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2.3 A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA COM A REFORMA AGRÁRIA DE MERCADO

2.3.2 O projeto piloto Cédula da Terra – Combate à Pobreza Rural

O Cédula da Terra teve início em dezembro de 1997 e também financiava a compra de imóveis rurais por parte de trabalhadores rurais sem terras ou minifundiários constituídos em associações. Diferentemente do Projeto São José, que estava restrito ao estado do Ceará, o novo programa estendeu-se aos estados do Maranhão, Pernambuco, Bahia e região norte de Minas Gerais. Conforme destaca Sauer (2004), a seleção desses estados foi justificada pela elevada concentração de pobreza rural.

Segundo Buainain et al. (1999), citado por Sauer (2004), o Cédula da Terra buscava reduzir a pobreza nessas regiões através das seguintes ações: (i) aumento da renda de cerca de quinze mil famílias de pobres rurais mediante acesso à terra e a participação de forma complementar em subprojetos que atendessem às demandas das próprias comunidades; (ii)

elevação do rendimento agrícola das terras incluídas no programa; e (iii) testar um programa- piloto de reforma agrária no qual os beneficiários obtêm financiamento para procurar propriedades que possam ser negociadas diretamente entre comunidades rurais e os proprietários de terra.

No que diz respeito aos aspectos orçamentários do Projeto, Pereira (2012) destaca que o custo do Cédula da Terra foi estimado em U$$ 150 milhões de dólares, distribuídos da seguinte forma: (i) US$ 90 milhões do Banco Mundial; (ii) US$ 45 milhões do governo federal; (iii) US$ 6,6 milhões dos governos estaduais; e (iv) US$ 8,4 milhões das associações comunitárias, sob a forma de trabalho. Desse total, o autor ressalta, com base em documentos do Banco Mundial (1997), que 30% (US$ 45 milhões) deveriam ser gastos para a compra de terras, 56,2% (US$ 84,3 milhões) para investimentos complementares, 2,6% (US$ 3,9 milhões) para assistência técnica e capacitação, 6,7% (US$ 10,1 milhões) para monitoramento, supervisão e administração do projeto e 4,5% (US$ 6,7 milhões) para avaliação e propaganda pelo governo federal.

Tratando-se das especificidades do programa, Oliveira (2005) observa que as exigibilidades para a obtenção dos recursos eram as mesmas do Projeto São José. Por outro lado, as condições de financiamento apresentavam algumas diferenças, principalmente no âmbito do pagamento da dívida, que passou a ser reembolsável em até 10 anos, sendo 3 anos de carência. Sobre os saldos devedores permaneciam as mesmas condições do Projeto São José, isto é, uma Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), sendo esta de 1% ao ano. Por fim, vale destacar que o limite de crédito por família era de US$ 11.200, contemplando os gastos com a compra da terra, registro, medição, impostos e investimentos comunitários.

De acordo com Oliveira (2005), o Cédula da Terra previa um financiamento reembolsável, consistindo no pagamento da terra, e outro financiamento não reembolsável para investimentos comunitários no valor de 90% do recurso total, sendo os 10% restantes pagos pelos próprios assentados com trabalho, com produtos ou com dinheiro. Nesse caso, a autora destaca que os investimentos comunitários eram definidos pelas próprias associações, priorizando ações que beneficiassem os aspectos estruturais, produtivos e sociais da propriedade adquirida. Além disso, haveria um fundo perdido de R$ 1.300,00 para a instalação inicial das famílias nos imóveis, ação esta que não existia no Programa anterior.

De forma paralela ao Projeto São José, o Cédula da Terra sofreu importantes críticas de entidades e movimentos sociais que lutavam pelo direito a terra. Nesse sentido, Oliveira (2005) relata que, em 1998, o Cédula da Terra sofreu forte oposição da Comissão Pastoral da

Terra, que entendia a terra como um dom divino e, portanto, não era objeto de especulação ou negociação.

Segundo Sauer (2004), as principais críticas desses segmentos residiam na tentativa política de romper com a verdadeira ideologia da reforma agrária. Ora, ao defender uma reforma agrária via mercado, o governo estaria eliminando a luta histórica das famílias pelo direito a terra em detrimento da negociação pacífica do mercado de terras.

Além dessa perda de identidade, o autor destaca que o Projeto visava reduzir o papel do Estado, transferindo as responsabilidades para os negociadores, de modo que a questão agrária deixava de ser um problema político. Outro problema levantado pelo autor consistia na falta de restrição do Projeto na aquisição de terras, permitindo que muitas terras passíveis de desapropriação fossem adquiridas via Cédula da Terra.

Ainda do ponto de vista crítico, Sauer (2004) analisa os principais resultados de um relatório técnico, elaborado juntamente com outros pesquisadores, com o intuito de avaliar o Cédula da Terra nos estados que faziam parte do Programa. Após as entrevistas com os beneficiários, o estudo, conforme é apresentado por Oliveira (2005), apontou diversos problemas, dentre os quais: (i) baixa qualidade nas terras adquiridas; (ii) as associações não representavam os interesses das comunidades; (iii) alto índice de desinformação sobre o funcionamento do programa por parte dos camponeses; (iv) a imposição da produção coletiva no interior dos assentamentos; (v) as desistências; (vi) pouca renda produzida no interior dos assentamentos; e (vi) inviabilidade do pagamento das terras na forma proposta pelo programa. Na contramão dessas críticas, o Projeto Cédula da Terra, tal como seu antecessor, possuía prerrogativas que justificavam sua continuidade. Nesse contexto, Navarro (1998), citado por Oliveira (2005), destaca, por exemplo, que o Projeto permitiu o acesso à terra de maneira pacífica, além de atingir, em um ano e meio, a meta de 15 mil famílias beneficiadas que tinha sido estimada em um período de três anos. Com isso, movimentos sociais pressionavam o governo para que o Projeto fosse ampliado para as demais regiões do país. Para o governo, essa pressão para ampliar o projeto devia-se a redução que estava ocorrendo no preço das terras e, logicamente, pelo “sucesso” do projeto piloto no nordeste brasileiro (OLIVEIRA, 2005). Em suma, estava montada, novamente, as bases ideológicas e políticas para referendar a expansão do modelo de reforma agrária de mercado no Brasil. Para tanto, ainda durante a execução do Projeto Cédula da Terra, dado que este só foi extinto em dezembro de 2002, criou-se, em 1998, o Fundo de Terras e da Reforma Agrária – Banco da Terra.