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O que é comunicar?

No documento Da compreensão novas viagens de Gulliver (páginas 38-42)

Comunicar é muito mais do que juntar palavras, imagens e informações. E não depende apenas do sujeito e das ferramentas que recolhem e transmitem as palavras, imagens e as informações. Em outras palavras, a comunicação não deve ser confundida nem com atos de comunicação, nem com os meios de comunicação, embora o mundo lá fora, o meio, esteja sempre incluído no organismo cognoscente e, portanto, em qualquer comunicação. Esse mundo lá fora copula com os mundos internos, através de agenciamentos diversos, biológicos, simbólicos e outros, desdobrando-se em mestiçagens de corpos, culturas, artifícios, linguagens, significações, narrações...

A comunicação humana é uma possibilidade, inclusive de incomunicação. O que nos leva a uma questão que afeta a todas as culturas e gerações: como comunicar a incomunicabilidade? O

80 LÉVI-STRAUSS, 1997, p. 296. 81 CYRULNIK, s/d-b, p. 66.

processo comunicativo me parece indefinido, apesar das teorias em circulação. Há fenômenos comunicacionais mais duradouros e há outros fugazes e instantâneos, difíceis de apreender.

Interfaciante e interfaciada, a comunicação, tanto verbal, escrita, não-verbal, cinestésica etc., só se estabelece com o entrelaçamento do sensível e do racional com o emocional. Por isso, seus fluxos são, ao mesmo tempo, de tradução e de traição. Há sempre a necessidade de reformulação da experiência de quem comunica e de quem é alvo da comunicação.

Cada ato de comunicação é uma bifurcação. É preciso respeitar as possibilidades de ruído, a pluralidade de efeitos que se associam no processo comunicacional. A construção deste texto, por exemplo, já me proporcionou inúmeros insights autopoiéticos, no sentido de autoproduzir novos acontecimentos cognitivos. Resta exercitar os indissociáveis fluxos exopoiéticos, que criam mundos de significações, e heteropoiéticos, abertos a outros interlocutores. Porque a comunicabilidade depende do que as mensagens provocam nos outros. São os outros os parceiros que destravam o código do que é comunicado.

No caso das mídias de massa, há redundância e inutilidade de grande parte do processo comunicativo, com uma enxurrada de informações desnecessárias ou tautológicas. Não que os acontecimentos do mundo sejam previsíveis, mas os acontecimentos narrados pela mídia e a forma como são enfocados, geralmente, são totalmente previsíveis. Ora, para que a comunicação se processe, são necessários uma certa redundância e um repertório básico comum, mas se posso prever tudo o que uma pessoa vai me dizer, não há possibilidade de intercâmbio.

A comunicação não é nivelamento, não é eliminação de diferenças. Ao contrário, nos interessamos pela comunicação quando ela nos permite encontrar diferenças. Porém, a maioria dos comunicólogos profissionais adota uma atitude ilhada, praticando velhas fórmulas, enquanto grandes mudanças acontecem no mundo. Décio Pignatari, em seu livro Informação, linguagem, comunicação, diz ter a impressão de que os especialistas em comunicação procuram controlar o fenômeno a distância, sem se deixarem contaminar por ele83.

As teorias também não dão conta desses processos de contágio porque se baseiam num modelo mecânico, tratando a comunicação como mero trânsito de informação. As intersubjetividades, as cargas culturais e outros aspectos do fenômeno comunicacional são tratados como ruídos que devem ser eliminados para não atrapalhar o fluxo da informação.

Nascidas a partir dos estudos cibernéticos de Norbert Wiener84 e Claude Shannon, as

teorias da informação ainda em voga transplantam, a frio, os padrões das máquinas para os processos humanos. Excluindo, muitas vezes, a natureza simbólica dos contatos sociais, essas teorias pretendem que a verdade passe a funcionar a céu aberto, argumenta Lucien Sfez: se triunfassem, suscitariam a loucura universal, já que temos necessidade da sombra, de implícito, daquilo que dá à mentira um lugar, o mesmo lugar do desejo85.

As descobertas de Wiener e Shannon foram um grande avanço para as ciências nos idos de 1940. Porém, no lugar de servirem para abrir novos caminhos de pesquisa para a própria comunicação, suas constatações sofreram reduções e enrijeceram-se em dogmas. O estabelecimento dessas verdades científicas não considerou que problemas verdadeiramente humanos sempre serão estrangeiros à inteligência das máquinas e à cristalização de dogmas.

Os estudos sobre os processos de comunicação são, em uma palavra, tautológicos. Só levam em conta, segundo Sfez, o mero vaivém de um diálogo sem personagem86.

Para pensar a comunicação, alerta Fritjof Capra, devem ser incluídas todas as qualidades humanas genuínas, tais como sabedoria, compaixão, respeito, compreensão e amor. Decisões e comunicações que exigem essas qualidades desumanizarão nossas vidas se forem feitas por computadores87. Penso que, além dessas qualidades, devem ser consideradas as características

contrárias, tão humanas quanto aquelas citadas por Capra: ignorância, desprezo, desrespeito, incompreensão e ódio. Só assim o estudo da comunicação nos conduzirá no caminho do complexo. Na análise de Lucien Sfez, essa foi a contribuição de Habermas, para quem a comunicação não é maquinal, mas compreensiva e emerge no momento de rupturas88.

As teorias também não dão conta dos atos de comunicação efetivados por seres humanos em meios ditos virtuais, através dos computadores. Me refiro aos fenômenos comunicacionais fugazes e instantâneos, difíceis de apreender. No jargão da internet, costuma-se chamá-los de bolhas. São normalmente criados por pessoas que formam uma massa virtual, incerta e irregular. Poderíamos dizer até, num certo sentido, que essas massas são descompromissadas com a sua própria existência e manutenção. Aparentemente consolidados, podem desfazer-se no ar como nasceram: sem explicação.

84 WIENER, 1993. 85 SFEZ, 1994, p. 120. 86 Idem, p. 102. 87 CAPRA, 1996, p. 68. 88 SFEZ, op. cit., p. 111.

Esses indícios reforçam a idéia da necessidade de rediscutir as teorias da comunicação, tentando compreender os sujeitos que se comunicam, porquê e como se comunicam. Uma ruptura epistemológica que requer rejuntar sentidos e visões de mundo, além das práticas sociais e culturais, atentando para as novas condições de participação e pertencimento. Há muitas realidades invisíveis à atual percepção científica. Temos, talvez como Spinoza89, também que polir as lentes

embaçadas dos nossos instrumentos de pesquisa.

Creio, no entanto, que não é preciso criar uma nova ciência – a comunicalogia –, como sugerem Gustavo de Castro e Florence Dravet no prefácio do livro Sob o céu da cultura que ambos organizaram. Mas concordo com a observação que fazem, citando Morin, de que hoje temos informações demais e compreensão de menos90.

Também não subestimo o poder das ferramentas utilizadas na comunicação e sua influência no desenvolvimento das habilidades, dos hábitos inconscientes e nas modificações do próprio corpo humano. As configurações naturais e culturais sempre foram capazes disso. Sabemos, por exemplo, que ao se tornar bípede e com as mãos livres para tatear as coisas do mundo, o homem foi moldando seu cérebro, além da boca, língua e laringe, fazendo surgir o sexto sentido da fala91.

Portanto, por que o cérebro e outras partes do corpo não estariam se modificando agora, com o uso mais freqüente dos computadores e dos espaços virtuais?

Essa constatação levanta outra questão de fundo: será que é desejável substituir o conteúdo pelo frasco que o contém?

Embora a nossa civilização valorize as substituições e o que é descartável, creio que

quando os padrões de nossas comunicações se amesquinham e empobrecem, trocamos o fluxo da vida pelo autismo do verbo e pela evidência das imagens, tornamo- nos pedras. E, como sabemos, qualquer substituição é regressão de complexidade. O ganho acontece pela aquisição e manuseio da diversidade e não na negação de propriedades inerentes à condição humana. Toda substituição, toda unificação e homogeneização empobrecem o diálogo e a compreensão na comunicação, que é a essência da cultura e da condição humana92.

89 O filósofo Baruch Spinoza (1632 – 1677) provia suas necessidades materiais preparando lentes óticas para

microscópios e telescópios.

90 CASTRO; DRAVET, 2004, p. 13. 91 KNOBBE, 2004, p. 132.

No documento Da compreensão novas viagens de Gulliver (páginas 38-42)