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homens – Parménides em Maria Gabriela Llansol

1. O que é ouvir?

Ninguém se dispõe a ouvir ao acaso. Quando se ouve, convoca-se a voz, cria-se aquele que diz. Mais ainda quando a voz chega em fragmentos, quase agramaticali- dades. Por exemplo – mas não é um exemplo ao acaso, o exemplo não existe, é um de-propósito, uma audição criadora – por exemplo: ouvir Parménides. Mas para que deveríamos, por que ousaríamos ouvir esse balbucio quase ininteligível, certamente intraduzível? Intraduzível pois, como diz Barbara Cassin (1998: 9), a tradução do Poema de Parménides é inacabável: a sua escuta é infinita, convocando sempre a reescrita. Ouvir é reescrever. Heidegger, que definiu a ideia de apelo, de chamamento, conhece essa inevitabilidade – mas lamenta-a:

“todo o pensamento tardio que tenta estabelecer um diálogo com o pensamento antigo não pode senão ouvir o silêncio do pensamento antigo do próprio lugar onde ele mora e trazê-lo assim até um dizer. Certamente assim não se pode evitar que o pensamento antigo seja integrado num falar recente” (1954: 287-288)

Aquém do tom disfórico, da denúncia do discurso híbrido, da vontade (quão paradoxal e desmentida em Heidegger, que faz todos os autores antigos falarem heide- ggerianamente) de ouvir a voz grega na sua pureza irredutível, devemos perguntar-nos, por dúvida metódica: não como ouvir Parménides – mas simplesmente: para quê ouvir Parménides? Que nos pode dar o seu Poema, os seus fragmentos, que o presente não nos dá ou, para escrever com as palavras de Heidegger, que o presente esqueceu? Como preservar, nessa audição, a fidelidade e o diálogo? Mas acaso há que ser fiel?

Em Inquérito às Quatro Confidências, Maria Gabriela Llansol escreve: “A terceira confidência / é que não há contemporâneos, mas elos de ausências presentes; há um anel de fuga. Na prática, é uma cena infinita – o lugar onde somos figuras.” (1996: 48). Curiosa afirmação num diário, que dizemos, estereotipadamente, escrita do presente e da presença, registo do real aqui-e-agora, real do próprio dia, real da

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véspera tornando-se já passado, já irreal. Mas se não há contemporâneos, afastam-se para um limbo incerto as pessoas ditas neste diário, e em especial Vergílio Ferreira, seu núcleo magnético. Ora, esta revisão parece apenas servir para alargar a presença a um infinito em que entrará, poucas páginas depois, Parménides. Afasta-se a concepção de um presente tangível para pensar uma “cena infinita”, mais aberta. De resto, a citação avança afirmativamente, com os verbos “há” e “é”, que parecem já uma citação do

Poema grego: não há recusa do ser, há atenção ao distante – e à distância de quem

está tão próximo.

Parménides será citado, partilhado, traduzido; palavras do Poema, como a forma “há”, serão trabalhadas por Maria Gabriela Llansol. Mas antes, e durante, e depois – haverá também o diálogo com Vergílio Ferreira. Não estabeleço ainda relação entre o romancista contemporâneo e o filósofo antigo, a não ser a contiguidade sintagmática; mas já sabemos quão significativo é o sintagma. Ora, quem é Vergílio Ferreira em Inquérito às Quatro Confidências? Eis o que lhe diz a narradora:

“– Só sei que não sei essa forma de saber a que se refere, Vergílio – respondo-lhe. Como dizer-lhe que não sei, que o saber-saber entorpece, que receio o saber, os esquemas e as explicações, que o homem não dispõe de corpo para imaginar o universo, os fins últimos e as razões primeiras, mas que está aqui, caminhando no há que há?...” (1996: 60)

Há outro grego nesta página, claro (na verdade, há uma multidão de vozes): “Só sei que não sei” convoca Sócrates, do mesmo modo que “caminhando no há que há” reivindica Parménides. Há a afirmação do “há”, e há também a negação de um saber que equivale a não-saber, ou a não-ser. Sem querer avançar depressa demais, lembraria o fragmento II de Parménides, onde se dizem as duas vias de pesquisa a pensar:

Um, [aquilo] que é e que [lhe] é impossível não ser, é a via da Persuasão (por ser companheira da Verdade); o outro, aquilo que não é e que forçoso se torna que não exista, esse te declaro eu que é uma vereda totalmente indiscernível, pois não poderás conhecer o que não é – tal não é possível – nem exprimi-lo por palavras. (Parménides, cf. Kirk, Raven e Schofield 1957: 255)

A segunda via é errónea e triste, num sentido de tristeza que Llansol colhe da

Ética de Espinosa: é uma via errónea porque triste. Ora, o erro encontra-se no saber

atribuído a Vergílio Ferreira. A segunda via é a do “saber-saber”, modo tautológico e metareflexivo de dizer a tristeza e o abismo da consciência consciente da sua própria consciência (mais um nome aqui para o dialogismo: Fernando Pessoa, Aossê no texto llansoliano).

Dito assim, o duplo (ou infinito) acolhimento em Llansol tem um sentido: Parmé- nides é uma resposta a Vergílio. Sim: a ordem da pergunta e da resposta nada deve à ideia banal de cronologia. No “há” llansoliano, as vozes encontram-se numa sincronia capacitante de diálogo – ou, para usar um termo da música erudita, num cluster em que todas as melodias e harmonias permanecem disponíveis, em latência. Ouvir é deixar advir música dessa sobreposição: “eu poderia escrever sobre os problemas do tempo em que vivemos mas só poderia falar deles a partir do meu, do meu tempo, des-datando, que é o modo como escovo o fato dessas imagens” (1996: 28). Des-datar o passado de Parménides no presente dialogante do “há”, mas desde que se des-date

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também o presente ilusório de Vergílio Ferreira num reencontro com o ser além da cronologia.

Des-datação fiel, mas não pura, não asséptica. Desde as primeiras páginas de

Inquérito às Quatro Confidências, um torvelinho entra pela janela e polui a casa. Ei-lo

entre as páginas 9-10, mas regressando na 63, na 144, na 151, devindo um torvelinho de luz quase no fim do texto, página 183. Surge na primeira página que tem o nome “Vergílio”; e a autora diz escrever sobre o torvelinho: não acerca dele, mas por cima dele, como se o torvelinho substituísse a folha lisa de papel – a questão da lisura voltará mais adiante. Não interessa retirar à habitação esse sinal de hibridez, essa forma aberrante na civilização, esse aparente não-ser. Porque, na verdade, o texto diz que só o torvelinho, híbrido, indefinível, intratável, é o lugar da quimera e do verdadeiro “há”: só a limpeza, a intervenção da razão do homem contra a natureza constituem a negatividade. Que isto é verdadeiro, mostra-o uma referência, no fim de Inquérito

às Quatro Confidências, à doença dita das vacas loucas: é precisamente a razão, e

não a ausência dela, que leva os animais à extinção – como leva Vergílio Ferreira à tristeza. Pelo contrário, a autora escreve: “No há que escolhi, / a minha espinha dorsal é o júbilo.” (1996: 72).

A pergunta de Vergílio Ferreira encontrará resposta no século V a. C. (e esta formulação precisa, claro, do verbo no futuro do indicativo). Por que devemos ouvir Parménides? Porque ele responde a questões que nós ainda nem formulámos. Isto significa que o ouvimos na sua pureza? Não: significa que o reescrevemos. Nenhuma impostura em Inquérito às Quatro Confidências, aliás; a autora define o seu programa: “Vou cruzar o canónico com o apócrifo.” (1996: 67), e certamente nunca saberemos (interessaria saber?) onde há canónico e onde há apócrifo.

Mas Maria Gabriela Llansol reintroduz o dialogismo mesmo onde a escrita ameaçaria cristalizar. Um exemplo. Lembre-se que Nietzsche, aliás figura llansoliana desde O Livro das Comunidades, acusa Parménides em A Filosofia na Idade Trágica

dos Gregos: “é um profeta da verdade, mas parece feito de gelo e não de fogo” (1873:

57). Poupa-o aos maus tratos reservados a Platão, mas denuncia em Parménides a propensão para o abstracto, o descrédito conferido aos sentidos, o desinteresse em geral pelo fenómeno. Para Nietzsche, em suma, “Parménides e Zenão (...) partem do pressuposto absolutamente indemonstrável, ou mesmo improvável, de possuirmos na faculdade conceptual o decisivo critério supremo acerca do ser e do não-ser, isto é, acerca da realidade objectiva e do seu contrário” (ibidem: 75).

O “há” llansoliano não é, como o de Parménides, coeso, se por coesão se entender a ausência de diferença; pelo contrário, a diferença é celebrada como acontecimento. Eu diria assim: perante a disforia de Vergílio, Llansol prefere ouvir o “há” de Parménides; mas perante o horror ao fenómeno em Parménides, Llansol procura ouvir o sim à vida de Nietzsche. A audição é um trabalho de construção, fora do tempo e cheio de júbilo.