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CAPÍTULO 1 MARCO TEÓRICO

1.6 O que seria “afabetizar letrando”?

Ainda na década de 1980, as preocupações acerca da alfabetização começaram a voltar-se para um novo conceito, o de “letramento”. Como retoma Albuquerque (2005):

Esse fenômeno foi evidenciado, pela primeira vez, na 1ª Guerra Mundial. Percebeu-se, naquele momento, que soldados americanos que possuíam elevado grau de escolarização apresentavam dificuldades em ler e compreender textos instrucionais de guerra (p.17).

Nesse sentido, vários estudos e pesquisas acadêmicas, no Brasil, como os de Mary Kato (1986), Tfouni (1988 e 1995), Kleiman (1995) e Soares (2002) elaboraram formulações sobre o que venha a ser letramento.

Esse termo foi utilizado pela primeira vez por Mary Kato (1986) na introdução do seu livro.

(...) a função da escola, na área da linguagem, é introduzir a criança no mundo da escrita, tornando-a um cidadão funcionalmente letrado, isto é, um sujeito capaz de fazer uso da linguagem escrita para sua necessidade individual de crescer cognitivamente e para atender às várias demandas da sociedade que prestigia esse tipo de comunicação (p.7).

Kleiman (1995) assume a definição de Scribner e Cole (1981),

Podemos definir hoje letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos (cf. Scribner e Cole, 1981). As práticas específicas da escola, que forneciam o parâmetro de prática social segundo a qual os sujeitos eram classificados ao longo da dicotomia alfabetizado e não-alfabetizado passam a ser, em função dessa definição, apenas um tipo de prática, de fato, dominante, que desenvolvealguns tipos de habilidades mas não outros e que determina uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita(p.19).

Essa autora também discute duas abordagens sobre letramento centradas no “modelo autônomo” e no “modelo ideológico”. O primeiro concebe a escrita como um produto completo que não se vincula ao contexto, portanto para interpretá-la não há necessidade de conhecê-lo, ou seja, a interpretação estaria determinada pelo funcionamento interno do texto escrito. Já o segundo refere-se às práticas de letramento como aspecto de uma cultura e também como uma estrutura de poder de uma sociedade, isto é, as práticas de letramento se alteram de acordo com a concepção de escrita que o sujeito vivencia no seu cotidiano, segundo o grupo sociocultural no qual se situa.

Atualmente o termo letramento já pode ser encontrado em alguns dicionários, em muitos livros didáticos que dizem adotar essa proposta (de “letrar os alunos”), em falas de educadores, em diversas formações dadas em nosso país e em textos acadêmicos. Esse termo se tornou bastante usual.

Assumiremos a definição utilizada por Soares (2002), segundo a qual, “letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição

que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter se apropriado da escrita” (p.18).

Nessa perspectiva do letramento, não basta o indivíduo aprender a ler e escrever. Este precisa apropriar-se da leitura e da escrita e fazer uso real destas, ou seja, o sujeito aprende de forma significativa os usos e funções da escrita.

Segundo Soares (2004), o termo letramento surgiu a partir da necessidade da criação de um conceito que “reconheça e nomeie as práticas sociais de leitura e escrita mais avançadas e complexas que as práticas do ler e do escrever resultantes da aprendizagem do sistema de escrita”(p.6). Assim, Alfabetização e Letramento passaram a ser concebidos como fenômenos distintos. No Brasil, houve a adoção do termo “letramento”, na França do “illetrisme”, em Portugal, do termo “literacia”, como alternativas para o “literacy”, empregado nos EUA e na Inglaterra.

Desta forma, a partir da identificação e consolidação desse “novo” fenômeno se passou a medir não apenas a capacidade do indivíduo ler e escrever, mas o domínio da leitura e da escrita enquanto práticas contextualizadas.

Como já explicitado anteriormente, no Brasil, até o Censo de 1940, era alfabetizado aquele que declarava saber ler e escrever, assinar o próprio nome. A partir de 1950, alfabetizado era alguém capaz de ler e escrever um bilhete simples; atualmente, o nível de alfabetização é medido por anos de escolarização. Assim, a discussão sobre letramento sempre esteve vinculada ao processo de alfabetização.

Ainda segundo Soares (2004), a mistura desses dois conceitos vem trazendo uma “perda de especificidade”, o que ela chama “desinvenção da alfabetização”, no que diz respeito ao ensino do Sistema de Escrita e conseqüentemente da aprendizagem pelos alunos.

Diante dessa problemática, muitos educandos terminam o ensino fundamental sem ter se apropriado da leitura e da escrita. As causas desse fenômeno podem ser, Segundo Soares (2004), a falta de “especificidade do processo de alfabetização”, o sistema de ciclos e o princípio da progressão continuada. Um outro ponto é o da mudança de paradigmas, a partir dos estudos sobre construtivismo e sócio-construtivismo. Em virtude de tais discussões, passou a haver um incentivo da leitura e da escrita, sem priorizar-se o aprendizado da notação escrita. As crianças, segundo a referida autora, “estão sendo, de certa forma, letradas na escola, não estão sendo alfabetizadas, o que parece estar conduzindo à solução de um retorno à alfabetização como processo autônomo, independente do letramento anterior a ele”. (p.11).

Porém, isso não deveria acontecer, pois,

a alfabetização desenvolve-se no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só se pode desenvolver no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da alfabetização (Soares, 2004, p.11).

Isso seria o que a autora chama de “Alfabetizar Letrando”, ou seja,

alfabetizar e letrar são duas ações distintas, mas não inseparáveis, ao contrário: o ideal seria ensinar a ler e escrever no contexto das práticas sociais de leitura e escrita, de modo que o individuo se tornasse ao mesmo tempo alfabetizado e letrado (Soares, 2002, p.47).

Por essa razão, é importante levar o aprendiz a ler diferentes gêneros e com diferentes funções, definindo interlocutor, gênero a ser produzido e finalidades do mesmo, sem deixar de lado as atividades de Apropriação do SEA. Como afirma Albuquerque (2005):

Sabemos que, para a formação de leitores e escritores competentes, é importante a interação com diferentes gêneros textuais, com base em contextos diversificados de comunicação. Cabe à escola oportunizar essa

interação, criando atividades em que os alunos sejam solicitados a ler e produzir diferentes textos (p.18-19).

Julgamos importante que o professor-alfabetizador considere que, embora os sujeitos não saibam ler e escrever, já possuem conhecimentos prévios das funções da escrita e das características de diversos gêneros textuais presentes no seu cotidiano e estes precisam ser mais e mais ampliados.

Caso esse aspecto funcional da aprendizagem da leitura e da escrita não seja valorizado, correr-se-á o risco de fazer com que as crianças, na escola, como afirma Soares (2003, p.73), passem por “um processo de “aprendizagem/desaprendizagem das funções da escrita” (p.73). Nesse caso, é delegado à escrita um caráter escolar e os alunos passam a ler e produzir pseudo-textos que não apresentam coesão, coerência; são frases soltas e desconexas, sem nenhum sentido para o aluno. Assim, a aprendizagem da escrita, através de situações de interlocução real, é abandonada e os alunos passam a ler e produzir textos que só circulam na escola.

Soares (2003), visando verificar a influência dos textos cartilhados na formação do conceito de funções da escrita, entre crianças em processo de alfabetização, percebeu que elas, ao serem solicitadas a escrever um texto espontâneo, produziram textos cartilhados. No entanto, ao perguntarem se a professora iria ler o texto, com a resposta afirmativa, passaram a produzir, embaixo do texto cartilhado, um texto com finalidade social clara, um bilhete para professora, com características de uma escrita espontânea e sem estar preso a palavras ou frases memorizadas.

Por outro lado, fica evidente que, nesse processo de didatização do ensino, que implica um “letramento escolar”, não basta levar para a escola textos que circulam fora dela. É preciso, no momento das atividades de leitura e escrita, dar-se uma finalidade aos textos lidos;

discutir sobre as características do gênero trabalhado, o que se deseja comunicar e qual o gênero textual é o adequado para fazê-lo; discutir sobre o destinatário, a quem vai se dirigir e as esferas sociais de circulação dos mesmos (cf. & BRANDÃO & LEAL, 2005).

Desta forma, para lidar com cada gênero textual, faz-se necessário participar das práticas de linguagem em que estes estejam presentes. Por tal motivo, Scheneuwly e Dolz (2004, p.74) conceituam gêneros textuais como “formas relativamente estáveis tomadas pelos enunciados em situações habituais, entidades culturais intermediárias que permitem estabilizar os elementos formais e rituais das práticas de linguagem”.

Por outro lado, não podemos negar à escola o seu papel de ensino-aprendizagem, pois “não é possível reproduzir dentro dela as práticas de linguagem de referência tais quais aparecem na sociedade” (SANTOS & ALBUQUERQUE, 2005, p.96). Pois os textos, ao entrarem no universo escolar, já deixam de assumir o caráter exclusivamente social, em virtude das peculiaridades da própria instituição.

Nesse sentido, é fundamental que circulem dentro da escola os gêneros textuais que estão presentes no mundo e, para isso, é necessário que o professor crie situações de ensino com propostas concretas, envolvendo leitura e produção de textos.

Entretanto, não podemos nos esquecer das atividades envolvendo a apropriação do SEA, pois o sujeito precisa conhecer as características estruturais e funcionais dos gêneros, mas deve compreender como o sistema de escrita funciona e dominar suas convenções, ou seja, aprender a ler e escrever.

Diante de tudo que foi explicitado, é interessante nos questionarmos sobre como essas mudanças teóricas, presentes em estudos e pesquisas sobre ensino e aprendizagem, vêm repercutindo na prática do professor alfabetizador. E a isso nos dedicaremos no próximo tópico.

1.7. MUDANÇAS DIDÁTICAS E PEDAGÓGICAS NA ATUAL CRISE DO ENSINO: