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O selvagem e o bárbaro

No documento A ARTE E A EDUCAÇÃO EM PLATÃO E SCHILLER (páginas 51-53)

Para Schiller, há duas maneiras através das quais o homem pode se desvirtuar: como selvagem e como bárbaro.82 Assim como os outros conceitos desenvolvidos pelo autor, estes se apresentam como formas ideais; são modelos de comportamento que nunca se mostrarão presentes no mundo real em sua forma pura, mas que podem servir como padrões para uma melhor compreensão do mundo.

No homem que se apresenta como selvagem, os sentimentos imperam sobre sua razão; este ser se encontra acorrentado pela necessidade física. Ele despreza a arte e reconhece a natureza com sua irrestrita soberania. Sua razão ainda não está desenvolvida, ou está ainda submetida às inclinações da natureza pura. Muito já foi dito desse tipo humano que se encontra em estado perto do natural, ser pouco cultivado, que se deixa levar apenas por impulsos básicos de natureza.

Para o autor, existe ainda outra forma de desvio da verdadeira natureza humana: o homem bárbaro. Pelo senso comum, bárbaro e selvagem são noções que podem adquirir um mesmo significado, o de não-civilizado. Entretanto, Schiller defende que, se o selvagem é aquele que se mostra vinculado aos impulsos básicos e naturais, possuindo dessa forma uma razão pouco atuante, o bárbaro será o descaminho na direção oposta. Bárbaro é aquele que, ao possuir princípios que se destacaram tão intensamente do mundo real, acaba por anular ou aprisionar seus sentimentos. É o ser humano que se encontra sob o domínio completo do ideal, sem mais nenhum tipo de conexão com o mundo real; é, portanto, a razão sem sentimentos. Enquanto o selvagem é rude, o bárbaro pode ser perverso.

Esse conceito de bárbaro serve para compreender os movimentos políticos que surgiram muito após a época de Schiller. Pode-se afirmar, à guisa de comentário, que o conceito auxilia na compreensão do regime nazista alemão, assim como dos de outros regimes ditatoriais similares; estes seriam um exemplo do desvio para o qual Schiller

52 parecia alertar. Nesses casos há uma ideologia, uma ideia da razão que se torna tão central, a ponto de se mostrar capaz de subtrair os sentimentos e a ideia de humanidade. O regime nazista cometeu brutalidades em nome da ideologia que visava destituir, de seu direito a existência, todos os indivíduos que não se adequassem a determinadas normas, assim como ocorre em outras ditaduras. Talvez seja justamente por tal motivo que a palavra barbárie é comumente utilizada quando tais contextos são comentados.

No caso do nazismo, mostra-se estéril a tentativa de compreender o porquê de uma sociedade culta e erudita ter se envolvido em ações desumanas. Quanto a esse tema, a retomada da teoria de Schiller parece oferecer uma resposta coerente. Segundo os parâmetros dessa teoria, a ideologia nazista parece ser justificada por argumentos “racionais”. Houve o amplo uso de teorias, respaldadas no que era considerado como ciência, que asseguravam a superioridade da raça ariana e a doutrina do “espaço vital” necessário ao povo alemão. A chamada “solução final” foi pensada e posta em prática através de planos bem definidos em termos de logística de operação e de produtividade de mortos. A alta hierarquia nazista parece ter sido composta por homens que possuíam alto uso da razão; porém, cujos caracteres careciam profundamente de sentimentos humanos.

Esse tipo de ditadura, ao se utilizar de conceitos racionais, põe em cena uma ideia de homem bem específica; o problema é que a natureza coloca em evidência a multiplicidade dos homens reais. No exemplo referido, a ideia de um homem ideal se sobrepõe, sufocando a multiplicidade do real. Todos aqueles que, na realidade, não se enquadram no modelo definido nas idéias, estarão sujeitos a constrangimentos durante uma situação ditatorial. Aqueles que não se enquadram no ideal devem ser excluídos, sem qualquer concessão. No caso do nazismo, a tragédia se referiu a judeus, ciganos, homossexuais, deficientes físicos e mentais. A partir desse exemplo, pode-se observar que o problema do homem bárbaro é que a ideia perdeu sua vinculação com a multiplicidade dos fenômenos da realidade.

O conceito de homem, em Schiller, difere da noção rígida e absoluta que acaba por submeter o homem real; para ele, o importante é a restauração da dignidade humana, e essa tarefa não deve ser condicionada apenas pela ideia. A proposta autor é a união entre o uno e o múltiplo, entre o indivíduo com suas especificidades e o coletivo. O desafio de Schiller é construir uma ideia de humanidade que possa ser preenchida com a multiplicidade dos homens. A dignidade humana deve ser um conceito misto,

53 entre a razão e a sensibilidade, entre o geral e o específico. E a busca dessa síntese só pode ser realizada pela cultura.

Schiller acredita que o papel da cultura é preservar o reino da individualidade e da variedade tanto quanto da universalidade e da unidade. Para ele, a esfera da sensibilidade se aproxima da esfera individual. Isso ocorre porque a personalidade e a individualidade do homem têm sua base na esfera sensível e se manifestam através dos seus sentimentos. É por este motivo que o cultivo da sensibilidade deve levar a um respeito pela individualidade. Essa ligação entre a sensibilidade e a individualidade fica clara na carta IV,83 quando Schiller alerta aos políticos que devem respeitar os indivíduos e suas particularidades, sem desenvolver ideais que exijam homogeneidade entre todos.

Segundo Beiser,84 a perspectiva de Schiller é simultaneamente moral e antropológica. A perspectiva moral unilateral valoriza a universalidade e a unidade à custa da variedade e da particularidade. A perspectiva antropológica, entretanto, valoriza igualmente os dois aspectos da humanidade, e procura sua síntese no indivíduo. A tarefa da educação estética, portanto, não será simplesmente fazer o individual se tornar ideal, como se a individualidade pudesse ser descartada, mas fazer também que o ideal se torne individual.

No documento A ARTE E A EDUCAÇÃO EM PLATÃO E SCHILLER (páginas 51-53)