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3. NACIONALISMO (1949-1960)

5.3. Vanguardismo ou experimentalismo?

No que tange ao estabelecimento dos vínculos entre esta nova empreitada criativa e as radicais transformações técnicas e estilísticas que marcaram o cenário da criação internacional nas décadas de cinqüenta e sessenta, seria necessário recordar inicialmente que as orientações estéticas associadas aos movimentos artísticos mais radicais, em geral, não se acomodaram em um conjunto único de concepções estéticas válidas para todos os compositores. Com o intuito de compreender a forma como esta nova postura de Santoro se relaciona com as correntes musicais que certamente lhe serviram de referência, nos valeremos da classificação da música contemporânea baseada no modelo tripartite proposto por Benitez (1978), segundo o qual, a música da segunda metade do século XX estaria

dividida em três blocos principais: tradicional, avant-garde e experimental, sendo que o primeiro não será aqui considerado por corresponder à produção de Santoro já discutida em capítulos anteriores.

Considerando inicialmente a segunda tendência, Benitez dirá que o apego à idéia de um desenvolvimento contínuo da história da arte teria sustentado uma corrente de criadores que, confiando na direcionalidade das transformações artísticas, pôs-se em busca de novidades que pudessem alterar, expandir, ou, até mesmo, anular as ―regras estéticas e estilísticas‖ perpetuadas pela cultura ocidental. Esta tendência teria suas origens no final do século XIX, quando compositores como Debussy, por exemplo, ainda que naquele momento, circunscritos às relações do sistema tonal, dariam início a um contínuo processo de ruptura, cujo conseqüente pluralismo estilístico desembocaria no movimento ―avant- garde‖. Benitez, entretanto, insistirá na tese de que o compositor ligado a este movimento seria aquele cuja obra exibe como principal característica o princípio da ―intencionalidade‖, ou seja, o desejo de controlar o resultado sonoro final e, conseqüentemente, a própria obra considerada em sua totalidade. Ao empregar a indeterminação como recurso composicional, tal compositor, ainda que abalando os conceitos de ―obra de arte‖, ―intencionalidade‖ e ―controle‖, permaneceria como o único ―responsável pelo produto final‖. Apoiado na declaração de Stockhausen, citada a seguir, Benitez dirá que mesmo quando na década de setenta, o acaso se estabelece definitivamente como mais uma dentre as demais possibilidades composicionais, o compositor ligado ao movimento ―avant-garde‖ teria permanecido fiel à atitude prevalecente nas décadas anteriores.

Assim, muitos compositores imaginam ser possível tomar qualquer som e utilizá-lo. Isto somente será válido na medida em que o integramos, criando algum tipo de harmonia e equilíbrio [...] devemos ser capazes de realmente integrar os elementos e não apenas apresentá-los e ver o que acontece. (Stockhausen. Apud: Benitez, 1978, p. 67)

Contrariamente ao movimento vanguardista predominante na Europa e formalmente relacionado aos cursos de verão de Darmstadt, uma segunda corrente, centrada na figura catalisadora de John Cage, adotaria o experimentalismo como principal orientação estética. Baseado no princípio zen-budista da ―pluralidade na unidade‖ [plurality in one], em que todas as coisas estariam interligadas por uma unidade que a tudo circunda, Cage proporia a unificação da arte e da vida em uma só expressão. Cada vez mais

insatisfeito com o controle exercido pela mente racional no ato da criação, Cage passaria a valorizar os métodos complexos de cultivo do acaso como o I-Ching, por exemplo, sistema o qual, em obras como Imaginary Landscape No. 4 e Music of changes, frustraria definitivamente a atuação da memória e a propensão ao construtivismo. No trecho a seguir, extraído de uma de suas cartas abertas, Cage evidenciaria sua intenção de aproveitar de cada som, apenas o que este possui de mais primário e natural, deixando de fora quaisquer eventuais significados adicionais oriundos de uma atitude antropocêntrica.

Pois ―arte‖ e ―música‖, quando antropocêntricas (envolvidas na auto-expressão) parecem triviais e ausentes de urgência para mim. Vivemos em um mundo onde há, tanto coisas, quanto pessoas. Árvores, pedras, água, tudo é expressivo. Vejo esta situação, na qual vivo permanentemente, como uma complexa interpenetração de centros que se movem em todas as direções sem obstáculos. Isto está de acordo com a atual consciência que temos das operações da natureza. Tento deixar os sons serem eles próprios em um espaço de tempo. (Cage. Apud: Kostelanetz, 1971, p.116)

Tal como explicará Benitez, enquanto os compositores ligados ao movimento ―avant-garde‖ opuseram-se à idéia de renunciar ao controle e à responsabilidade pelo resultado da criação artística, Cage teria sido o primeiro a renegar tal privilégio, ―aniquilando o que poderia ser considerado a exata essência da experiência estética ocidental: sua intencionalidade‖. Na medida em que, por volta da metade da década de cinqüenta, sob a influência das idéias de Cage, os compositores do movimento ―avant- garde‖ passam a empregar a indeterminação em suas obras, em hipótese alguma o fizeram com a intenção de transferir a integralização das mesmas ao acaso, ou à colaboração do intérprete, mas, ao contrário, sem resignarem-se de seus direitos e responsabilidades pela finalização de suas criações, buscam tão somente dotá-las de uma articulação mais leve e flexível, o que na prática, terminou por converter-se em um ―novo critério de controle‖.

Embora a música indeterminada tenha sido censurada como anti-intelectual e mesmo irracional, os métodos usados para alcançá-la começaram, depois um tempo, a gerar um certo interesse. Compositores influentes, homens de apetites intelectuais semelhantes ao de Karlheinz Stockhausen passaram a incorporar estas novas técnicas em seu próprio pensamento. Paradoxalmente, estas são agora usadas como um novo critério de controle. Stockhausen assume, por exemplo, que um processo indeterminado terá o mesmo efeito, estatisticamente falando, que a mais complexa e acurada notação. (Benitez, 1978)

Para Brindle, (1987) enquanto o compositor serialista europeu esforçava-se por grafar detalhadamente suas obras, dominado pela idéia de que tal postura seria a ―culminação lógica‖ de séculos de absoluto predomínio e valorização da exatidão composicional, na América, outros tantos compositores além de Cage, entre eles Feldman, Brown, Partch e Wolff, teriam ―circunavegado‖ o serialismo integral, guiados por ―credos artísticos‖ em exata oposição à prática européia. Se para o compositor do velho mundo, para ser denominada como tal, ―a música teria que dotar-se de direção, movendo-se em ondas a uma consumação emotiva,‖ para os compositores do outro lado do atlântico o ―impulso emotivo‖, ao contrário, poderia ser substituído por outras tantas posturas mentais, tal como a ausência, o relaxamento, e o retraimento, por exemplo.

Brindle igualmente afirmará, assim como Benitez, que tal situação seria radicalmente alterada, na medida em que, estimulados pelas idéias lançadas por Cage em suas visitas à Europa (1954 e 1958), os serialistas teriam percebido que a complexa notação convencional, em vista da enorme dificuldade do intérprete em lidar com as ―diabólicas configurações rítmicas‖, resultaria em execuções apenas aproximadas da intenção original. Seguindo os passos de Stockhausen em Zeitmasse, diversos compositores, ―em favor de um sistema mais legível‖, se aventuram na incorporação do conceito de indeterminação em suas obras, ainda que em um primeiro momento, limitados apenas ao quesito duração. No que concerne à aplicação da indeterminação sobre os demais parâmetros, como a altura, por exemplo, teria ocorrido um processo bem mais lento, uma vez que, somente por volta do início da década de sessenta, a altura definida deixaria de ser tomada como algo inviolável.

O mais importante a ser enfatizado é que os compositores europeus necessitaram de um tempo considerável para aceitar o fato de que uma grande massa de instrumentos poderia tocar sons ao acaso em qualquer altura, obtendo-se como resultado, algo ainda passível de ser entendido como música. [...] Para compositores como Stockhausen, Boulez e Berio, criados na ultra-precisão do serialismo integral, foi particularmente difícil digerir o fato de que toda sua exatitude poderia ser abandonada – na verdade, Boulez nunca aceitou tão extravagante conceito, e Berio jamais chegou a adotá-lo de braços abertos. (Brindle, 1987, p. 68)

Quanto à posição de Santoro, de acordo com o que se infere da análise de seus depoimentos, sua incursão no terreno da aleatoriedade caracterizou-se pelo estabelecimento de limites bem definidos para com o alcance e predomínio desta possibilidade. O emprego da expressão ―aleatório controlado‖ para referir-se ao processo gerador de um ―complexo

sonoro‖ previamente concebido e ―jamais caótico‖ corrobora a tese de que, de sua parte, a aleatoriedade teria sido adotada nos moldes da expansão do conceito tradicional de organização sonora, tal como descrito acima no que tange aos compositores do movimento ―avant-garde‖. A afirmação, abaixo transcrita, de que através do recurso da aleatoriedade seriam alcançados, em passagens de difícil execução, resultados até certo ponto mais legítimos e convincentes do que àqueles obtidos através da escrita convencional, está em total sintonia com a argumentação de Stockhausen anteriormente mencionada por Benitez e Brindle.

Porque cheguei à conclusão de usar o aleatório? Porque sempre me preocupei com problema da interpretação [...]. Achava um absurdo, que certas coisas que eu mesmo escrevi, dificílimas na execução, com o processo aleatório teria praticamente o mesmo resultado e sem tanta dificuldade técnica para fazer. Então é por isso que eu uso o aleatório – como um elemento de facilitar e que meu pensamento musical tenha melhor resultado na interpretação, na realização‖. [...] ―Em geral faço um aleatório controlado. Eu não deixo fazer o que quiser. Por exemplo, coloco várias notas, e digo: sobre essas notas improvisar ritmos diferentes com intensidades diferentes. Mas os outros instrumentos que estão também fazendo isso terão aquele mesmo número de notas que eu imagino que, aleatoriamente tocando, pelo processo aleatório vão certamente dar um completo sonoro x. [...] Escrevo o espaço em relação ao tempo. Não é um negócio assim, completamente caótico. Tem camaradas que escrevem: aqui fazer o que quiser, ou tocar o que está na sua cabeça. Não sei se é válido ou não, mas é uma experiência, que o Cage em geral fez. (Santoro. Souza: 1993, p.91)