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3. NACIONALISMO (1949-1960)

3.4. O rompimento com Koellreutter

A inclusão do nome de Koellreutter nas discussões referentes à elaboração do programa de atuação dos compositores progressistas no Brasil, informação colhida na correspondência entre Santoro e o Sindicato dos Compositores Tchecos, não implica necessariamente que houvesse um interesse de sua parte em aderir às resoluções tomadas em Praga. Na verdade, Koellreutter se mostrava um tanto reticente para com a forma de ―arte dirigida‖ que estava em proposição, sendo uma de suas principais restrições, a excessiva sobrecarga ideológica naquilo que considerava ser apenas um ―problema musical‖.

Estas reservas de Koellreutter para com as resoluções tomadas em Praga aparecem expressas de forma precisa nas correspondências enviadas à Santoro, nas quais relata a falta de clareza quanto à utilização das expressões ―conteúdo‖, ―forma‖ e ―técnica‖. De acordo com Koellreutter, uma vez que estes conceitos estariam sendo tomados uns pelos outros, a ―confusão‖ terminológica formada teria levado os compositores progressistas a colocaram- se, a priori, contra significativas experiências musicais como o atonalismo e o

dodecafonismo. De acordo com sua concepção, se o problema da música contemporânea era um problema de ―conteúdo‖, ou seja, queriam evitar o conteúdo negativo por sua inadequação a uma sociedade otimista, porque então a oposição a algo que nada mais era do que ―técnica‖?

A técnica é apenas um meio, mas nunca um fim e tãopouco um característico. [....] Acho que não devemos discutir a ―técnica‖, mas o ―conteúdo‖.[....] pode-se estar ideologicamente dentro do ―Manifesto de Praga‖ de uma como de outra maneira. (Escrevendo em dó-maior ou na técnica dos doze sons). Em tudo isso, em toda essa discussão, é necessário separar o conteúdo, a técnica e os elementos formais da obra. O nosso problema é o conteúdo. Um novo conteúdo. Este criará uma nova forma como todos sabemos. (Koellreutter, 1948) (Correspondência a Santoro, ACS)

Responsável pela seção musical da revista Fundamentos, Koellreutter publicaria o artigo Arte Funcional - A propósito de “O BANQUETE” de Mário de Andrade,42 em que expõe de forma definitiva sua noção de arte interessada e participativa. Ao conceituar ―arte dirigida‖ revela o principal ponto conflitante entre suas idéias e às que defendia Santoro. Para Koellreutter não se tratava em absoluto de ―regulamentar‖ ou ―decretar‖ um determinado estilo ou gênero de arte, mas sim, ―de orientar e dirigir o artista, como representante de uma coletividade, num sentido construtivo e demonstrar a ele as contradições que se manifestam em suas obras‖, contradições que corresponderiam ao retorno a um ideal de beleza que não era absoluto, mas apenas fruto de uma época decadente.

Neste sentido, Koellreutter apontaria o erro em se valorizar uma arte baseada em ―emoções particulares‖ e ―aspirações subjetivas‖. Se a arte da classe dominante era apenas diversão, impregnada pelo ―indiferentismo‖ político-social de seus artistas, portanto, arte extremamente individualista, estava claro que jamais poderia cumprir esta nova função de aproximação entre os homens que a sociedade do futuro exigia. Este papel só poderia ser desempenhado pelas novas gerações, comprometidas como estavam com ―o progresso revolucionário da humanidade‖ e empenhadas em desenvolver sua própria ―grande arte‖ para a atualidade.

42

KOELLREUTTER. H,J. ―Arte Funcional. A Propósito de ―O Banquete‖ de Mário de Andrade‖,

Quanto à crença de Koellreutter de que a orientação crítica dispensada ao artista deveria proceder ―de uma coletividade preparada‖, ou seja, de um ouvinte consciente de que a linguagem musical se processaria em função do desenvolvimento social, há um interessante depoimento de Santoro a este respeito, em torno do qual podemos apreciar, tanto o alcance da influencia intelectual exercida por Koellreutter sobre seu pupilo em meados da década de quarenta, quanto o grau de desconfiança que terminaria por substituir a antiga camaradagem. Tal como se depreende das palavras de Santoro, embora houvesse prematuramente ocorrido um interesse de sua parte pelos modelos proporcionados por Prokofiev e Schostakovich, ou seja, anteriormente à conversão ao nacionalismo, esta tendência teria sido desencorajada por Koellreutter com base em argumentos fundamentados na noção de ―coletividade preparada‖.

―Não sabia o que se passava na U.R.S.S., e fui até mal informado pela pessoa a quem devotava inteira confiança, e se mostrava simpatizante, afirmando ser lá onde este tipo de música formalista era mais tocada e apreciada. Afirmava que no país do socialismo o atonalismo era apreciado, porque o povo tinha educação artística. Quando dava o exemplo de Schostakoviski e Prokofieff, respondia-me que esta era arte burguesa, para exportação, afim de iludir o mundo ocidental conquistando as suas simpatias através de uma arte atrazada.. Na minha boa fé, e na falta de informações mais diretas ia aceitando.(Santoro, [195?]) (Cláudio Santoro [texto autobiográfico], ACS)

Com a instauração da polêmica entre Koellreutter e Camargo Guarnieri, decorrência da publicação da famosa Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil, Santoro publicaria na Revista Horizonte (RS), em abril de 1951, o artigo ―Em Torno da Carta de Camargo Guarnieri‖, texto em que aciona um ataque aberto à pessoa e à carta- resposta de Koellreutter, concentrando-se na tese de que este encobria sua ideologia burguesa com uma ―capa progressista‖ e uma linguagem ―pseudo-dialética‖. Para Santoro, o princípio defendido por Koellreutter em sua resposta a Guarnieri, qual seja, de que o dodecafonismo não era nem estilo nem tendência estética, mas uma técnica de composição criada para estruturar o atonalismo, ―conversão das mutações quantitativas do cromatismo em qualitativas, através do modalismo e do tonalismo‖, apesar de bem arquitetado, nada mais era do que uma interpretação mecanicista, uma falsa aplicação da dialética que trazia em si contradições internas.

―Dizem eles que a música começou com o uníssono, a oitava, depois passou-se a usar a quinta, posteriormente a quarta, a terça a sétima e a segunda. Dentro deste raciocínio puramente técnico, imaginam arquitetar toda uma técnica empregando até frases dialéticas como a seguinte: ―Lógica conseqüência de uma evolução (o dodecafonismo) e da conversão das mutações quantitativas do cromatismo em qualitativas através do modalismo e do tonalismo‖. Ora, tudo isso não passa de uma camuflage para desviar o assunto do seu verdadeiro sentido. O que desejam é levar a música para uma série de considerações super requintadas, fazendo desta maravilhosa arte, um refúgio para iniciados ou super-homens que se deliciam com o jogo das notas puramente intelectual transformando a música numa verdadeira ciência matemática. Estes pseudo ―heróis‖ ou ―intelectuais da música‖ sentem-se chocados com qualquer coisa que lembre a beleza natural e espontânea de uma melodia simples, considerando-a uma verdadeira banalidade. (Santoro, 1951) (Em Torno da Carta Aberta de Camargo Guarnieri, ACS)

A esta altura, seria impossível não salientar a proximidade entre as idéias defendidas por Camargo Guarnieri em sua ―carta aberta‖ e o conteúdo dos artigos de Santoro escritos após o advento do Congresso de Praga. De acordo com as palavras extraídas do citado artigo de Santoro, o próprio Koellreutter teria declarado nos jornais, nos dias que se seguiram à publicação de carta de Guarnieri, como os ―Zhdanovianos‖ e os ―medíocres‖ estavam de acordo com o manifesto do compositor paulista. Ressalte-se, entretanto, que enquanto Guarnieri efetua seu ataque ao dodecafonismo, mais diretamente, no plano musical, Santoro, ao contrário, jamais se afasta de uma postura ideológica radical, em que ideologias burguesas ou proletárias são constantemente relacionadas a cada uma das duas correntes musicais em questão.43

Em sua avaliação do episódio, Kater (2001, p. 126) conclui que o alvo visado por Guarnieri não foi necessariamente o estético, uma vez que, encontrando-se o Grupo Musica

Viva na fase final de seu processo de desarticulação, o ―dodecafonismo não representava de

fato risco frontal ou ameaça estética alguma para os patronos e adeptos da corrente nacionalista‖. Considerando que todos os compositores destacados do grupo já haviam reorientado suas linhas de trabalho desde o final da década de quarenta, restaria antes a hipótese ―pessoal e política do que estética e musical propriamente dita‖, uma vez que ―as adesões e a ocupação dos espaços pelo Música Viva” teriam-no transformado em um movimento verdadeiramente afrontador.

43 A. Contier assim define os três grupos que ingressaram nesta polêmica: ―(a) os defensores do nacionalismo

modernista contrários à técnica schoenberguiana e marxismo-leninismo; (b) os partidários do marxismo e do nacionalismo; (c) os simpatizantes de um movimento em prol da instauração de uma revolução socialista e do emprego das mais diversas técnicas da música contemporânea‖.(Contier, 1985, p.27)

A carta aberta de Guarnieri teria assim por meta essencial aglutinar os nacionalistas sob a bandeira da orientação stalinista, os adversários históricos e os dissidentes radicais do

Música Viva, arregimentando um contingente capaz de limitar os avanços progressivos da

empresa pedagógica e de dinamização sociocultural capitaneada por Koellreutter com notável sucesso. (Kater, 2005, p. 126).

A polêmica criada em torno da carta aberta de Camargo Guarnieri pode ser considerada o golpe de misericórdia na então abalada relação entre Koellreutter e Santoro. Por ocasião de seu retorno da Europa, após o Congresso em Praga, foi possível observar uma tentativa de estabelecimento de um denominador comum capaz de encampar o esforço de ambos em favor de uma arte que fosse o produto da nova sociedade. No entanto, tal como ocorrera na URSS, quando várias propostas de efetivação da doutrina marxista acabaram por gerar um conflito interno entre tendências baseadas em uma única ideologia, também no campo artístico mundial, e particularmente no Brasil, este choque de interpretações de um mesmo princípio acabou por ocorrer. O trecho a seguir extraído da correspondência de Santoro ilustra perfeitamente este momento, em que as inevitáveis polarizações tornaram a viabilização de uma única corrente musical progressista algo inatingível.

Desafiei o Koellreutter para um debate público sobre os novos problemas do Realismo Socialista na música e ele depois de aceitar, recusou-se a debater alegando motivos pessoais completamente fúteis. Este músico radicado no Brasil assumiu uma posição de ataque a nós progressistas colocando-se ao lado dos reformistas, trotiskistas e facistas. [...] Escrevi um artigo desmascarando a posição que ele assumiu com uma carta aberta lançada em resposta de outra lançada por Camargo Guarnieri, que se coloca ao nosso lado e atacou o Dodecafonismo e Atonalismo. O Koellreutter nesta carta usa uma linguagem pseudo dialética para explicar a evolução da música numa utilização puramente mecanicista. (Santoro, [195?]) (Correspondência a Louis Saguer, ACS)