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1. SERIALISMO DODECAFÔNICO (1939-1946)

1.3. A orientação de Koellreutter

1.6.6. Séries ―independentes‖

As passagens selecionadas a seguir, provenientes da canção A menina exausta XII (1944), exibem igualmente a presença in loco de séries dodecafônicas manipuladas e distorcidas pelo emprego dos procedimentos de permutação, omissão e repetição. Desta feita, no entanto, observa-se uma tentativa jamais mencionada por Santoro, qual seja o emprego de duas séries diferentes na mesma obra, procedimento que atenta frontalmente

contra uma das principais premissas da técnica evidenciada por Schoenberg. Nos primeiros cinco compassos, a série I tem suas notas iniciais introduzidas pelo piano, sendo conduzida adiante pela linha melódica do texto do poema. Em seguida, a Série II é apresentada integralmente pelo piano e utilizada adiante no diálogo entre canto e acompanhamento.

Ex. 1.16. C. Santoro. Quatro Canções. A menina exausta No. XII. I mov. Comp. 1-9(1944)

Próximo ao final da canção ocorre a superposição das duas séries, cada uma cumprindo o papel que lhe é designado na textura homofônica correspondente. Enquanto a melodia do canto inicia um movimento de retrogradação com as notas 5º, 6º, 7º e 8º, articuladas no compasso anterior pelo piano, e com isso, trazendo a série II de volta ao seu início, o piano retrograda a série I em acordes homorrítmicos.

Ex. 1.17. C. Santoro. Quatro Canções. A menina exausta No. XII. I mov. Comp. 19-22(1944)

Considerando os procedimentos nada sistematizados até então observados na manipulação serial de Santoro, uma comparação mais cuidadosa entre as duas séries revela uma relação inesperada: a ordenação da segunda série corresponde à primeira a partir de

sua 6ª nota, sendo as restantes tomadas a cada intervalo de cinco notas em movimento circular. Desta forma, na medida em que partirmos da nota fá# da primeira série e

selecionarmos as outras, sempre a cada cinco notas em movimento circular, obteremos, ao final, a ordenação integral da segunda série.

Ex. 1.18. Séries independentes I e II. Quatro Canções, IV

De acordo com Perle (1981, p. 74), tanto Schoenberg, quanto Alban Berg teriam se ocupado da dedução de novas séries em uma mesma obra, tendo sempre como justificativa o emprego de operações lógicas pré-composicionais, tais como esta observada na relação entre as duas séries da canção. Surpreende neste caso, o fato de Santoro ter utilizado, literalmente, uma das operações empregadas por Berg em sua ópera Lulu.

A ópera Lulu emprega um grande número de séries, todas derivadas, de acordo com o compositor, de uma única série básica, por meio de certas operações pré-composicionais

não evidentes. Entretanto, vários dos pretensos métodos de derivação podem ser facilmente demonstrados como ilusórios; indicam que Berg desejou fornecer evidencias verbais de sua adesão ao princípio de Schoenberg de que não se deve ―utilizar mais de uma série‖. Uma das séries auxiliares, por exemplo, está precomposicionalmente “derivada” através da apresentação em sucessão direta de cada cinco notas em uma apresentação circular da série básica [o grifo é nosso]. (Perle, 1981, p. 74)

A descoberta de tais racionalizações em Santoro coloca em evidência seu interesse utilizar-se das operações pré-composicionais mais complexas desenvolvidos pelos demais compositores serialistas. Tendo em vista a forma como defendia e valorizava a criação espontânea e independente do estabelecimento de processos lógicos anteriores à obra, a existência de exemplos como este entram em flagrante contradição com suas freqüentes declarações acerca de seu processo composicional.

Nunca fiz uma obra começando pela série e depois fazer a música; eu sempre comecei criando a musica e tirando a série da música, completando uma ou outra nota. (Santoro. Apud: Oliveira, 2005.)

Antes dos 12 sons eu procurava fazer peças mais atonais, eu sempre criava a temática ou o complexo temático, harmonia e daí eu tirava a série, muitas vezes ela era incompleta e muitas vezes eu tinha que completá-la com mais duas ou três notas. (Santoro. Apud; Souza, 2003, p. 64)

Se por um lado, procedimentos como estes observados na canção, em flagrante contradição com o discurso de Santoro, sejam de ocorrência rara em sua produção, haja vista a franca preferência em identificar-se com a imagem de um compositor inspirado e instintivo, que segue primeiramente os ditames da intuição,20 por outro lado, a constante preocupação em inteirar-se das relações mais complexas facultadas pelo desenvolvimento da técnica aponta para outra faceta de sua personalidade, expressa nos depoimentos em que reconhece a importância do ―cultivo intelectual‖ e a necessidade de um permanente sistema formal e lógico de relações. Entretanto, tal como se infere das citações a seguir, Santoro optará sempre pelo termo médio, absorvendo de cada uma das posições aquilo o que

20 Neste ponto, é impressionante a coincidência entre o discurso de Santoro e o do compositor norte-

americano Vincent Persichetti: ―VP: Eu jamais criaria ou escolheria uma série para compor. Nunca comecei a escrever sem uma idéia temática ou dramática. Freqüentemente emprego uma série de doze ou mais sons originária do próprio discurso musical. O propósito da serialização posterior (after-the fact) está relacionada ao inventário de materiais. Os gestos sonoros vem primeiro, depois a manipulação técnica.‖ Conversation with Vincent Persichetti. SHACKELFORD, Rudy Perspectives of New Music. 1982, vol. 20, no. 1/2. p. 104- 133.

julgava ser sua contribuição mais efetiva com vistas ao desenvolvimento de uma expressão musical, ao mesmo tempo, expressiva e formalmente justificada, embora tendente ao primeiro termo. A importância concedida por Santoro ao ímpeto emocional na criação musical pode ser mais bem equacionada na medida em que consideramos sua total desconfiança para com o serialismo integral, técnica composicional que para ele correspondia a uma ultravalorização da pesquisa e do intelecto, música ―puramente para o papel‖, tal como afirmou.

A técnica dos doze sons me resta como complemento de um todo, não posso, porém ficar amarrado. Creio mais na imaginação livre, estruturada pelo intelecto cultivado [...] A música apesar de tudo, ainda é uma arte, que não dispensa a ciência, e não uma ciência que dispensa a emoção controlada. (Santoro. Apud: Souza, 2003, p. 65)

Naturalmente a arte é intelectualizada, lógico. Mas um intelecto a serviço de uma comunicação através de meio expressivo, e não o contrário. [...] O pessoal do Boulez é ultraserialista [...]. Foram exageros. Mas você viu que esta música afastou completamente o público da música contemporânea, completamente. Porque eles não estavam preocupados em dizer alguma coisa para alguém, transmitir alguma coisa. Eles estavam preocupados talvez numa pesquisa [...]. Era um trabalho muito intelectualizado. Acho que falhou. (Santoro. Apud: Souza, 2003, p. 78)