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2 PARA UMA POÉTICA DA ADAPTAÇÃO DE OBRAS PARA CRIANÇAS E JOVENS

2.1 O QUIXOTE E SUA PASSAGEM PARA O SISTEMA LITERÁRIO INFANTIL

Os procedimentos de adaptação, como já destacado, fazem parte tanto do universo da literatura infantil quanto do universo de obras adaptadas de modo geral. Analisar obras infantis adaptadas de clássicos para adultos nos permite entrever diversos mecanismos aos quais estão submetidos os textos ao entrar no sistema infantil. Essas ferramentas literárias que tornam acessíveis para as crianças contos, canções, poemas, ou obras adultas em geral compartilham em sua essência o mesmo horizonte de expectativas. Assim, adaptar e ensinar são artifícios que estiveram presentes desde os primeiros passos do que se chama “literatura infantojuvenil”. Traduzir, adaptar, reescrever e recontar são ferramentas que possuem um papel central na difusão não só da literatura, mas também da cultura de modo geral. Isso já fazia parte de obras tão antigas como o já mencionado Ysopete historiado que, no século XV, adapta a fabulística clássica para o espanhol.

Segundo Susana González Marín,

[...] las adaptaciones son el resultado de someter una obra literaria a una serie de transformaciones de índole y alcance muy diversos, que se justifican por salvar la distancia entre la obra y un público para el que, en principio, no estaba destinada. […] Una de las peculiaridades de la adaptación es que da por supuesto en el destinatario el desconocimiento de la obra original. Así pues, la adaptación sustituye a la obra que adapta. Es cierto que en ocasiones la lectura de una adaptación puede llevar al público a

desear conocer la obra original y, de hecho, despertar este deseo puede ser uno de sus objetivos. (GONZÁLEZ MARÍN, 2001, p. 9)

Em sua visão sobre as adaptações, González Marín destaca principalmente a função de torná-las acessíveis para um determinado público, algo muito semelhante ao trabalho realizado pelos escritores de literatura infantil. A autora menciona também o fato de que o leitor da adaptação normalmente desconhece a obra original, de modo que, se pensamos no jovem leitor, ao ler uma adaptação ou qualquer outra obra infantil, haverá o mesmo impacto e ele será conduzido pelo relato pela primeira vez como ocorre com a leitura de qualquer outro livro destinado à sua faixa etária. Ou seja, toda obra literária está escrita para um leitor. No entanto, essas obras têm a especificidade de estabelecer um diálogo permanente com um público muito delimitado; neste caso, os jovens leitores.

Não à toa, a literatura infantojuvenil no Brasil tem sua origem histórica nas primeiras adaptações de narrativas estrangeiras, como as de Carl Jansen, já mencionadas no Capítulo 1, que adaptou os primeiros clássicos para os jovens brasileiros, incluindo Dom Quixote no final do século XIX. Foi nesse período que diversos escritores, tais como Figueiredo Pimentel, também adaptador, Julia Lopes de Almeida e Olavo Bilac iniciaram um primeiro movimento de escrever livros para crianças.

Desse modo, adaptar obras, histórias a um público infantil ou adolescente é um procedimento tão antigo quanto a própria literatura infantojuvenil. Este estudo, portanto, não se propõe a um aprofundamento nas teorias de tradução e adaptação1, não obstante considere importantes as reflexões realizadas nesse

campo, como as de André Lefevere, Linda Hutcheon2 ou George Bastin3, que,

embora indiretamente, estão presentes no decorrer deste estudo.

1 O processo de adaptação de uma obra literária supõe um trabalho de reinterpretação da mesma, visando torná-la acessível a um determinado público. O termo “tradução” ainda vem sendo empregado com esse sentido; não obstante, acaba sendo necessário criar categorias de tradução para poder diferenciar os diversos tipos (tradução livre, tradução literal etc.). Além disso, não necessariamente esse processo ocorre entre línguas e culturas diferentes: muitas vezes, dentro de uma mesma língua, pode ocorrer o processo que Jakobson denomina rewording, quando, por exemplo, é necessária a reescritura de um texto antigo com a finalidade de tornar sua linguagem mais acessível, para um público mais jovem, por exemplo. Para o autor, esse processo supõe uma tradução intralingual.

2 Linda Hutcheon propõe a definição do fenômeno de adaptação sob três perspectivas distintas, mas inter-relacionadas. Essas três perspectivas poderiam ser descritas do seguinte modo: primeiro, como resultado de uma transposição ou transcodificação, também chamada de

Outro estudo de grande interesse que também suscitou algumas reflexões é a obra de Gérard Genette, Palimpsestos: A literatura em segundo grau. Genette estima que toda prática de reescritura se apoia sobre uma prática de leitura. O adaptador, portanto, assim como o leitor de modo geral, detém-se um pouco mais em alguma parte da narrativa, de acordo com seu interesse; ou até mesmo chega a saltar determinado episódio, em consonância com o objetivo de sua própria leitura. No caso dos adaptadores, sua leitura será transmitida a outro leitor. Genette defende que, no universo literário, a criação individual se inscreve em uma rede de influências e contribuições mútuas. Assim, podemos inferir que adaptações, traduções, reescrituras e obras literárias em geral compartilham, em diferentes graus, essa rede de aportes mútuos, que é sua pertinência a um sistema literário, que por sua vez contribui para o desenvolvimento da cultura de modo geral, como aponta também André Lefevere:

Toda reescritura, qualquer que seja sua intenção, reflete uma certa ideologia e uma poética e, como tal, manipula a literatura para que ela funcione dentro de uma sociedade determinada e de uma forma determinada. Reescritura é manipulação, realizada a serviço do poder, e em seu aspecto positivo pode ajudar no desenvolvimento de uma literatura e de uma sociedade. (LEFEVERE, 2007, p. 11)

Lefevere menciona a existência de uma poética da reescritura: seria ela apreensível em nossas adaptações? Monteiro Lobato, em Dom Quixote das crianças, como já visto, constrói uma obra em que o leitor tem a impressão de que ela é adaptada à medida que se escreve. O escritor, em um expressivo uso da metalinguagem e da intertextualidade, faz com que seus personagens infantis interfiram na adaptação do Quixote original. Assim, acaba por deixar expostos os diversos constrangimentos aos que se submete a obra ao fazer a passagem para o sistema literário infantil. Tais comentários, dúvidas, interrupções incluídas com expressividade ao longo do texto, por meio das intervenções dos leitores-

paráfrase, que pode envolver uma alteração de meio ou de ponto de vista; segundo, como um duplo processo de (re)interpretação e (re-)criação, processo que envolve a apropriação de uma história produzida originalmente por outrem, que por sua vez é filtrada de maneira subjetiva (para condensações e subtrações) por quem a apropria; e terceiro, sob o ponto de vista de seu processo de recepção, como forma de intertextualidade, palimpsestuosa, em que o receptor estabelece um processo dialógico entre o texto de chegada e o de origem por meio da memória.

3 George Bastín (1998) utiliza o temo “adaptação” ao referir-se à adaptação global de um texto. Esse tipo de adaptação acontece quando há uma ruptura no processo de comunicação e quando há um novo destinatário, uma nova época ou uma nova visão.

personagens, poderiam ser analisadas como uma espécie de tratado sobre o ato de adaptar, ou seja, torna-se possível entrever a poética latente na composição de seu texto.

Tal preocupação com o receptor, expressa abertamente ao longo do texto, deve-se sobretudo à especificidade do gênero de textos para crianças, o texto que já nasce com uma destinação muito precisa, definida pelo adjetivo “infantil”:

Nesse sentido, observamos travar-se em seu cerne uma luta entre o conceito de literatura enquanto construção linguística que se define por sua autonomia e do designativo “infantil” que invoca um recebedor determinado, obrigando o gênero a atender aos interesses desse receptor. (ALBINO, 2010, p. 2)

Em sua obra Poética da literatura para crianças, Zohar Shavit analisa, por um lado, o modo como os conceitos da sociedade com relação à infância influenciam os textos para crianças. Por outro, a autora examina o modo como a posição da literatura para crianças no sistema cultural impõe certos padrões aos textos, conferindo dificuldades complexas para os escritores, tais como atrair ao mesmo tempo dois públicos contraditórios, o infantil-leitor e o adulto-mediador.

Desse modo, embora o escritor/adaptador tenha em seu horizonte de expectativas a criança ou jovem para quem deve adequar o texto, sua obra apenas chegará ao seu destinatário após ser avaliada por um adulto mediador, seja ele o professor, em se tratando da leitura paradidática, ou qualquer outro mediador adulto que analisa a obra e a julga adequada, facilitando assim seu acesso à criança. Assim, o adaptador ou escritor infantil deve lidar também com a noção de adequação à faixa etária e com as expectativas do adulto mediador. Esse caminho que passa obrigatoriamente pelo mediador deve ser cuidadosamente explorado, sob o risco de que, embora escrita para uma criança, a obra possa ser julgada inadequada pelo adulto antes mesmo de chegar às mãos do pequeno leitor.

Shavit também examina outros temas concernentes à composição de textos para crianças, tais como a noção de infância, a autoimagem da literatura infantil, o estatuto ambivalente dos textos, o cânone de livros infantis etc. Seu objetivo é delinear uma poética dos textos para crianças, buscando traços e padrões estruturais em um nível mais universal, de certo modo comum à maioria das literaturas para crianças. A autora dedica um capítulo de sua obra à

discussão das traduções/adaptações do cânone adulto para crianças. Destaca que estudar uma adaptação infantil se torna uma tarefa ainda mais frutífera que o estudo de obras infantis originais, porque as normas de tradução/adaptação acabam por expor mais claramente os obstáculos impostos a um texto que entra no sistema infantil. Assim sendo, o trabalho realizado por Monteiro Lobato em Dom Quixote das crianças “noveliza” os embates enfrentados por um adaptador ao transferir um texto adulto para o sistema infantil.

O presente estudo, portanto, enfrenta o desafio de analisar os Quixotes adaptados levando em conta dois pilares: aquele que trata da formação da literatura infantil e consequentemente da poética vigente nesta categoria de obras e o que analisa os procedimentos de adaptação, as reescrituras e a literatura em segundo grau. Isso, no entanto, não constitui um dilema: antes estabelece um diálogo entre as ferramentas utilizadas por adaptadores e escritores de livros infantis.

Como estudiosos da obra de Cervantes, sabemos que há de haver uma poética por trás da construção de qualquer texto. E, sim, que há poéticas distintas para a construção do Quixote adaptado no Brasil, América Latina e Espanha. No entanto, há algo em comum entre todas as adaptações do Quixote em todas as partes: é a transferência da obra ao sistema literário infantil.

Ao adaptar o Quixote, o adaptador tem em seu horizonte de expectativas a criança, pois a construção que faz do autor implícito é consciente e deliberada, o que ocasiona uma importante transformação: a transferência de um sistema literário a outro. Isso afeta, evidentemente, a poética da obra original, que passa, assim, a conter aspectos poéticos ou retóricos do sistema de destino, no caso, o infantil.

2.2 O QUIXOTE E A NORMA POÉTICA DA ADAPTAÇÃO: ENTRE A TRAMA E O