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2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.2 Língua Escrita

2.2.2 O sistema alfabético do português

A aprendizagem de um sistema de escrita requer uma série de descobertas de extrema importância. Aqui exemplificaremos alguns conhecimentos necessários para a aquisição do nosso sistema.

Logo de início, a criança aprendiz precisa entender que os muitos „risquinhos pretos no papel‟ são símbolos da fala. Lemle (1993) afirma que essa compreensão é algo complexo para a criança, porque uma coisa é símbolo de algo sem que haja qualquer característica semelhante entre eles (por exemplo, a cor verde no sinal de trânsito significa

siga, ande). A autora também coloca a dificuldade para a criança entender que cada letra tem

uma forma e uma simples e pequena alteração no seu desenho pode representar uma letra diferente (como em: n e m). É preciso ainda que o aprendiz compreenda que as letras simbolizam os sons da fala e ele necessariamente deve perceber as diferenças linguisticamente relevantes entre esses sons (LEMLE, 1993).

Outra descoberta deve ser a delimitação das fronteiras da palavra: é comum, no início da aquisição da escrita, as crianças escreverem: „umavez‟ (para: uma vez), „minhavó‟ (para: minha avó). Isso ocorre porque, ao produzirmos oralmente essas sequências, produzimos em uma só emissão de corrente sonora.

Outro aspecto enfatizado por Lemle (1993) é a compreensão da organização espacial da página no nosso sistema de escrita, o que pode parecer óbvio para muitos de nós. No entanto, é possível que tenha de ser ensinado que escrevemos da esquerda para a direita e de cima para baixo, pois dessa compreensão decorre a maneira particular de efetuarmos os movimentos dos olhos durante a leitura, o que é bastante diferente da maneira de olhar um desenho, uma figura.

Após esses conhecimentos adquiridos, a criança aprendiz enfrenta outro nível de descobertas, pois, sendo o nosso sistema de escrita de base alfabética, sua aprendizagem exige o domínio de um pequeno número de símbolos e de regras que os organizam para que seja possível o domínio da decifração do código escrito.

A nossa língua portuguesa é composta por consoantes e vogais que combinadas formam a estrutura do português. Para a língua escrita, estão convencionadas 26 letras que

compõem o conjunto de fonemas consonantais e vocálicos, denominado de alfabeto (A – B – C – D – E – F – G – H – I – J – K – L – M – N – O – P – Q – R – S – T – U – V – W – X – Y – Z). Essas letras se organizam em combinações que possibilitam a expressão de qualquer comunicação escrita no português, e a essa organização chamamos de princípio do sistema alfabético.

Cabe aqui o esclarecimento de que o Novo Acordo Ortográfico7 voltou a incorporar recentemente ao alfabeto da língua portuguesa as letras K, W e Y, que hoje só se empregam em dois casos:

a) na transcrição de nomes próprios estrangeiros e seus derivados. Exemplos: Franklin; Wagneriano; Yala.

b) nas abreviaturas e nos símbolos de uso internacional. Exemplos: kg (quilograma); w (watt); yd (jarda).

2.2.2.1 Organização dos princípios do sistema alfabético, segundo Lemle (1993)

Para explicar a organização do sistema alfabético do português, Lemle (1993) apresenta três tipos de relações entre os fonemas e os grafemas. A primeira é a relação de biunivocidade em que um determinado fonema representado por uma determinada letra e essa letra corresponde apenas e tão somente a esse fonema. No português brasileiro temos nesse tipo de relação somente: /p/, /b/, /t/, /d/, /f/, /v/ e /a/.

Faraco (1994) faz aí duas observações: (1) as unidades sonoras /ɲ/ (como em

banho) e /ʎ/ (como em: palha) também representam relações biunívocas, mesmo existindo

pequeno número de palavras com esses fonemas no português brasileiro e (2) /t/ e /d/ apresentam, à primeira vista, relação de biunivocidade, no entanto, diante da vogal /i/, em muitos dos dialetos brasileiros são pronunciadas como /ʧ/ e /ʤ/ respectivamente.

O segundo tipo de relação descrito por Lemle (1993) é a relação cruzada previsível, em que a letra e o fonema são determinados pelo contexto. Diz respeito a uma letra poder representar mais de um fonema, considerando a posição por ela ocupada e, da mesma forma, um mesmo som poder ser representado por diferentes letras dependendo da sua posição na palavra. Podemos citar como exemplo a letra „s‟ que aparece nas palavras „sacola‟ (/s/) e „caseiro‟ (/z/) representando fonemas diferentes. E o fonema /x/ representado de formas diferentes: „rato‟ e „carroça‟

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Decreto Nº 6.583, de 29 de setembro de 2008, assinado em Lisboa, em 16 de dezembro de 1990, promulga o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

O terceiro tipo de relação tratado pela autora é a relação de concorrência, em que mais de uma letra pode representar o mesmo fonema na mesma posição „casa‟, „exato‟, „azedo‟ (fonema /z/).

Além dessas três relações, Lemle (1993) discute as questões dialetais. Pois, existem regiões brasileiras em que o /l/ em final de sílaba é pronunciado como [w], assim ao registrar a palavra „anel‟ a criança pode enfrentar dificuldade em usar a grafia adequada, considerando que há uma arbitrariedade entre o som por ela produzido e a letra correta para representá-lo ortograficamente.

2.2.2.2 Organização dos princípios do sistema alfabético, segundo Scliar-Cabral (2003)

Leonor Scliar-Cabral (2003) também organiza os princípios do sistema alfabético, apresentando-os em dois conjuntos: as regras de descodificação, ou seja, os princípios aplicados durante a leitura, e as regras de codificação, os princípios aplicados à escrita.

As regras de descodificação tratam do reconhecimento das palavras e da atribuição de sentido. No processo que ocorre entre o sujeito e o texto é necessário que o leitor reconheça e identifique as letras que representam os grafemas e seus respectivos valores para que busque as palavras e as acesse no sistema da língua. Essas regras são apresentadas em três blocos:

1) As regras de correspondência grafo-fonêmica independentes de contexto, em que uma ou duas letras (grafemas) sempre corresponderão à realização de um mesmo fonema (som), independente da posição que ocupe na palavra. Por exemplo: “p” de „pato‟, de „pé‟ será sempre /p/.

2) As regras de correspondência grafo-fonêmica dependentes de contexto, em que os valores fonéticos atribuídos a uma ou duas letras (grafemas) dependem da posição em que se encontram na palavra, ou seja, dependem do contexto, da(s) letra(s) que a(s) precede(m) e/ou a segue(m). Por exemplo: “s” no início de palavras ou no início de sílabas e antecedida por “n”, “l” ou “r” com frequência representará o fonema /s/, por exemplo em: „manso‟, „bolso‟ e „corsa‟. Caso a letra “s” esteja entre vogais ou semivogais, representará o fonema /z/, por exemplo, em „casa‟ e „lousa‟.

3) Por fim, as regras dependentes de metalinguagem e/ou do contexto textual morfossintático e semântico, em que é necessária a análise de características da própria língua, observando-se o contexto em relação à formação da palavra e de seu significado no

texto. Por exemplo, a atribuição de acento gráfico em determinadas palavras ou a formação das conjunções verbais.

As regras de codificação tratam do processo inverso ao da descodificação: o sujeito necessita converter fonemas em grafemas durante a sua produção escrita. Para Scliar- Cabral (2003), a codificação é um processo mais complexo que a descodificação. A pesquisadora esclarece que a leitura antecede a possibilidade de escrita, uma vez que não podemos aprender a escrever sem antes ter aprendido a ler, pois quando lemos não estamos escrevendo, mas quando escrevemos, obrigatoriamente lemos.

As regras de codificação são também apresentadas em blocos:

1) As regras independentes de contexto, assim como na descodificação, significam que determinados fonemas são representados pelos seus respectivos grafemas independente do contexto em que aparecerem, por exemplo: /b/ sempre será escrito como “b” (vejamos: „boca‟, „blefe‟ e „branco‟).

2) As regras dependentes de contexto fonético, também como na descodificação, mostram que determinados fonemas são representados por determinados grafemas dependendo do contexto em que se apresentam, por exemplo: /k/ será escrito com “c” antes das vogais /o/, /Ɔ/, /a/, /õ/ ou /ã/ (como em: „cor‟, „cocada‟, „casa‟, „conta‟ e „cantiga‟); no entanto, quando estiver antes das vogais /i/, /e/, /Ɛ/, /i/ nasalizada e /e/ nasalizada será escrito “qu” (vejamos: „quibe‟, „queijo‟, „querida‟, „quinhentos‟ e „quente‟).

3) As regras das alternativas competitivas nos obrigam a fazer uma seleção no léxico mental ortográfico. É necessário emparelhamento semântico e morfossintático com a forma fonológica. Para Scliar-Cabral (2003), as alternativas competitivas constituem uma grande dificuldade na ortografia atual. Por exemplo: o uso do /s/ em início de vocábulo apresenta-se como “s” antes de qualquer vogal („sala‟, „sela‟, „sede‟, „sila‟, „sola‟ „sonda‟, „subida‟ „sintoma‟ e „sentimento‟), e como “c” antes de vogais /i/, /e/, /Ɛ/, /i/ nasalizada e /e/ nasalizada („cimento‟, „celeiro‟, „cevada‟, „cinza‟ e „centavos‟).

4) As regras dependentes da morfossintaxe e do contexto fonético, tal como na descodificação, dependem de contextos morfossintáticos e fonéticos, como na manutenção de til nos derivados, na acentuação em paroxítonos terminados em /ãw/, no uso da crase, etc.

5) E, por fim, as regras de derivação morfológica evitam sobrecarga do léxico mental ortográfico, inclusive nos contextos competitivos, por exemplo, na escrita das conjugações verbais.

Como visto, o sistema alfabético do PB é organizado em regras que facilitam seu uso no processo de leitura e escrita. Scliar-Cabral (2003) se diz convicta de que a principal

causa dos resultados negativos obtidos no ensino-aprendizagem da leitura e da escrita está exatamente na falta de fundamentação teórica dos educadores brasileiros, a respeito dos processos de descodificação e de codificação. Esses processos constituem as duas vias do sistema alfabético, portanto, a base para os complexos processos de compreensão e produção do texto escrito.

A professora enfatiza que ser bem alfabetizado é não ter dúvida, é não titubear diante de um grafema, o que impede o processamento fluente das frases para se chegar à compreensão textual.

Vamos observar agora a aprendizagem da escrita sob um ângulo mais individual, nas palavras de Scherer (2008), a partir do que nos diz a psicogênese da língua escrita e que ocorre por meio do desenvolvimento cognitivo do aprendiz.

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