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Suicídio social X humanismo planetário

No documento Da compreensão novas viagens de Gulliver (páginas 42-45)

Viver e conhecer os argumentos discutidos aqui me fazem experimentar um plissê de correspondências que nem sempre se correspondem: entre fala e silêncio; entre comunicação e solidão; entre compreensão e incompreensão; entre os sentidos e a razão; entre a lógica e a imaginação. O espanto me acompanha. Quanto mais a porta da verdade se abre aos meus pobres neurônios, aos meus adormecidos sentidos e à minha insuficiente experiência, mais me percebo incomunicável e sedenta por mais conhecimento, mesmo que seja por mais uma meia verdade.

Espanto-me ainda mais quando constato que comunicar em prosa o que os poetas sintetizam em versos é tornar incomunicáveis idéias já tão competentemente expostas. Por isso, recorro a Carlos Drummond de Andrade para explicar o que me causa angústia, por um lado, e mais gana de saber, por outro:

A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade,

porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.

Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.

Nenhuma das duas era totalmente bela. E carecia optar. Cada um optou conforme

seu capricho, sua ilusão, sua miopia93. Sem pretender atingir toda a verdade, saio da bolha comunicacional da internet, mimetizo- me no pretume molar dos antigos ajuntamentos de gente, hoje em extinção, e me transporto para dentro das desprezadas massas coloridas e moleculares de Peter Sloterdijk. A massa somos todos

nós, analfabetos e intelectuais, ricos e pobres, homens e mulheres que pactuam com o permutável e com a indiferença. Falta-nos, como sugere Emile Cioran, exercícios de admiração94.

Quantas vezes nos escondemos sob o espectro do coletivo para justificar um certo desespero embaçado pelo desprezo a nós mesmos? Somos incapazes do esforço para admirar em um dos nossos pares, principalmente no âmbito profissional e intelectual, valores, talentos e obras que nós mesmos não somos capazes de produzir, mesmo que tivéssemos trinta e seis vidas95.

Vivemos permanentemente estressados pelo excesso, pelas dificuldades de opção, em pânico por termos que tomar decisões. Na vida cotidiana, eu sou onde não penso. Seguindo a manada, o que elogia é puxa-saco; o que insulta é bacana.

Ao mesmo tempo, cultuamos celebridades vazias. Exilamos os sujeitos de suas obras e de suas idéias. E aderimos ao discurso da moda que prega a diversidade, desde que haja consenso do coletivo sobre qual diversidade podemos tolerar. Cada um opta conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia, mas responsabiliza a coletividade por suas opções.

Essa propalada diversidade é o túmulo da diferença e da compreensão. Seja qual for o grupo de referência, ser massa significa diferenciar-se sem que se faça nenhuma diferença. Indiferença diferenciada é o mistério formal da massa e sua cultura, que organiza um centro total. Por essa razão, seu jargão não pode ser outro senão o de um individualismo afiado96.

A massa compromete a todos no mesmo fracasso. Mata toda tentativa individual de fazer- melhor-do-que-os-outros. Segundo Sloterdijk, nessas condições o reconhecimento não pode mais significar alta estima ou homenagem, mas baixa estima ou igual estima no espaço neutro, justa concessão de uma insignificância que não se contesta de ninguém97.

A que triste fim estamos empurrando antigos ideais democráticos... ao parlamento das ficções, que antes a sociologia chamava de opinião pública. Não querendo participar das unanimidades, paradoxalmente, criamos o humano homogêneo, para suspeitar contra tudo o que é criativo e livre98.

Talvez vivamos num universo nietzschiano, como descreve Eduardo Portella:

O sujeito hesitante, desmobilizado, demissionário, lança mão ainda do repertório de máscaras da vontade de poder — o alegre bal masqué da vida, circundado pela ciência onisciente e pela moral do ressentimento. Ninguém soube como ele (Nietzsche) conviver

94 Apud SLOTERDIJK, 2002, p.116. 95 SLOTERDIJK, ibid., p. 117. 96 Id., ibid., p. 107. 97 Id., ibid.

com a ironia disfarçada das mascaradas. Máscaras da vontade de poder, cortejo, desfile, inóspitos. No sentido mais profundo. As palavras de Nietzsche ressoam obstinadamente: Tudo o que é profundo ama a máscara99.

O termo barbárie me parece aqui justificado. É o que George Steiner chama de um mundo absolutamente chato, no qual tudo se equivale e nada vale nada100. É o que mostra, com um humor

fino e sutil, o romance Como me tornei estúpido, do antropólogo Martin Page, que constata: A inteligência torna a pessoa infeliz, solitária, pobre, enquanto o disfarce de inteligente oferece a imortalidade efêmera101.

Tentando salvar-se, Antoine, o protagonista da história, tenta renunciar ao pensamento criador porque tinha poucos amigos, porque padecia dessa espécie de anti-sociabilidade que resulta da demasiada tolerância e compreensão. Depois de tentativas mal-sucedidas para embriagar-se e suicidar-se, empreende uma jornada rumo à estupidez, argumentando que, na natureza, tudo o que vive muito e contente não é inteligente. Com os humanos, em nosso mundo, tentar compreender é um suicídio social102.

Bem antes de Page, outros escritores já se dedicaram ao tema, provando que a arte é sempre contemporânea e real, como afirma Dostoievski. O próprio escritor russo publicou em 1868 a história O idiota, na qual o quixotesco príncipe Michkin, acometido de epilepsia, vai a fundo em todas as questões de que trata quando começa a falar, demonstrando uma profunda compaixão humanista por todos os indivíduos.

Akira Kurosawa adaptou a narrativa para o cinema em 1951104. No filme, Kenji Kameda, um

ex-militar japonês que escapou da morte, passa a sofrer de idiotice – amor incondicional à vida e às pessoas. A doença o enreda numa tragédia. O problema maior de Kameda é a sua incapacidade de distinguir e optar pelo bem ou pelo mal. Enxergando no olhar do outro todo o sofrimento de sua humanidade, o idiota Kameda confunde amor com pena. A empatia incondicional acaba causando mais sofrimento. Assim, a compreensão extrema de Kameda se torna incompreensão, com o uso inconseqüente do livre arbítrio. No desenrolar das cenas, a maldade acaba assumindo uma valoração positiva porque permite o exercício da liberdade de escolha.

99 PORTELLA, 2000. 100 Apud MATTÉI, 2002, p. 259. 101 PAGE, 2005, p. 7. 102 Id, ibid., p. 60.

Se, para Dostoievski e Kurosawa, a compreensão se refere à empatia que imobiliza a capacidade de julgamento, portanto, se consuma na doença da idiotia, para Page, a estupidez – renúncia à compreensão – promove uma falsa felicidade. A idiotia poderia ser chamada de hipercompreensão e a estupidez, de hipocompreensão. Idiotia e estupidez são como duas doenças que causam sérios prejuízos à saúde social. São contrários extremos que aniquilam – por excesso ou por falta – a verdadeira compreensão que exige novas emergências de idéias e atitudes.

Paradoxalmente, quem compreende é sempre visto como diferente – encarado como ridículo ou ameaçador – pela maioria das pessoas. Dostoievski, em seu tempo, foi chamado de gênio do mal. Segundo ele mesmo, o seu mal era a consciência. Por isso, pensar criativa e criticamente, muitas vezes, é não existir socialmente. As singularidades – trabalho de ousadia, de inovação; traços sem referências indispensáveis ao grupo – são deletadas. Só sobrevivem as particularidades – traços que pertencem ao todo. Ou seja, quem quiser, hoje, delimitar os contornos do mundo moderno deve primeiro traçar as fronteiras de seus desertos interiores. A barbárie não é meramente uma ameaça externa. A barbárie pode se elevar em cultura assim como o deserto se irriga em jardim105.

Para quem está satisfeito (ou acomodado) à esquizofrenia idiotice-estupidez e com a supremacia dos monólogos articulados, compreender pode ser mesmo um suicídio social. Mas, para quem concorda com Morin, de que é uma questão de sobrevivência assumir a condição humana, rumo a um humanismo planetário, construir uma ética da compreensão é inadiável.

Porém, compreensão é outra palavra polissêmica por natureza. Como reconhecer suas múltiplas faces? Começo por identificar o que alguns pensadores disseram a seu respeito.

No documento Da compreensão novas viagens de Gulliver (páginas 42-45)