobre a natureza da pesquisa em Ciências Hu- manas que apresentamos neste texto, assim como nossa apresen- tação desta obra e os próprios trabalhos que abrigamos nos dois fóruns realizados pela Comissão e que aparecem aqui coligidos, evocam encontros e mais encontros dos membros desta Comis- são, e de seus membros com outros colegas de dentro e de fora da Unesp, refletem dúvidas, aspirações e valores assumidos como projetos de pesquisa e de vida, e testemunham, em suma, os meandros de um percurso de estudos e reflexões que em meados de 2013 completa três anos. Cabe ao leitor a tarefa de julgar esse percurso e de se juntar, em complemento ou em contraponto, ao debate que aqui propomos.

O caráter interdisciplinar

No documento Ciências humanas em debate (páginas 35-42)