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O Reconhecimento das línguas gestuais como línguas

PARTE I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

CAPÍTULO 1 – Pressupostos teóricos e práticos de uma abordagem

1. O Reconhecimento das línguas gestuais como línguas

Muitos investigadores, nacionais e estrangeiros, defendem o estatuto de verdadeira língua das línguas gestuais e a sua importância no desenvolvimento linguístico e cognitivo das crianças surdas. Os estudos do linguista americano William Stokoe, iniciados nos anos 60 sobre a Língua Gestual Americana (ASL) viriam a abrir o caminho ao reconhecimento das línguas gestuais em todo o mundo4, enfatizando a sua

importância no desenvolvimento linguístico e cognitivo das crianças surdas, assim como o direito ao seu uso por todos os cidadãos surdos.

Este e outros autores, investigadores de renome das línguas gestuais, designadamente, Stokoe, Poizner, Klima e Bellugi5, são referidos por Amaral (2002) a propósito do

reconhecimento do estatuto linguístico da língua gestual americana. De acordo com a autora, o facto de as línguas gestuais utilizarem as mãos, o rosto e o corpo como

4 Os países onde a Língua Gestual se encontra reconhecida na Constituição são: Portugal, Brasil, Equador, Finlândia,

Uganda, República Checa, África do Sul e Venezuela. São muitos os outros países onde existe outra legislação reconhecendo as línguas gestuais, entre eles: E.U.A., Espanha, Suécia, Suíça. (consulta efectuada em 15.12.06 no sítio da Federação Mundial de Surdos: www.wfdeaf.org/documents.html.

5 Stokoe, W., Sign Language Structure, Studies in Linguistic Occasional Papers, Washington, Ed. University of Buffalo

Press, 1960; Stokoe, W., Casterline, D., Croneberg, C., A Dictionary of American Sign Language on Linguistic Principles, Washington, Ed. Linstock Press, 1965, Poizner, H., Klima, E., Bellugi, U., What the Hands Reveal About the Brain, Cambridge, Ed. Massachusetts Institute of Technology, 1995

processos articulatórios levava a crer que estas línguas não seriam completas, mas investigações levadas a cabo com a língua gestual americana

demonstraram que este sistema visuo-espacial apresenta estruturas formais aos mesmos níveis dos das línguas orais, nomeadamente, um nível sub-lexical de estrutura interna dos gestos (correspondente ao nível fonológico das línguas orais) e um nível de estrutura que especifica a articulação que os gestos devem apresentar na frase (o nível gramatical equivalente ao do das línguas orais). (Amaral, 2002: 16)

Stokoe prosseguiu ao longo da vida com diversos estudos linguísticos que continuaram a reforçar e a valorizar o estatuto de língua das línguas gestuais. Em Stokoe (1980) podemos encontrar uma análise das semelhanças e diferenças entre os dois sistemas: o inglês e o gesto. Este autor procura desmistificar alguns preconceitos relacionados com características específicas de cada um dos sistemas. Existem frases gestuais em que os gestos podem ocorrer na mesma ordem que numa frase em inglês, ou podem ocorrer numa ordem diferente. Por outro lado, podem parecer estar omissos elementos da frase gestual que existem numa frase em inglês ou podem não existir correspondências em inglês para elementos gestuais, sem que estes factos possam ser considerados como agramaticais. O autor refere a este propósito que a gramática da língua gestual tem as suas próprias regras e o seu próprio léxico com os seus significados, que diferem das regras e léxico do inglês. Reforça a ideia dizendo que:

Seen as a whole system, then, Sign is quite like English or any other language. Its elements contrast with each other – what acts and action in one sign with what acts and action in another; but the contrast is visible not audible. (Stokoe, 1980: 20-21)

Klima & Bellugi são investigadores que, tendo realizado estudos sobre o estatuto de língua das línguas gestuais, se têm interessado por aspectos mais específicos destas línguas, por exemplo: de como elas podem revelar aspectos de sofisticação idênticos às línguas faladas, nomeadamente na poesia, e de como elas funcionam no nosso cérebro e podem contribuir para um melhor conhecimento sobre o seu funcionamento.

No seu artigo “Wit and poetry in American Sign Language”6, estes autores desenvolvem um estudo científico sobre o uso do gesto, bastante detalhado e exploram o lado irónico e metafórico das manifestações de criatividade poética em língua gestual. A exploração do som na língua oral é substituída pela exploração do gesto cuja modulação possibilita jogar com os significados e os sentidos.

Outro aspecto analisado por estes e outros autores é o da organização do cérebro em termos linguísticos, para as línguas faladas e em particular para as línguas gestuais. Poizner, Klima e Bellugi, na sua obra What the Hands Reveal about the Brain7, relatam

uma investigação realizada com doentes afásicos, falantes nativos de língua gestual, com lesões no hemisfério esquerdo ou no hemisfério direito, sujeitos a diferentes tipos de testes linguísticos. Foi possível concluir, que a língua gestual se encontra sedeada na região do cérebro destinada à linguagem, no hemisfério esquerdo, sendo que a audição e a fala não são necessárias para esta função: “Hearing and speech are not crucial for left specialization for language. It is the left hemisphere in man that is dominant for sign language.” (Klima & Bellugi, 2005). Foi ainda possível determinar que a utilização do espaço, em língua gestual, é dominada pelo hemisfério esquerdo no que diz respeito à sintaxe, mas que os aspectos de localização ”topográfica”8 são regulados pelo hemisfério

direito. É possível concluir que: “There is a complementary specialization for sign and nonsign spatial functions.” (Klima & Bellugi, 2005). Estas conclusões permitirão aprofundar estudos que nos levem a entender melhor as lesões cerebrais e como estas afectam a capacidade humana da linguagem. Importa, no entanto, reter que estes estudos contribuíram fortemente para o reconhecimento de que, independentemente das diferenças na forma entre línguas faladas e línguas gestuais, as crianças surdas e as crianças ouvintes mostram um padrão semelhante no desenvolvimento da linguagem, com base na capacidade humana da linguagem. Como os autores concluem: “The left hemisphere in man may have an innate predisposition for language, regardless of modality.”

Diversos investigadores nacionais 9 realizaram estudos sobre a Língua Gestual

Portuguesa reconhecendo e comprovando o estatuto de língua da língua gestual e a sua importância no desenvolvimento linguístico e cognitivo das crianças surdas portuguesas.

O primeiro estudo científico realizado e publicado em Portugal, intitulado Mãos que falam, que se debruçava já sobre o estatuto linguístico da língua gestual portuguesa e da sua importância na educação das crianças surdas afirmava, em 1980, que

“Estes resultados demonstram, claramente, que o uso precoce da linguagem gestual não impede a aquisição e o desenvolvimento da linguagem oral e das capacidades com

7 Obra publicada em 1990. Investigação apresentada por Klima & Bellugi, em Lisboa, na Universidade Nova, em 14 de

Outubro de 2005 (Documento fotocopiado)

8 Klima e Bellugi, 2005

9 Prata, 1980; Gestuário da Língua Gestual Portuguesa, 1991; Amaral, 1993,1995 e 2002; Amaral, Coutinho e Delgado-

ela relacionadas, como a leitura e a escrita, mas, antes, facilita, de modo efectivo, essa aquisição.” (Prata, 1980: 61)

Em 1994, Amaral, Coutinho e Delgado-Martins publicaram em livro os resultados preliminares de uma investigação sobre a gramática da Língua Gestual Portuguesa que vinha desmistificar algumas ideias preconcebidas sobre a língua gestual e reafirmar o estatuto de língua da língua gestual portuguesa, à semelhança do que acontecia noutros países: Estados Unidos da América, Inglaterra, França, Dinamarca, Suécia, Holanda, Itália, e Alemanha10. No prefácio desta obra, da autoria de Robert E. Johnson, professor

e investigador da Universidade de Gallaudet, pode ler-se:

A criação de um documento escrito detalhando a estrutura e o conteúdo da LGP demonstra que esta língua é uma língua em si e por si, independente da Língua Portuguesa – ou mesmo de qualquer língua falada – quer na estrutura quer no vocabulário. Este estudo apresenta a LGP tanto como uma verdadeira língua digna de ser objecto de estudo por linguistas, como uma língua a ser usada pela comunidade surda e na educação de surdos. (Op.cit: p. 16)

Delgado-Martins (1996: 103) defende o estatuto linguístico da língua gestual, descrevendo-a como “um sistema organizado segundo as regras de uma língua, com modalidade de produção motora da mão e do corpo, e com modalidade de percepção visual” e aponta várias características e estudos que o comprovam, como: a arbitrariedade do signo gestual; o facto de ser uma língua natural e materna das crianças surdas e a sua localização específica no cérebro ser a mesma que para a linguagem verbal.

O contributo das publicações e investigações realizadas e a acção social e política desenvolvida pela comunidade surda 11 , representada pela Comissão para o

Reconhecimento da Língua Gestual Portuguesa, constituída em 15 de Novembro de 1995 – actualmente celebrado como o Dia Nacional da Língua Gestual Portuguesa – e onde se encontravam representadas associações de surdos, pais, professores e intérpretes, conduziu, em 1997, ao reconhecimento oficial da Língua Gestual Portuguesa, pela 4ª revisão constitucional, Lei 1/97 de 20 de Setembro no seu artigo 74º, nº 2, alínea h), com a seguinte redacção:

Proteger e valorizar a língua gestual portuguesa enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e da igualdade de oportunidades.

10 Dados referidos em Amaral, Coutinho e Delgado-Martins (1994).

11 Processo descrito por Duarte e Almeida (2003), no artigo “Recognizing and Protecting Sign Language in the

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