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O reconhecimento no Sistema da eticidade

Capítulo 2 A intersubjetividade no Jovem Hegel

2.3 O Sistema da eticidade

2.3.1. O reconhecimento no Sistema da eticidade

Na filosofia de Fichte vimos que os questionamentos acerca dos pressupostos da filosofia de Kant se coadunam na dedução transcendental de um âmbito intersubjetivo da constituição da liberdade individual. Destarte, a intersubjetividade e o reconhecimento- como exigência da consciência para atingir a consciência de si mesmo como individuada por um outro que a defronta, e reconhece na interpelação reciproca, como interação, um espaço de agir livre mútuo- passam a integrar o arcabouço de pressupostos da filosofia social hegeliana.

Aliando o acima à atmosfera expressivista do Sturm und Drang, e a exaltação romântica da Pólis grega, Hegel compreende os costumes [Sitte] e as práticas intersubjetivas de um povo como espaço de interação- ou medium social nas palavras de Honneth (2003, p. 41)- no qual podem exercer a liberdade individual em integração com a coletividade em organicidade e coesão. Essa posição avança em relação à Fichte, pois o espaço de interação não é concebido como ambiente de restrição mútua, para que ambos, o interpelado e o interpelador nas palavras de Fichte, possam agir livremente e deixar o outro agir sob mesmo princípio; ao contrário, esse âmbito é o de realização comunitária da liberdade.

Em segundo lugar, Hegel vê os costumes e os usos comunicativamente exercidos no interior de uma coletividade como o medium social no qual deve se efetuar a integração de liberdade geral e individual; ele escolhe o termo ‘costume’ [Sitte] com cuidado, a fim de deixar claro que nem as leis prescritas pelo Estado nem as convicções morais dos sujeitos isolados, mas só os comportamentos praticados intersubjetiva e também efetivamente são capazes de fornecer uma base sólida para o exercício daquela liberdade ampliada (HONNETH, 2003, p. 41).

É verdade, avançando para além de Platão e Aristóteles, Hegel inclui dentro da eticidade absoluta a esfera da propriedade e do direito, para demarcar as relações de troca do mercado e jurídicas como sendo uma “zona neutra” na qual impera os interesses particulares e as associações negativas entre os indivíduos. Entretanto, no período de Jena, a estrutura do pensamento político clássico se revela fortemente no elemento central de sua filosofia social, a saber, pensar os processos de socialização a partir de “vínculos éticos, em cujo quadro os sujeitos se movem juntos desde o princípio, em vez de partir dos atos isolados dos sujeitos” (HONNETH, 2003, p. 43).

Segundo Honneth (Ibid.), essa afirmação deve ser entendida sob o sentido radical de haver em Hegel o pressuposto quase completamente natural de um contexto de intersubjetivo de atribuições normativas e de costumes compartilhados como condição a todo processo de socialização. Daí que surge para Hegel a tarefa decisiva de explicar, não a necessidade de pensar como se forma a comunidade em geral, mas antes “a transformação e ampliação de formas primevas de comunidade social em relações mais abrangentes de interação social” (HONNETH, 2003, p. 44). É esse sentido que toma os escritos de Jena, e, sobretudo, o sistema: como a eticidade natural deve se desenvolver para formas mais sofisticadas de interação, seguindo o esquema iniciado pela organização da família, trabalho e o direito, seguido de negação desse estágio anterior pelo ato criminoso como negatividade em si, até atingir a eticidade absoluta. Após a exposição do escopo, surge como passo necessário a explicitação do modo como esse processo, marcadamente teleológico, apresenta suas estruturas internas.

É uma importante tese de Honneth aquela que vê a absorção do conceito de reconhecimento de Fichte no Sistema como executando esse papel de elucidar como ocorrem as diversas formas de ação intersubjetiva, como o contemporâneo afirma: “Hegel retoma de modo positivo a teoria fichtiana do ‘reconhecimento’ para descrever com seu auxílio a estrutura interna das formas de relação ética, que ele quis pressupor fundamentalmente a título de um ‘primeiro’ da socialização humana” (HONNETH, 2003, p.46). Hegel exclui as implicações transcendentais de Fichte e transfere esse reconhecimento intersubjetivo para dentro da práxis de uma sociedade, a qual é vista a partir de então como configuração prática do reconhecimento. O que subsiste dessa aplicação é que as relações éticas são tomadas como expressão daquele estofo de inteligibilidade recíproca o qual se encontram desde sempre os parceiros de interação; assim a possibilidade de uma comunidade retira sua garantia desse movimento de reconhecer mútuo.

Doravante as relações éticas de uma sociedade representam para ele as formas de uma intersubjetividade prática na qual o vínculo complementário e, com isso, a comunidade necessária dos sujeitos contrapondo-se entre si são assegurados por um movimento de reconhecimento (Ibid., p. 46-47).

A utilização do reconhecimento serve à Hegel para dar uma guinada diferente em sua filosofia social na direção de se desvencilhar, pelo menos em parte, de um modelo de socialização teleológica compreendido como desdobramento de uma natureza que já

contém as formas da intersubjetividade. De certo modo, Hegel já era ciente da necessidade de outro ponto de partida- a não ser as formas primevas de relação que já são circunscritas in natura; como veremos, nessa necessidade o filósofo moderno complementa esquematicamente o nível ético natural contrapondo-o ao seu contrário, onde aquele estágio reconhecido do estofo de inteligibilidade originário é suspenso por meio do crime. Importante frisar que o reconhecimento operado pelos parceiros de interação é diferente em cada grau ético, ou seja, a cada relação ética corresponde uma forma de reconhecimento, na qual o sujeito é reconhecido em abrangência cada vez maior em suas capacidades e propriedades.

O movimento do reconhecimento tem em Hegel a mesma característica procedimental que em Fichte, no que se refere à aquisição do saber de si a partir do reconhecimento e contraposição entre duas consciências:

A estrutura de uma tal relação de reconhecimento recíproco é para Hegel, em todos os casos, a mesma: na medida em se sabe reconhecido por outro sujeito em algumas de suas capacidades e propriedades e nisso está reconciliado com ele, um sujeito sempre virá a conhecer, ao mesmo tempo, as partes de sua identidade inconfundível e, desse modo, também estará contraposto ao outro novamente como um particular (HONNETH, 2003, p. 47).

No citado movimento, vemos ocorrer concomitantemente o reconhecimento e (por) contraposição; essa característica implica em que cada consciência veja em seu respectivo defrontante como, primeiro, um ser racional livre com o qual compartilha uma rede axiológica, segundo, no retorno a si, percebe-se como uma consciência individual a qual cabe propriedades, volições e necessidades- enfim identidade- que não são imediatamente referidas àquela rede. Com certeza, esse segundo passo não pode ser executado sem o primeiro, sem o estofo de inteligibilidade originário, mas o que Honneth quer destacar em Hegel é que dentro do quadro de desenvolvimento em etapas graduais de relações intersubjetivas, o retorno a si marca uma necessidade inexorável de individuação a qual corresponde uma nova exigência de reconhecimento. Isso é muito importante, pois estabelece um dos elementos motores básicos do processo de socialização em geral segundo Hegel, a saber, o reconhecimento da particularidade e individualidade de cada consciência.

“Ora, a ideia da absoluta eticidade é o retomar em si da realidade absoluta como uma unidade tal que este retomar e esta unidade sejam totalidade absoluta; a intuição da Ideia

é um povo absoluto; o seu conceito é o ser-um das individualidades” (HEGEL, 1991, p. 13). Segundo Hegel, a universalidade e particularidade devem estar na eticidade absoluta em unidade verdadeira, o quer dizer, que nas vontades particulares esteja já a vontade universal, e na vontade universal estejam contempladas as vontades particulares, de um modo verdadeiro e orgânico. Aliando o que foi exposto sobre o processo de individualização inexorável ao reconhecimento, temos que Hegel deve ser capaz de explicar o desenvolvimento dos vínculos comunitários associado ao crescimento da liberdade individual, para haver realmente uma eticidade que não seja a subsunção da intuição sob o conceito, ou o contrário, de modo violento.

pois só quando o curso histórico-universal do ‘vir-a-ser da eticidade’ é concebido como um entrelaçamento de socialização e individuação pode-se aceitar que seu resultado seria também uma forma de sociedade que encontraria coesão orgânica no reconhecimento intersubjetivo da particularidade de todos os indivíduos (HONNETH, 2003, p. 45).

O reconhecimento ganha a determinação de ser força motriz nas relações intersubjetivas que devem aliar socialização à individualização, o que também é defendido por Campello (2014, p. 99): “Honneth propõe que o reconhecimento exerce função geradora da sociedade e permite conceituar o desenvolvimento da individualização associada à interação com a comunidade”. Hegel começa a se desvencilhar do reconhecimento de certo modo ainda monológico e imobilista de Fichte ao atribuir a ele essa característica. Para Honneth (2003, p. 47), Hegel avança em relação à Fichte quando dentro desse quadro do reconhecimento estabelece que quando o sujeito conhece mais de si na relação com o outro, de sua particularidade, abandona necessariamente o estado ético alcançado até então, pois necessita uma vez mais ser reconhecido naquilo que ele mesmo não sabia ou não era consciente de si mesmo. Assim, o processo de socialização é entendido como movimento de reconhecimento e contraposição, esse último deve ser entendido como conflito por afirmação de uma nova dimensão do si, ou seja, luta por reconhecimento. O que deve ser retido, a inovação hegeliana está em colocar justamente em movimento o reconhecimento com o conceito de luta, como abandono de estágios prévios de relação em nome de uma reivindicação conflituosa de uma nova dimensão individual.

Hegel vê inscrita ao mesmo tempo uma dinâmica interna que lhe permite ainda dar um segundo passo além do modelo inicial de Fichte: visto que os sujeitos, no quadro de uma relação já estabelecida eticamente, vêm sempre a saber algo mais acerca

da sua identidade particular, pois trata-se em cada caso até mesmo de uma nova dimensão de seu Eu que veem confirmada, eles abandonam novamente a etapa de eticidade alcançada, também de modo conflituoso, para chegar de certa maneira ao reconhecimento de uma forma mais exigente de individualidade; (HONNETH, 2003, p. 47).