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Sobre os efeitos da arte

No documento A ARTE E A EDUCAÇÃO EM PLATÃO E SCHILLER (páginas 85-88)

Apesar dos contrastes em relação à visão sobre arte, há um ponto no qual a posição defendida por Sócrates se aproxima daquela que será defendida por Schiller. Tal momento ocorre no livro III de A República: Sócrates acaba de discorrer sobre medicina e começa a observar a importância da música e da ginástica para a constituição de um ser humano em equilíbrio.

Sócrates descreve dois desvios que podem acontecer na educação de um homem. Segundo ele, o primeiro desvio se apresenta em quem se esforça muito com exercícios na ginástica, não se interessando pelas artes ou pela filosofia:

Uma pessoa assim torna-se um inimigo da discussão, um estranho às musas e, se não se serve mais da persuasão por meio de argumentos, é pela violência e selvageria como um animal que desincumbe de tudo, vivendo como um ignorante, um canhestro a quem falta ritmo e graça.151

Por sua vez, a música pode auxiliar no controle da impetuosidade do caráter, bem como tornar o homem mais sociável e estimular uma brandura na alma, que é a base para a filosofia. Entretanto, quando o indivíduo é exposto em demasia às artes, sem a contrapartida da ginástica, isso pode enfraquecer o caráter do homem e amolecer seu ímpeto. Para Sócrates, a educação deve ser balanceada entre a ginástica, que favorece a coragem e a dureza, e as artes, que estimulam a polidez e a brandura.152 De fato, o projeto educacional de Sócrates parece se basear no equilíbrio entre os dois pólos.

Na carta XVI de seu livro, Schiller observa que aqueles que defendem que a beleza pode amolecer o caráter e tornar o ser humano indolente, não estão inteiramente enganados, mas enxergam a beleza apenas por seu efeito dissonante.153 Quem

151 PLATÃO. A República. 411e. Tradução: Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins

Fontes, 2006. p.124.

152 PLATÃO. A República. 410d-411c.

86 argumenta desse modo não percebe o verdadeiro conceito de beleza. A crítica às artes é feita apenas por seu efeito dissolvente, ignora-se que a beleza pode também se apresentar com uma natureza em tensão.

Enquanto Sócrates apresenta sua proposta de equilíbrio entre ginástica e música para estabelecer um ser humano em harmonia, Schiller afirma que a beleza, sozinha, pode ter mesmo efeito, pois observa que o belo possui uma natureza dual que pode tanto dissolver quanto tensionar o caráter no homem.

Na verdade, a própria definição de justiça defendida por Sócrates no diálogo não se mostra tão distante da do ser humano integral e equilibrado defendida por Schiller. No livro IV de A República, Sócrates finalmente chega à definição de justiça. Depois de esclarecer sobre as três partes da alma – concupiscível, apelativa e racional – e estabelecer paralelos entres as partes da alma e da cidade, o filósofo define o homem justo como aquele que:

Não permite que cada uma das partes que há nele faça o que não lhe compete, nem que os três princípios de sua alma interfiram uns nas funções dos outros, mas, ao contrário, manda que ele disponha bem o que é dele, mantenha o comando sobre si mesmo, estabeleça ordem, venha a ser amigo de si mesmo e ponha em harmonia as três partes de sua alma como se nada fossem que os termos da escala musical, o mais agudo, o mais grave e o médio e todos os termos intermediários que possam existir, e, ligando todos esses elementos, de múltiplo que era, torne-se uno, temperante e pleno de harmonia.154 Segundo Sócrates, esse tipo de homens age com sabedoria e suas ações são belas e justas. O ideal socrático de homem justo não parece ser muito diferente do indivíduo com uma bela alma – schöne Seele – de Schiller; o indivíduo que age moralmente não apenas por dever, mas também por sua própria inclinação: um ser humano equilibrado entre suas partes racionais e sensíveis, cada uma legislando sobre seu território e não interferindo no campo da outra.

Pode-se levantar, então, uma questão sobre a diferença existente entre a visão de Sócrates e a de Schiller no que se refere ao papel específico da razão. Na perspectiva socrática, o homem só age mal por falta de conhecimento. Sob esse ponto de vista, a razão, que é a parte da alma mais propícia ao conhecimento, se encontra naturalmente orientada para o bem. Portanto, a racionalidade é capaz tanto de reconhecer o bem e o mal, como de fazer o homem escolher o bem.155 Por tal motivo, Sócrates, n´A

154 PLATÃO, A República. 443d-444a. Tradução: Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo:

Martins Fontes, 2006. p. 170-1.

155 ROWE, Christopher. The Republic in Plato’s political thought. In: FERRARI, G.R.F.(org.). The

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República, estabelece que parte da razão, na alma justa, deve comandar as outras partes irracionais. Entretanto, o fato de ser a razão naturalmente orientada para o bem, não significa que as outras partes da alma estejam necessariamente voltadas para o oposto; a razão não tem que lutar contra a irracionalidade, mas deve ser considerada como superior às partes não-racionais.

Na verdade, a razão não deseja comandar. Cada uma das partes da alma possui seus próprios desejos e o desejo da razão é conhecer. A parte concupiscível busca satisfazer os desejos materiais, a parte irascível tem vontade de ganhar e de acumular, e a parte racional tem o desejo de conhecimento.156 É precisamente porque o desejo natural da alma racional é conhecer antes que governar, que ela não governará as outras partes em benefício próprio.

O filósofo rei que governa a cidade ideal em A República não o faz em sua própria vantagem, mas apenas por ser o mais capaz de conhecer as verdades e a justiça. Somente a própria justiça obriga o filósofo a governar. O filósofo não tem interesse em glória, poder, ou bens materiais, apenas em conhecimento.157 Assim ocorre também com a razão, que deve governar não apenas para prevalecer sobre as demais partes, mas para que os desejos das outras partes sejam organizados, e o homem possa viver de forma harmônica e equilibrada. Sendo o desejo natural da razão o conhecimento, ela se apresenta mais capaz de buscar conhecer o bem e o mal e, portanto, de conhecer o que é melhor para o homem de maneira integral; por isso, as outras partes da alma devem ser guiadas ou orientadas por ela. Esta é a única forma para Sócrates do indivíduo se harmonizar; se outra parte da alma guiar o homem, a razão se tornará mero instrumento utilizado para seguir apenas os desejos próprios da parte da alma que domina, e o homem ficará cindido.158

Nesse sentido, a posição schilleriana não parece ser oposta à socrática. Schiller concorda que a razão é a parte do homem mais capaz de conhecimento, inclusive de conhecimento do tipo moral. O autor defende que a alma bela é aquela que já educou seus sentimentos no sentido em que tem internalizado as regras do agir moral, derivadas, em última análise, da parte racional. Para Schiller a emoção deve apoiar a

156 FERRARI, G.R.F. The Three-Part Soul. In: FERRARI, G.R.F.(org.). The Cambridge companion to

Plato’s Republic. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p. 165-6.

157 WEISS, Roslyn. Wise Guys and Smart Alecks in Republic 1 and 2. In: FERRARI, G.R.F.(org.). The

Cambridge companion to Plato’s Republic. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p. 109-10.

158 FERRARI, G.R.F. The Three-Part Soul. In: FERRARI, G.R.F.(org.). The Cambridge companion to

88 parte racional, não substituí-la.159 Na carta VIII160 Schiller afirma que cabe a razão encontrar e estabelecer as leis e cabe ao sentimento a sua aplicação.

No documento A ARTE E A EDUCAÇÃO EM PLATÃO E SCHILLER (páginas 85-88)