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O sacrifício de animais em rituais: aspectos jurídicos e religiosos

Sacrifícios religiosos são encontrados nas mais diversas crenças ao longo da história. Pode-se encontrar nos rituais bíblicos do antigo testamento, na religião

grega, em rituais Hindu, em religiões indígenas, crenças de matriz africana, além de estar presente no judaísmo e do islamismo. Kellen Josephine Muniz de Lima e Ilzver de Matos Oliveira (2015, p.102) escrevem que o sacrifício “consiste em um ato fundamentalmente religioso que, de forma geral, tem por finalidade o agradecimento ou a obtenção de graças ou favores das divindades”.

Dessa forma, Lima e Oliveira (2015) ensinam que essa troca de agradecimentos com divindades ocorre desde o homem primitivo, pois na sua relação com os alimentos existia uma sensação de dependência da fartura e abundância proveniente das divindades. Com isso, o homem primitivo fazia oferenda em troca da providência de fartura de alimentos.

Nas religiões atualmente existentes no Brasil, a ideia por detrás dos sacrifícios não é diferente. O Candomblé, por exemplo, assim como em outras religiões de matriz africana, é marcado por transes e cultos a espíritos que se viabilizam pelo sacrifício animal. O sacrificium ou “tornar sagrado” pode ser entendido como uma oferta para outro plano. Pedro Henrique Moreira da Silva (2019, p.32) ensina que para as culturas religiosas africanas existem 2 planos, o Orum e o Aiye.

No primeiro plano vive Olorum, o ser supremo, que habita uma dimensão não palpável pelos humanos. Os humanos, por sua vez, encontram-se no Aiye, onde é permitida a entrada dos orixás. Para tanto, é necessário que seja realizado um ritual de invocação, cujo encantamento é suficientemente poderoso para romper o véu do sistema Orum-Aiye – assim, são promovidos cultos, oferendas e sacrifícios, que podem ser entendidos como os instrumentos que viabilizam a comunicação e contato entre homens e divindades.

O autor ainda explica que conforme a doutrina básica do Camdomblé, a aproximação entre Orum e Aiye somente é possível por meio do sacrifício animal, ou seja, restringir a prática do ritual de abate significa restringir a própria realização do culto, já que seria esse o instrumento de comunicação entre o profano e o divino. Roger Bastide (2001) em sua obra “ O Camdomblé da Bahia” descreve que o sacrifício é feito por meio de uma pessoa especializada chamada axôgun ou

achôgu, que o objeto do sacrifício é sempre um animal, podendo mudar a espécie conforme o deus ao qual é oferecido, podendo ser um animal de duas patas ou quatro patas, isto é galinha, pombo, bode, carneiro, etc. O sexo do animal deve ser o mesmo que da divindade que receberá o sangue derramado. Após o animal ser sacrificado, uma cozinheira denominada iya-bassê ou abassá prepara o alimento para os participantes do ritual, já que o sangue é de direito dos deuses mas o restante é cozinhado e consumido pelos fiéis e visitantes.

Ainda sobre a forma como é praticado o sacrifício, Lima e Oliveira (2015) acrescentam que os próprios praticantes do Camdomblé incumbem-se do trabalho de induzir o animal não humano a um estado que minimize seu sofrimento, o que se faz por meio da sedação alcoólica, por exemplo. Isso ocorre tendo em vista que o sacrifício não é uma prática que busca causar dor ou sofrimento, mas sim algo sagrado dentro do terreiro.

Existe um cuidado especial para com os animais que serão sacralizados, pois a imolação deve ser realizada com o mínimo de sofrimento possível para o animal. Animais maltratados ou doentes não podem ser oferecidos aos Orixás, assim, enquanto o animal permanece vivo na casa de santo deve estar saudável e bem cuidado, pois é considerado sagrado.(Lima e Oliveira;2015, p.104)

Pode-se citar também o Islamismo como religião que pratica sacrifício de animais, em especial o carneiro. Francirosy Campos Barbosa Ferreira (2007) escreve sobre os sentidos atribuídos à matança de carneiros que ocorrem anualmente para os seguidores do islamismo. O autor explora a ideia que o carneiro sacrificado ocupa o lugar do fiel que se entrega a Deus, pois, no alcorão, quando Deus solicita a Abraão que sacrifique seu filho primogênito em prova de amor e obediência, momento em que sacrificaria o próprio filho, Deus intercede e diz a Abraão para sacrificar no lugar daquele dois carneiros.

O ritual é relembrado todos os anos pelos seguidores do islamismo. O carneiro seria um objeto transicional entre o homem e Deus. A Cada ano quando ocorrem os sacrifícios, revive-se o mito de abraão e o homem pode se religar com

Deus por meio do “objeto carneiro”. Ferreira (2007, p.767) ainda descreve como ocorrem os sacrifícios:

Observei de perto esse ritual, marcado pela oração dos homens em volta do animal até ele ficar calmo. Uma pessoa especializada cortou o pescoço do animal com um único golpe. No momento de se desferir o golpe, alguns diziam “Em nome de Allah, Allah é Maior (Allahu Akbar), ó Allah, isto é de Ti e para Ti, ó Allah, aceita isso de mim” (Muslim, 3/ 1557) – relembrando que só Deus está acima dos homens, dos animais e de todas as coisas –, ou simplesmente repetiam o refrão Allahu Akbar! No islã é permitido alimentar-se da carne de um animal que tenha levado mais de um golpe para morrer. Espera-se o sangue escorrer, depois o animal é destrinchado para ser temperado, cozido e servido na própria festa. Uma parte dos animais sacrificados nesse dia vai para o açougue de comida halal, que vende carne aos muçulmanos.

O autor ainda escreve que esse ritual religioso carrega um simbolismo religioso fundamental para a crença islâmica, pois o carneiro simboliza que já não é mais preciso oferecer o filho em nome do amor a Deus, mas é preciso colocar algum “objeto” no lugar desse sacrifício. O abate do carneiro é um modo de recordar o pedido de Deus. Após o abate, a carne, deve-se distribuir a carne entre amigos, familiares e pobres, já que essa seria a atitude esperada, para que o fiel se torne melhor a cada dia.

No entanto, tais práticas religiosas causam diversos debates quanto sua legalidade. Há anos existem tentativas de criminalizar os cultos religiosos que praticam sacrifícios de animais. Mas foi no estado do Rio Grande do Sul que um desses debates chegou até o Supremo Tribunal Federal.

Foi no ano de 2003 quando o deputado Manoel Maria dos Santos (PTB),pastor da Igreja do Evangelho Quadrangular e deputado por quatro mandatos, propôs projeto de lei para criação do Código Estadual de Proteção aos Animais para o estado do Rio Grande do Sul, que a discussão teve início. Na época, a primeira versão do projeto de lei apresentado pelo deputado, proibia o uso de animais em cerimônias religiosas, conforme disposto no Projeto de lei nº 447/1991:

É vedado: realizar espetáculos, esporte, tiro ao alvo, cerimônia religiosa, feitiço, rinhadeiros, ato público ou privado, que envolvam maus tratos ou a morte de animais, bem como lutas entre animais da mesma espécie, raça, de sua origem exótica ou nativa, silvestre ou doméstica ou de sua quantidade.

Para os autores, Ari Pedro Oro, Erico Tavares de Carvalho e Juan Scuro (2017), não restou dúvida que os termos “cerimônia religiosa” e “feitiço” tinham como objetivo atingir as religiões de matriz africana. Mas em meio a debates e mobilizações, o deputado autor do projeto de lei foi forçado a redigir uma nova versão do artigo 2º supracitado, ficando com a seguinte redação:

Artigo 2º: É vedado:

I - ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis de existência;

II - manter animais em local completamente desprovido de asseio ou que lhes impeçam a movimentação, o descanso ou os privem de ar e luminosidade; III - obrigar animais a trabalhos exorbitantes ou que ultrapassem sua força;

IV - não dar morte rápida e indolor a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo;

Em maio de 2003, o projeto foi transformado na Lei nº11.915, com a sanção do até então governador Germano Rigotto. No entanto, mesmo com essa nova redação, novos temores surgiram sobre possíveis proibições de práticas sacrificiais. Por esse motivo, o deputado estadual Edson Portilho (PT), único afrodescendente presente no parlamento, apresentou o Projeto de Lei (PL 282/2003), incluindo no artigo 2º da Lei 11.915, uma exceção permissiva para que religiosos de matriz africana não encontrasse óbice em realizar seus rituais sacrificiais, desde que fossem observadas algumas condições, conforme o texto:

Art. 1º - Fica regulamentado nos termos deste Decreto o artigo 2º da Lei nº 11.915, de 21 de maio de 2003 (...)

Art. 2º - Para o exercício de cultos religiosos, cuja liturgia provém de religiões de matriz africana, somente poderão ser utilizados animais destinados à alimentação humana, sem utilização de recursos de crueldade para a sua morte.

O projeto apresentado pelo deputado foi aprovado em junho de 2003 com 32 votos favoráveis. Após isso, a Procuradoria-Geral de Justiça do Rio Grande do

Sul, ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) requerendo a retirada do artigo 2º, porém a constitucionalidade da lei foi reconhecida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

Após essa decisão, o MP/RS interpôs recurso para o Supremo Tribunal Federal, sob argumentação que a Lei estadual trata de matéria de competência exclusiva da União e que a exceção permissiva introduzida na lei restringe a exceção às religiões de matriz africana. A decisão deste último recurso será analisada em momento posterior, em que se tentará buscar critérios de solução do conflito entre liberdade religiosa e direito dos animais.

Conforme relatado por Oro, Carvalho e Scuro (2017), diversos projetos de leis tentaram a proibição de sacrifício de animais em cultos religiosos, tanto no Rio Grande do Sul quando em outros estados. Pode-se citar o PL 202/2010, de autoria do vereador Laérciot Travisan (PR), no estado de São Paulo, que proibia o sacrifício de animais em práticas religiosas; Também no estado de São Paulo, o projeto de lei 58/2015, de autoria do vereador Carlão dos Santos, buscou a proibição da prática de sacrifícios religiosos; e em âmbito federal o PL 4331/2012, de autoria do deputado e pastor evangélico, Marcos Feliciano, que detém o mesmo conteúdo de proibição. Diversos outros projetos poderiam ser citados por possuírem o mesmo conteúdo, o que demonstra uma grande atividade a fim de proibir práticas sacrificiais.

Tanto a proteção da fauna quanto a liberdade religiosa encontram-se previstos na Constituição Federal, não sendo um tema de fácil solução, já que o estrito exercício de um coloca em risco o direito do outro. Para Oro, Carvalho e Scuro (2017), pode ser que o argumento da proteção da fauna, a fim de evitar morte, maus-tratos e afins, esconda ainda a intolerância religiosa, em que as principais vítimas são os praticantes de liturgias afro.

Assim sendo, não deixa de ser paradoxal que, em pleno século XXI, quando palavras como democracia, tolerância e direitos civis inundam o discurso público da cena brasileira, proliferam também os ataques a formas minoritárias de vivenciar o religioso, sobretudo em relação às religiões afro-brasileiras. E, neste caso, como vimos, há inclusive tentativas de revestir com a guarida legal, produzida no

campo político, determinadas coerções e limitações às suas práticas ritualísticas, como o sacrifício animal. (Oro, Carvalho e Scuro, 2017, p. 249).

Existem diversos argumentos contra e a favor de tais práticas, o conflito de direitos não pôde ser solucionado de forma amigável, portanto, faz-se necessário encontrar Critérios de solução dos conflitos entre direitos dos animais e liberdade religiosa, a fim de proporcionar o máximo do exercício da liberdade de culto constitucionalmente prevista, bem como a devida proteção dos direitos dos animais. Passamos então a uma análise dos possíveis meio de solução desses conflitos.

2.4 Critérios de solução dos conflitos entre direitos dos animais e liberdade

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