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Capítulo 2 A intersubjetividade no Jovem Hegel

2.2 Intersubjetividade e Reconhecimento em Fichte

2.2.2 Reconhecimento em Fichte

Estabelecida a posição da intersubjetividade, como “condição transcendental da constituição dialética da consciência-de-si” (Ibidem, p. 47) - que através da interpelação, solicitação ao outro pelo uso de sua liberdade, ocasiona um tipo específico de interação entre as subjetividades, marcadamente como ação não coercitiva sob outros i.e. não causal- estamos aptos a tratar da questão do reconhecimento. Embora esse tema já esteja sobrevoando as considerações desde quando demonstrado a problemática da suposição da existência de seres racionais e livres exteriores a consciência, no contexto das Preleções, na qual: “ação recíproca pela liberdade é o caráter positivo da sociedade” (FICHTE, 2014, p. 40). Nesse sentido e adotando novo elementos teóricos, o acontecimento social é pensado por Fichte como acontecimento de reconhecimento, ou seja, ato no qual identifico o outro como um ser humano livre e racional, e entro em uma relação com ele de concessão recíproca de liberdades e limitações, somente através das quais é possível haver uma comunidade verdadeiramente ética; a interação é, então, o deixar atuar o outro sobre mim na mesma media em que atuo sobre ele, sem que haja propriamente subordinação de qualquer parte.

Fichte compreende o impulso social como intenção do sujeito em reconhecer o outro que se lhe contrapõe como um ser humano, a fim de poder entrar com ele numa interação mediada pela liberdade e numa atuação comunitária recíproca de seres

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SIEP, L. (1992). ,,Naturrecht und Wissenschaftlehe’’. In: Khalo, M.; Wolff, E. A.; Zacky, R. (Orgs.)

racionais livres segundo conceitos (LIMA, 2014, p.47, Grifo nosso).

Tão necessário quanto o conceito de liberdade como realização de fins na objetividade que estipulo por minha subjetividade sem coerção, está o segundo momento da mesma, o qual consiste na capacidade de autolimitação; esse também um pressuposto de uma sociedade eticamente organizada: “os sujeitos têm que se pôr como tais, ou seja, como livres e, no entanto, como (auto-) limitados” (Ibidem, p. 92). A autolimitação é etapa necessária que ocorre de certo modo posterior ao reconhecimento; primeiro por conta de só ser possível solicitar agir livre uma vez reconhecido o outro como ser racional; e segundo, devido a Fichte estabelecer que um tal estado de reconhecimento recíproco pode e é suspenso, o que interrompe a necessidade do agir não coercitivo sob outros. O primeiro ponto já foi debatido, o segundo tem sua raiz na questão do direito em Fichte. O papel transcendental do reconhecimento em Fichte, em estreita conexão com a atividade prática de um sujeito determinado convivendo com seus pares, cria aquela pressuposição necessária para a comunidade ética, a “sociedade perfeita” de Fichte (Ibidem, p. 49). Nesse contexto, o reconhecimento serve para criar os laços solidários e de respeito mútuo a vigorar na comentada comunidade sendo o pano de fundo no qual pode surgir a confiança recíproca no cumprimento de expectativas normativas generalizadas e autoconcedidas que surgem da relação intersubjetiva em uma sociedade. É essa perspectiva que permite Honneth caracterizar o reconhecimento em Fichte como “ ‘ação recíproca’ entre indivíduos subjacente a relação jurídica” (HONNETH, 2003, p. 46). O interessante é notar o reconhecimento como subjazendo a relação jurídica, isto implica na consideração de que somente dentro desse horizonte de confiança mútua pode surgir o direito para manutenção de um estado prévio de igualdade de liberdades recíprocas; e ainda, somente pode ter sentido o direito se interiormente a lei prescrita possui validade na forma de assunção por parte dos membros de uma coletividade. Em outras palavras, Lima considera o contexto de fundamentação do reconhecimento como “relação originária que está na base de toda outra relação jurídica, o qual cria a ‘fidelidade e crença’ mútuas como fundamento de possibilidade da relação social pautada pelo direito e que ele quer manter e restaurar” (LIMA, 2014, p. 50).

Dito isso, é possível diferenciar em Fichte a sociedade do Estado: “O Estado, âmbito do direito, enquanto tentativa pragmática de manutenção, através da coerção de um comportamento exteriormente conforme a ética (...)” (LIMA, 2014, p. 48). Esta posição

de algum modo já estava presente nas Preleções quando Fichte estabelece que o Estado “visa sua própria aniquilação: o fim de todo governo é tornar supérfluo o governo” (FICHTE, 2014, p. 38). Ou mais claramente: “Vejam, meus senhores, como é importante não confundir a sociedade em geral com o tipo particular, empiricamente condicionado, de sociedade, que se chama Estado” (Ibid., p. 38). A sociedade “se constitui como um estofo de inteligibilidade que fundamenta a confiança mútua e os laços de solidariedade social (...)” (LIMA, 2014, p. 49). O primeiro opera por coerção e a segunda por reconhecimento, sendo esta última categoria anterior e meio pelo qual aquele possui validade.

O Estado pode levar um indivíduo a reconhecer o direito de outro sobre algo ou contra alguém, mas isto é um reconhecimento de segunda ordem. Aqui se trata, no entanto, de um reconhecimento originário, da emergência da própria consciência individual da liberdade em sua necessária mediação intersubjetiva: é este elemento aqui criado que irá tornar primeiramente possíveis as relações arbitrárias entre indivíduos, isto é, uma convivência jurídica real (Ibid., p. 101). Os conceitos de reconhecimento, intersubjetividade, e o recém-adquirido direito se coadunam para expressar Fichte como o inaugurador da tradição de uma constituição intersubjetiva da consciência-de-si, segundo o parâmetro metodológico de dedução transcendental. Se antes a posição de Lima foi a de considerar que Fichte consegue escapar de um modelo monológico para se refletir sobre a constituição da consciência, ele mesmo é levado a admitir que essa fuga não é plena e se desenvolve no bojo de um único ponto de partida, a saber, a autoconsciência originária “intuída intelectualmente como unidade de sujeito e objeto” (LIMA, 2014, p. 59). O Eu ainda é de certo modo enredado em sua esfera transcendental marcadamente sob forma e conteúdo de uma razão solitária.