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De forma semelhante ao que acontece em relação às definições sobre a vida, as teorias e os métodos tentam dar conta do universo polimorfo do conhecimento. Cada um deles, teorias e métodos, representa avanços ou retrocessos, de acordo com a época e a sociedade nas quais é empregado.

Como num quebra-cabeças, cada contribuição de cada pensador sobre o processo do conhecimento aproxima-nos um pouco mais de sua forma e de seu desenho, mas ainda estamos longe de visualizar as peças encaixadas como um todo acabado. Principalmente se levarmos em conta a instigante hipótese de que há uma relação indissociável entre vida e conhecimento, ou seja, viver é conhecer. Entendendo de forma inseparável a vida e a cognição, superamos a divisão cartesiana entre mente e matéria. A mente não é mais um elemento isolado, mas o próprio processo da vida. O processo de conhecer é, então, muito mais amplo do que a concepção de pensar. Até os organismos mais simples são capazes de percepção e, portanto, de cognição.

Se a vida não pára, o conhecimento também não. Se viver é conhecer, o conhecimento humano, portanto, é um fenômeno multidimensional e multirrelacional que necessita da conjunção de inúmeros processos inseparáveis. É produto, ao mesmo tempo, de fenômenos físicos, biológicos, cerebrais, mentais, psicológicos, culturais e sociais. No entanto, mesmo que possa ser partilhada, a experiência do conhecimento é intransferível. O processo cognoscente é na sua essência egocêntrico: o sujeito conhece por si, para si68.

Reconheço que o avanço na produção do conhecimento está ligado a condições e possibilidades tanto individuais quanto coletivas. E há diversos obstáculos no caminho do conhecimento – o erro, a ilusão, os tabus, os limites etc... – contra os quais temos que encontrar os desvios e brechas possibilitados pela própria caminhada.

Nesse percurso, às vezes também confundimos o crescente acesso às informações no mundo contemporâneo como, obrigatoriamente, o aumento do nosso conhecimento. Essa é uma das falácias dos tempos modernos. Não basta ter acesso às informações. É preciso tratar, computar, processar, mastigar as informações para transformá-las em conhecimento. Nas palavras de Conceição Almeida,

Só se processa conhecimento pela absorção e transformação das informações acolhidas pelo sistema cognitivo que supõe o indivíduo em sua corporeidade e vivendo em sociedade. O conhecimento é um permanente engolir, ruminar, selecionar o que faz sentido e vomitar o que degenera os modelos internos de compreensão das coisas69. O conhecimento é, como sugere Morin, ao mesmo tempo atividade (cognição) e produto dessa atividade70. A partir do tratamento de sinais/signos/símbolos, o aparelho cognitivo humano

traduz as representações, os discursos, as idéias, as teorias. Ou seja, o conhecimento humano é uma recriação, de dados exteriores e interiores, construída cerebral e espiritualmente71.

Considerando que conhecer é recriar, temos que aceitar o paradoxo, o inacabamento e a incerteza que parasitam todo conhecimento. Assim como na vida, se há aí um desafio, há também uma brecha. Por ser inacabado e incerto, o conhecimento possibilita conjugar reconhecimento e descoberta.

Essa conjugação requer outros dois movimentos, antagônicos e complementares. De um lado, a necessidade que tem cada ser humano de abastecer-se de grãos cognitivos para o futuro, como a formiga da fábula de Esopo. De outro, o impulso de cantar, compartilhar o seu conhecimento, comunicá-lo, como a cigarra.

Essas considerações eu já desenvolvi, de certa forma, na dissertação de mestrado. Revisitando-as, agora, as reencontro com um novo frescor, o que me leva à necessidade de resgatar outras dimensões do conhecimento. Um resgate, por exemplo, de suas raízes perceptivas e imanentes, como faz Michel Serres:

...não existe nada no conhecimento que não tenha estado primeiro no corpo inteiro, cujas metamorfoses gestuais, posturas móveis e a própria evolução imitam tudo aquilo que o rodeia. Nosso saber origina-se do saber de outros que o aprenderam a partir do nosso. Ao ensinar, relembrar e expor esse saber, nós o aumentamos em ciclos indefinidos de crescimento positivo que, por vezes, ficam bloqueados pela estupidez da obediência72.

Não podemos desprezar a inteligência do corpo porque o complexo psico-sócio-físico de cada humano está em contínua interação. Cada complexo psico-sócio-físico, por sua vez, se acopla a outros, criando vários níveis de redes sócio-motoras interconectadas, como se fossem um tipo de epiderme. 69 Idem, p. 44. 70 MORIN, 1996, p. 191. 71 Id., ibid., p. 196. 72 Apud KNOBBE, 2004, p. 132.

A chave para entender esse processo se chama autopercepção, que se manifesta apenas nos animais superiores e de maneira plena no ser humano. A autopercepção é a faculdade especial que permite saber que sabemos. É também o que chamamos de consciência. De acordo com Maturana, só podemos entender a consciência humana por meio da linguagem e de todo o contexto social no qual ela está encaixada. Como sua raiz latina – com-scire (conhecer juntos) – poderia indicar, consciência é essencialmente um fenômeno social73.

E a consciência, para o poeta Paul Valéry, é antes de tudo carnal: o mais profundo é a pele. Porém, nos esforçamos para, em nome da racionalidade, usar um intelecto descarnado inclusive no acionamento dos sentidos:

A maioria das pessoas vê com o intelecto muito mais freqüentemente do que com os olhos. Em vez de espaços coloridos, elas tomam conhecimento de conceitos. Uma forma cúbica, esbranquiçada, vista em altura, e vazada de reflexos de vidro, é, para elas, imediatamente uma casa: a Casa! Idéia complexa, acorde de qualidades abstratas. Se elas se deslocam, o movimento das fileiras de janelas e a translação das superfícies que desfigura continuamente as suas sensações lhes escapam pois o conceito não muda74.

Entre sensações e conceitos, o conhecimento também diz respeito à capacidade de entrar nesse mundo compartilhado de significados e deparar-se com as questões inerentes à comunicação, porque ser humano é existir na linguagem e num domínio semântico. Criamos um mundo junto com os outros, na medida em que sabemos como sabemos e criamos a nós mesmos. Como diz Boris Cyrulnik, cada um de nós é um corpo que produz um mundo virtual, habitando-o. E o simples fato de o homem habitar num mundo semantizado provoca, constantemente, contra- sensos75.

O próprio conhecimento se dá pela comunicação. A partir da rede nervosa e dos terminais sensoriais, revisitamos nossas visões de mundo, re-criando-o em forma de representações, noções, idéias e teorias. Enquanto vivemos, vamos armazenando no cérebro uma série de conceitos, sob a forma de registros inativos. Esses registros são reativados a partir de estímulos visuais, táteis, sonoros, lingüísticos etc., recriando sensações e ações associadas. Por exemplo, a imagem de uma xícara de café evoca ao mesmo tempo representações visuais ou táteis de sua forma, cor, textura e

73 CAPRA, 1996, p. 227. 74 VALÉRY apud BOSI, 1998. 75 CYRULNIK, s/d-a, p. 25.

temperatura, o odor e o gosto do café, assim como a trajetória da mão e do braço quando levam o café à boca76.

Por outro lado, mesmo que os mecanismos do conhecimento sejam idênticos em todos os humanos, o contexto social influencia a forma como os pensamentos são expressos. Para alguns pesquisadores das ciências cognitivas, ações e julgamentos que trazem a marca de uma cultura são fruto de conteúdos mentais distintos.

Dessa forma, a reflexão analítica é um legado dos gregos ao pensamento ocidental. Portanto, é um dado histórico. Nas sociedades orientais, ao contrário, é freqüente brincar e pensar através de paradoxos. São lógicas diferentes. Enquanto os ocidentais normalmente se sentem incomodados com uma contradição, tentando resolvê-la, os orientais até tendem a buscá-las, considerando cada idéia ou objeto e seu contrário.

Nem sempre os hemisférios Oriental e Ocidental se distanciam. Até a Idade Média, nos primeiros balbucios da ciência moderna, havia uma unidade de inspiração referente ao conhecimento praticado tanto nas regiões onde nasce o sol quanto naquelas nas quais ele se põe77.

Na ciência contemporânea, os precursores da física quântica, embora ocidentais, tiveram que se render à lógica da contradição quando se depararam com a complementaridade dos contrários: a existência simultânea de partículas e ondas, dois conceitos mutuamente excludentes, mas ambos necessários para descrever os processos atômicos. Nas palavras de Werner Heisenberg: quando se trata de enveredar por novos territórios, a própria estrutura do pensamento (e não apenas seu conteúdo) pode ter que se alterar, para que seja possível compreender o novo78.

Ou, como o também físico Niels Bohr freqüentemente repetia: o oposto de uma afirmação correta é uma afirmação falsa. Mas o oposto de uma verdade profunda pode muito bem ser outra verdade profunda79.

Num outro patamar, Claude Lévi-Strauss afirma que tanto o pensamento selvagem (e não o pensamento do selvagem, como alguns querem classificar) quanto o pensamento domesticado (científico) operam a partir da mesma lógica:

O pensamento selvagem é lógico no mesmo sentido e da mesma maneira que o nosso, mas da forma como somente o nosso é quando aplicado ao conhecimento de um

76

Revista Viver Mente & Cérebro, 2004, n. 143, p. 48.

77 CARO, 1993, p.83.

78 HEISENBERG, 1996, p. 87.

universo e, que reconhece simultaneamente propriedades físicas e propriedades semânticas80.

Portanto, todos os humanos carregam potencial tanto para a reflexão analítica quanto para a lógica dos contrários. Pensar por uma ou por outra forma, ou ainda conjugar as duas é uma questão de exercício. Conhecer, então, é uma questão de vida ou de como viver a vida e comunicá-la.

Por outro lado, observa Boris Cyrulnik, não é necessário compreender para se ser operacional: estou vivo, bem sei. Sou perfeitamente incapaz de dizer como faço para viver e, todavia, não deixo de viver81... Também podemos ser perfeitamente incapazes de dizer como

fazemos para conhecer e, todavia, não deixamos de conhecer...

Por isso, apesar de todo avanço das ciências, viver e conhecer são, e talvez sejam sempre, enigmas indecifráveis. Segundo Wolfgang Prinz, diretor do Instituto Max Planck de Ciências Cognitivas e Neurociências de Munique, acumulamos um conhecimento cada vez mais detalhado sobre a relação entre processos cognitivos e funções cerebrais, mas há grandes deficiências na compreensão teórica dessa relação. Em resumo: sabemos muito, mas compreendemos pouco82.

No documento Da compreensão novas viagens de Gulliver (páginas 34-38)