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qual e por quê?

No documento Ciências humanas em debate (páginas 82-88)

Reginaldo Moraes

O foco desta exposição é bastante seletivo e até mesmo limi- tado: a política de pesquisa como política de desenvolvimento para um país, uma comunidade. Desenvolvimento é algo que se coloca no vértice de dois vetores. Um deles é demarcado por ver- bos como “querer, sonhar, antecipar”. O outro vetor identifica-se com o fazer, realizar, concretizar. Parafraseando conhecida fór- mula, podemos dizer que uma política de desenvolvimento é, em boa medida, uma tentativa de tornar possível aquilo que é desejá- vel. Isso é algo diferente de tornar desejável aquilo que é possível, empreitada mais cômoda, em geral.

Entendo o desenvolvimento dentro de uma tradição refor- madora (ou reformista) que se nutre de linhas de pensamento distintas, por vezes conflitantes, mas que têm se cruzado ao longo da história recente – o marxismo e o pensamento político da Cepal, nas figuras de Celso Furtado, Raúl Prebisch, Aníbal Pinto, Osvaldo Sunkel e Fernando Fajnzylber. Os parâmetros desse desenvolvimento seriam os seguintes:

– crescimento sustentado, durável e não ciclotímico; – redução no uso predatório dos recursos naturais e humanos;

– integração nacional e redução das desigualdades regionais; – internalização dos fatores dinâmicos (econômicos, tecno-

lógicos);

– internalização dos centros decisórios; e

– incorporação das massas no processo econômico, social, político.

Tendo tais parâmetros como referência, uma teoria do desen- volvimento capaz de orientar a ação deveria também adotar uma política de conhecimento, isto é, uma política que englobe a geração, a distribuição e o uso do conhecimento.

Talvez fosse melhor falar de políticas de conhecimento ou de uma política com dois ou três ramais, já que ela precisaria conter:

1) Iniciativas voltadas para a pesquisa científica avançada, na assim chamada fronteira do conhecimento.

2) Iniciativas de capilarização da informação e da capacitação tecnocientífica, tais como os programas de educação em diferentes níveis, programas de difusão do conhecimento e da inovação, programas de extensão (rural e industrial) e assim por diante.

Cabe outra consideração a fazer, que se torna relevante por conta dos hábitos de pensamento convencionais. Me refiro ao fator de falarmos de um tipo de conhecimento para o desenvolvi- mento que compreenda não apenas as chamadas ciências “duras”, mas, também, as ciências sociais e humanas. Voltarei a esse tópico para enfatizar estas últimas, muitas vezes subestimadas.

Também devemos estar atentos a duas diferentes formas que o conhecimento assume, no que diz respeito à sua produção e à sua encarnação social. Assim, por um lado temos o conhecimento for- mal, explícito, codificado em livros, artigos, fórmulas, desenhos e encarnado em produtos, tais como máquinas, equipamentos.

Por outro lado, temos o conhecimento informal, tácito, não codificado, encarnado em pessoas e comportamentos. Apontar a necessidade de incorporar essas duas dimensões me parece muito importante para enfatizar que educação é não apenas produto, mas, também, e fortemente, processo. A compreensão desta confluência – produto-processo – é estratégica para entender, por exemplo, que tipo de conhecimento produzimos ou precisamos produzir nas nossas universidades.

Feitas essas observações de método, recoloquemos as questões que nos levaram a elas, como a pergunta impressa no título desta fala-artigo. O que entendemos por pesquisa? Como e por que a fatiamos em aplicada e básica, alocando suas variedades em quadrantes diferentes? Qual pesquisa se faz ou se deve fazer na universidade? Quais são, por assim dizer, seus tipos?

Chamo atenção para uma imagem utilizada por Donald Stokes (2005), no livro O quadrante de Pasteur. Ele propõe que classifiquemos a pesquisa segundo este diagrama de quadrantes:

Leva em conta o uso?

Busca entender fundamentos?

NÃO SIM

SIM Básica pura (Bohr) Básica inspirada pelo uso (Pasteur)

NÃO Aplicada pura (Edison)

O quadrante é uma espécie de tabela de duas entradas. A primeira é propiciada pela pergunta: a pesquisa visa construir modelos, teorias, explicações que envolvam os fundamentos do campo examinado? Tem essa motivação como componente decisivo? A segunda entrada tem outra questão: a pesquisa tem motivações utilitárias, práticas? É isso que a motiva e determina? Stokes afirma que as diferentes tradições de investigação cientí- fica são combinações, em diferentes graus, dessas motivações e

tendências. O “caso puro” da pesquisa sem motivação utilitária e com forte orientação teórica ou fundamental é personificado por Niels Bohr. A pesquisa aplicada levada ao extremo é encarnada por Thomas Edison, em cuja “fábrica de invenções” pratica- mente se proibia pensar em pesquisa fundamental. O quadrante de Pasteur, o que mais intriga e inspira Stokes, combina as duas motivações.

Creio que a reflexão de Stokes é bastante útil para as indaga- ções que enfrentamos aqui. Mas noto, também, que existe algo de estranho na célula vazia de seu diagrama, aquela que reuniria pesquisas que não têm expectativas de atingir fundamentos do campo, nem é motivada por isso, mas também não se vê obrigada ou condicionada pela busca de utilizações práticas, pela resolução de problemas práticos.

A pergunta que apresento é a seguinte: não haverá uma ausên- cia importante no esquema de Stokes?

Penso que sim, e considero abordar esse ponto a partir da confluência mencionada – produto-processo. Ela me parece estratégica para compreender, por exemplo, que tipo de “coisa” produzimos ou precisamos produzir nas nossas universidades. Senão vejamos.

Agricultores e criadores produzem alimentos e também suas sementes e matrizes. A universidade produz cientistas, engenhei- ros, médicos para a indústria, para a agricultura, para os bancos, serviços públicos e privados. E quem produz os professores e pes- quisadores para a universidade? Quem produz professores para a rede do ensino superior? Essa “coisa especial”, essa competência específica e especial se produz com pós-graduação e hábito de pesquisa, aquela que precisamos cultivar na universidade.

Curiosamente, talvez sem perceber que estava encontrando um modo de preencher a célula vazia de seu diagrama, Stokes (2005) define o conteúdo dessa célula.

Há casos em que o objetivo primordial da pesquisa é aumentar as habilidades dos pesquisadores [...] projetos de pesquisa nos quais os investigadores começam a trabalhar em uma nova área, não pelas descobertas que farão, mas para ganhar habilidade e experiência, que poderão mais tarde utilizar “quando surgirem problemas naquela área”, ou quando grandes avanços obtidos por outros pes- quisadores tornarem o campo importante.

Repito e detalho a afirmação de Stokes. Há casos em que o objetivo primordial da pesquisa, ou seja, aquilo que a motiva e que compõe suas expectativas e critérios de realização, não é produzir teoria nova, modelos novos para explicar fundamentos de determinado campo da realidade (física ou social), tampouco é produzir algum dispositivo (físico ou social) que resolva deter- minado problema prático. Há casos em que o objetivo primordial da pesquisa é treinar pesquisadores e ampliar sua capacidade de ver e inovar.

Grande parte da pesquisa que fazemos, e que devemos fazer, nas nossas universidades tem como resultado aprimorar procedi- mentos e técnicas, criar instrumentos e ferramentas intelectuais imprescindíveis a outras pesquisas. É assim, com paciência e obstinação, que geramos nossos bancos de dados, arquivos e registros de experimentos e observações, montamos coleções, ela- boramos dicionários especializados etc. E, além de tudo, e talvez sobretudo, com esse tipo de pesquisa formamos competências, produzimos coisas que não estão no armário do laboratório mas na mente das pessoas. Em suma, formamos competências.

A educação por meio de atividades de pesquisa tem seus resultados palpáveis e outros menos palpáveis, ou apenas indi- retamente palpáveis, como a aprendizagem da pesquisa, o treino da indagação e da procura. No desenvolvimento de um país, a produção de conhecimentos tácitos – como, por exemplo, a habili- dade de um torneiro, de um analista químico, de um investigador

científico – é absolutamente decisiva. A produção de capacida- des, de potenciais de inovação e invenção é que permite que, por exemplo, países retardatários na industrialização do século XX, como os novos Tigres Asiáticos, passassem da imitação à adap- tação e desta à invenção e inovação.

Como último tópico, volto a algo que mencionei antes: a necessidade de estarmos atentos não apenas ao conhecimento voltado para a modificação da “natureza inerte” (ou que conside- ramos como tal), mas, também, para a gestão de nossas próprias “naturezas”, do comportamento e das relações humanas. Um grande pioneiro das teorias do desenvolvimento sintetizou essa ideia em um ensaio de 1954:

O desenvolvimento econômico depende tanto do conheci men- to tecnológico sobre coisas e criaturas vivas quanto do conhecimento social sobre o homem e as suas relações com os seus semelhantes. A primeira forma de conhecimento é frequentemente acentuada mas a segunda tem a mesma importância. O crescimento depende tan- to de saber como administrar organizações em grande escala, ou de criar instituições que favoreçam o esforço para economizar, como de saber selecionar novos tipos de sementes, ou construir maiores represas. (Lewis, 1960)

Maria Alice Rezende de Carvalho1

Ciências Humanas: representação,

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