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CAPITULO II: UM HOMEM EM MOVIMENTO: ESPAÇO, LUGAR E TOPOFILIA

2.7 O SERIDÓ DE LAMARTINE: ENTRE O LUGAR ÍNTIMO E O PATRIOTISMO

Pensar sobre a importância do Seridó na trajetória de Lamartine exige de nós um tópico especial para além das experiências de infância que nos possibilite intender suas múlti- plas dimensões. Em seu livro Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência, especialmente nos capítulos Experiências intimas com o lugar e Afeição pela pátria, Tuan nos mostra duas formas de pensar as relações entre indivíduos com lugares em dimensões distintas. O primeiro evoca a ideia de lar, um lugar que desperta em nós os mais ternos e fortes sentimentos que podem se manifestar para com uma casa, uma poltrona ou até por outra pessoa é, portanto, uma forma muito mais intimista. Já o segundo corresponde ao apego que desenvolvemos por unida- des territoriais que estão muito além de nossas capacidades perceptivas básicas como um país ou uma região especifica. Nestes lugares não temos como experimentar toda a sua extensão, mas desenvolvemos sentimentos muito densos a ponto de dar a própria vida em nome da defesa desse território em casos de conflito ou invasão.

O Seridó como lugar intimo encontra sua legitimidade a partir do momento em que Lamartine o identifica como sua terra natal, berço de suas origens familiares como também na ideia de lar ou refúgio. Isto fica claro na sua resposta quando o confrontam dizendo que certa- mente morou no Rio de Janeiro um período muito maior do que no Seridó, ele responde, “Tro- que, na sua pergunta, o verbo morar por viver. Os dias que se mora tem, rigorosamente, apenas 24 horas” (2001, p.83). A dissonância entre os verbos morar e viver busca transmitir a ideia de

23 Na época em que se muda para a fazenda Acauã, no município de Riachuelo em 1995, Lamartine

que a vida no Seridó foi muito mais plena do que a do Rio de Janeiro, uma questão de intensi- dade e não de quantidade. Neste sentido, Lamartine relativiza o tempo passado em cada locali- dade em função dos sentimentos e lembranças que cada uma delas despertam nele.

Uma das principais características que Tuan atribui aos lugares íntimos é a dificul- dade que temos para descrever e definir nossos sentimentos para com eles. Desta forma por mais que seja capaz de descrever com detalhes sensoriais o Seridó, Lamartine se vê incapaz de transmitir a dimensão dos sentimentos que esse lugar desperta nele dizendo, “Não sei explicar. É a força da terra. Vosmecê já leu Massangana? Lá Nabuco escreveu “os filhos dos pescadores sentirão sempre debaixo dos pés o roçar das areias da praia e ouvirão o rugido da vaga...” (2001, p.10).

Tomando essas premissas vamos pensar sobre o Seridó na trajetória de Oswaldo Lamartine. Bom, como já mostrado no primeiro capítulo o Seridó foi alvo durante parte do século XX de um processo construção de identidade que se deu através da escrita de sua história por homens que ou eram políticos ou estavam ligados aos grupos familiares que dominavam a política do estado. Estes textos destacaram a força da pecuária produzida por colonizadores portugueses que plantaram na terra as sementes do gado e da tradição familiar. Vimos, no pri- meiro capítulo, que após a “Revolução de 1930”, o grupo liderado por Lamartine e José Au- gusto intensifica essa narrativa de apego as tradições e aterra como uma resposta aos interven- tores federais tidos como invasores estrangeiros em seu território.

Oswaldo Lamartine adentra nessa construção muito depois destes acontecimentos, mas terá um papel fundamental para consolidar esse discurso. Ele entra motivado pela necessi- dade de autoafirmação, seu posicionamento o coloca como membro pertencente a uma linha- gem de homens fortes e dedicados a valorização dos modos de vida passados de geração em geração e, mais do que isso, ele se vê como um protetor destas praticas as depositando no papel em seus mínimos detalhes para que elas não sejam tragadas pela avassaladora modernidade. Essa necessidade surge em função de seu constante deslocamento entre trabalhos e cidades ao longo de sua carreira profissional.

Assim sendo, o Seridó é eleito por Lamartine como o lugar de sua identidade o que o torna o foco de sua produção escrita, neste sentido podemos dizer que Lamartine se porta como um patriota. Tuan nos mostra algumas condições para que se estabeleça este sentimento pela pátria. Em primeiro lugar a questão do pertencimento, a ideia de terra natal, tem uma força tremenda principalmente para sujeitos “imigrantes” como Lamartine, ela torna-se um foco de

permanecia diante do mundo em constante movimento, ela é também o repositório de lembran- ças evocativas de um passado essa é uma abordagem mais simples desse estado de espirito que podemos notar em nosso autor. Vejamos um exemplo:

Ademais, todas as minhas viagens de férias foram nos rumos de cá – jamais atravessei o Atlântico nem visitei a Disneylândia. Essa é a explicação sem falsa literatura ... o Coalho é quem poetou ...Porque sempre é madrasta a terra estranha. (LAMARTINE DE FARIA, 2001, p.59).

Este trecho demonstra bem o que Tuan chama de “falta de curiosidade para com o mundo exterior”, Lamartine morou no Rio de Janeiro em plena década de 1950, durante a in- serção de novas tecnologias e novos modos de vida. Importante é notar que ele viveu, em um dos epicentros da modernidade que tanto criticou em suas falas e textos. Lamartine (2001) re- conhece que pode ter se “lambuzado” desses elementos, porém manteve-se como um “bicho do mato”.

Uma outra questão que não pode ser deixada de lado é o aspecto do tempo na rela- ção entre Lamartine e o Seridó. Se formos observar atentamente suas falas podemos notar a constante menção ao termo “Sertão do nunca mais” que evoca a ideia de que tudo aquilo que ele apresenta em suas obras encontra-se em um passado que não pode ser regenerado. Desta forma, o Seridó além de ser seu lugar íntimo e sua pátria é também o retrato de um passado que sua escrita tenta conservar. Nessa questão Tuan salienta a necessidade de se pensar na interação entre tempo e lugar, para ele, o lugar pode ser compreendido como um tempo tornado visível ou como lembranças de tempos passados. Este é um dos motivos que levam ao impulso de valorização do passado tem grandes ecos na cultura ocidental sobretudo após o iluminismo e a construção de grandes coleções de artefatos que deram origem aos museus.

Esse impulso ganha ainda mais sentido para sujeitos e sociedades que tem passado por grandes transformações em um curto período de tempo como é o caso da sociedade ociden- tal nas últimas décadas. Temos então a quebra com alguns modos de vida e a deterioração de certas práticas e métodos comuns do cotidiano que para algumas pessoas, geralmente os idosos, constitui-se como um defeito.

Nosso foco de investigação, Oswaldo Lamartine, pode ser compreendido nessa di- nâmica uma vez que, mesmo não sendo de fato um homem do meio rural, ele se identificava com tais modos de vida, tidos como componentes de sua identidade ligada a terra sertaneja. Assim, o mundo moderno com suas tecnologias e inovações é tratado por ele como uma ameaça inexorável a essa essência. Na verdade, o que notamos no decorrer de seus textos é um tom

cada vez mais conformista e pessimista chegando ao ponto de dizer que o seu Sertão não mais existe como fica claro nessa sua fala:

Sim, mas a de um Sertão que se foi, aterrado pela “sifilização”. Sobrevivo como um bicho exótico protegido pelo IBAMA, testemunha que sou do sertão das casas-de-fazenda habitadas, onde o nome das fazendas se incorporava ao sobrenome do proprietário. Do Sertão onde o primo do primo era parente- irmão e, pisando no pé de um doía no pé do outro. Do Sertão onde cada filho de uma família era unido aos outros por sangue e por voto. Sertão de casa de fazenda clareadas a querosene. Sertão onde se cozinhava em panelas de barro, fogão a lenha e se bebia de jarras de Cantareira. Sertão onde se acordava com o canto dos galos para quebrar o jejum com leite mugido. Sertão onde a gente se banhava nas frias águas das cacimbas e dos açudes. Sertão onde os silêncios eram quebrados pelos aboios, o zoar dos búzios, o bater dos chocalhos e das cancelas, o canto das cantadeiras dos carros-de-boi e o estalar dos chicotes dos matutos. Sertão onde a noitinha, depois da ceia de coalhada, se armava redes nos alpendres para ouvir dos mais velhos a crônica do passado. Vosmecê que me perdoem: mas digo com soberba e tudo: amigos, vivi... (LAMARTINE DE FARIA, 2001, p.84).

Tendo em mente podemos compreender o porquê de Lamartine valorizar tanto cer- tos objetos como o ferro de marcar gado já que, “os objetos ajudam a segurar o tempo” (TUAN, 2013, p.228), por que o tempo é uma dimensão muito abstrata, para percebe-lo precisamos ver sua influência sobre os espaços e sobre os seres. Além disso ele fala constantemente de suas viagens ao Sertão em que busca reencontrar aquela paisagem antiga mesmo que apenas nos detalhes como nas raras ocasiões onde se pode observar um vagueiro em seus trajes de couro tradicionais a aboiar um rebanho na estrada.

Neste capítulo procuramos explorar aspectos da relação entre o escritor Oswaldo Lamartine de Faria e alguns dos espaços onde viveu no decorrer de sua vida. Com intuito se- guimos o conceito de topofilia apresentado por Yi-fu Tuan como as relações afetivas entre o homem e o meio ambiente que o rodeia sendo estas escalonadas da simples apreciação visual até a noção de formar com a natureza um todo indivisível.

Tomando esta premissa seguimos para a infância de Lamartine metade urbana me- tade rural e vislumbramos como as relações espaciais que ele teve quando pequeno lhes pro- porcionou um forte apego ao espaço do Seridó enquanto terra de suas origens familiares.

Posteriormente mostramos sua vivencia como administrador rural e de que forma a convivência com homens de oficio das mais variadas artes manuais e técnicas tradicionais lhe fascinou. Foram anos de muita experiência que depois pode ser transformada em livros.

Por fim, tivemos sua longa estada no Rio de Janeiro, anos de muita saudade da terra natal que ajudaram a moldar sua personalidade e estilo. Tempo também de muitas leituras em

horas e horas passadas entre os livros dos sebos cariocas reunindo se alimentando das palavras de grandes escritores. E no final o retorno ao chão natal machucado pela perda.

No próximo capítulo vamos problematizar o conceito de paisagem a partir dos li- vros de Oswaldo Lamartine. Veremos quais dos espaços aqui apresentados aparecem em suas páginas e quais são ocultados. Além disso atentaremos para os humores que são convocados no seu modo ver essas paisagens. Sabemos que a ideia de paisagem é uma das mais prolificas para o pensamento ocidental, portanto antes de realizar qualquer avanço teremos o cuidado de dis- cutir sobre o seu variado e rico desenvolvimento dentro da área de conhecimento com a qual temos nos aproximado neste trabalho a saber a Geografia, entretanto não deixaremos de passar nosso olhar sobre outros conhecimentos para os quais a paisagem também constitui-se como uma preocupação tais como a arquitetura e a arte.

CAPITULO III: IMAGINAÇÃO, PERCEPÇÃO E CULTURA: A CONSTRUÇÃO DA