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2 PARA UMA POÉTICA DA ADAPTAÇÃO DE OBRAS PARA CRIANÇAS E JOVENS

2.3 REVISÕES IDEOLÓGICAS NO QUIXOTE ESCOLAR

Embora, na atualidade, no contexto espanhol não haja propriamente um direcionamento para uma leitura do Quixote moralmente edificante nos termos das adaptações brasileiras, no passado o personagem também foi utilizado como veículo ideológico, como se chegou a mencionar no capítulo anterior desta tese. O Quixote na Espanha, tendo nascido sob a égide da escola, sendo partidário de seus valores, antigamente era avaliado em função de suas qualidades educativas, assim como ocorria com a literatura infantil em geral (ALBINO, 2010, p. 18).

Utilizado como ferramenta ideológica no âmbito do terceiro centenário da obra, o personagem, um pouco descontextualizado da própria obra, serve de ferramenta para o movimento nacionalista, que busca unificar o país e resgatar a autoestima dos espanhóis no momento político da “restauración borbónica”. Eric Storm, em seu artigo “El tercer centenario de Don Quijote en 1905 y el nacionalismo español”, aponta que era difícil encontrar uma figura universalmente reconhecida no ambiente polarizado da Espanha da “Restauración”. Conseguir a união de todas as forças políticas de todas as regiões era quase impossível, porém parecia que a escolha de dom Quixote como figura nacional poderia unir o país inteiro (STORM, 2003, p. 633).

Ao que parece, o movimento obteve êxito, estendendo-se pelo território espanhol:

Llama la atención que todas las regiones participasen en las fiestas, incluso Cataluña a pesar del creciente movimiento regionalista. El centenario, por lo tanto, era una manifestación casi unánime del orgullo nacional aunque cada ciudad y región subrayase, sobre todo, su propio papel en la obra maestra de Cervantes. (STORM, 2003, p. 634)

Esse movimento atinge diretamente o campo editorial, já que estimula a publicação de novas edições da obra e também de novas adaptações, como visto no capítulo anterior. Essas adaptações, em sua maioria direcionadas à escola, contêm em seus paratextos uma série de intenções didáticas e de orientações para professores com o fim de fomentar uma leitura “edificante” da obra.

No prólogo de sua edição escolar, Eduardo Vincenti ressalta a importância de internalizar os ensinamentos da obra:

Cuando se internen por estas lecciones fundamentales de la experiencia, cuando sus espíritus convivan con estas realidades mundanas, ellos sabrán conducirse en todos los actos sociales, porque multitud de preceptos de urbanidad se enlazan unos a otros en el Quijote como rosarios de virtudes. (CERVANTES, 1905b, p. 15)

Na edição de Calleja, também de 1905, há um prefácio para crianças em que logo nas primeiras linhas são apresentados os personagens para os pequenos leitores. O prefácio começa da seguinte maneira:

Para darnos una ligera idea de lo que el Quijote significa, os diré que los dos personajes principales, Don Quijote y Sancho, son representación acabada y completa de la vida. El uno, sublime en su locura, se sacrifica siempre por el bien ajeno, dando su débil y maltrecho cuerpo, testimonio de la bondad y de la grandeza de su alma. El escudero, socarrón y egoísta, no comprende el sacrificio sin la utilidad inmediata. (CERVANTES, 1905a)

Nessa mesma edição há outro prefácio, para professores, que adverte quanto à dificuldade de se ler uma obra como o Quixote para as crianças, incentivando o professor a acompanhar e direcionar a leitura para que a mesma seja edificante.

Se no âmbito das adaptações dom Quixote é idealizado como modelo de ser humano, nos eventos e publicações adultas desse período a idealização parece não ter limites. Intelectuais como Unamuno, Menéndez Pelayo, Mariano Cavia (o idealizador do centenário) e Navarro Ledesma proferiram diversos discursos, publicaram obras e incitaram a sagração do personagem.

Don Quijote y Sancho por ejemplo podían ser comparados respectivamente con la “razón pura” y la “razón práctica” de Kant pero Cervantes era superior a Kant ya que por la influencia mutua entre amo y escudero había logrado una armonía nueva una síntesis superior de esta dicotomía kantiana tampoco Nietzsche puede con el autor español ya que Don Quijote el “superhombre” de Cervantes no se separa del vulgo, sino que se aproxima de él. (STORM, 2003, p. 655; LEDESMA, 1944, p. 301)

Assim, com a publicação de obras e difusão de diversos eventos, atos e discursos nos quais o Quixote é visto como personagem exemplar no âmbito social, espera-se que no contexto escolar essas leituras do personagem fossem transmitidas aos alunos, leitores das adaptações.

Na atualidade, cervantistas e filólogos são responsáveis por algumas das adaptações mais recentes na Espanha4. José Manuel Lucía Megías e Rosa

Navarro, catedráticos de importantes universidades espanholas, Rosana Acquaroni e Nieves Sanchez, filólogas de formação e estudiosas em atividade, são os adaptadores de diversas obras utilizadas nas escolas. Distantes do compromisso de adaptar um Quixote didático, essas obras, embora se aproximem muito da obra original do ponto de vista da trama e da escassa inclusão de acréscimos, aproximam-se do leitor ao adaptar a linguagem para torná-la acessível aos pequenos. Desse modo, tais obras prescindem do estilo literário mais elevado e mais próximo à linguagem cervantina para privilegiar uma linguagem mais próxima à criança.

Enquanto na literatura adulta o estilo elevado está relacionado com a ideia de literariedade em si mesmo, na literatura para crianças está relacionado com um conceito didático e com a tentativa de enriquecer o vocabulário infantil (SHAVIT, 2003, p. 176).

Assim, algumas obras adaptadas acabam por conter uma linguagem de estilo elevado com claros objetivos didáticos, já que nem sempre essa literariedade se relaciona com uma aproximação à obra original, isto é, se há estilo elevado, não significa necessariamente que se trata de preservação de estilo cervantino, como no caso de algumas adaptações brasileiras.

Ao contrário do que propunha Monteiro Lobato em seu Quixote com a narração de Dona Benta, que optava por contar a história do cavaleiro com palavras suas, nas adaptações brasileiras deste estudo verificaremos uma tendência em manter uma linguagem mais formal e “literária”, do ponto de vista do sistema literário adulto. É importante ressaltar que literariedade é um conceito que pertence a outro sistema, que não o de obras para crianças. Assim, por exemplo, se analisamos o primeiro fragmento da obra, veremos como isso ocorre.

4 No mercado brasileiro, das adaptações mencionadas neste fragmento, apenas a adaptação de Rosana Acquaroni está disponível.

Tabela 4. Comparação: adaptação do primeiro fragmento da obra

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