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CAPÍTULO I AS METAMORFOSES DO SOCIAL: DA ἀναγκαῖά AOS

2. DEFINIÇÕES DO SOCIAL N‘A CONDIÇÃO HUMANA

2.1. O social como fabrico de corpos políticos

Para compreendermos o conceito do social como processo e experimento, é necessário, anteriormente, compreendermos como a tradição milenar da Filosofia Política, desde Platão, transformou a ação política numa modalidade de fabricação da ordem, isto é, reduziu-a à lógica instrumental da produção de ―instituições‖, um termo de origem moderna. Segundo Arendt, esta seria a multissecular tradição aristocrática da Filosofia Política, cujo cânone sempre pretendeu ―estabelecer uma ordem permanente nos assuntos humanos‖ de modo que pudesse abolir a ―ociosa inutilidade da ação e do discurso, em particular, e da política, em geral‖ (HC, 2011, p.274). A rigor, o que se pretendia, e ainda se pretende, era revogar a ―tripla frustração da ação — a

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Hannah Arendt, The Review of Politics, Vol. 20, No. 4, Twentieth Anniversary Issue: I [Oct., 1958], pp. 570-590.

45 imprevisibilidade dos resultados, a irreversibilidade do processo e o anonimato dos autores‖8

. Esta tradição, que nos revolve ao unicismo político platônico, sempre soube que os homens — sejam os filósofos-reis, os estadistas ou os polloi — não são capazes de desfazer ou controlar os processos desencadeados pela ação, sobretudo porque, ao agir, tais homens podem, imprevisivelmente, lançar sobre o mundo dos assuntos humanos algum tipo inovação tão perene quanto a própria humanidade (HC, 2011, p.291). Segundo Arendt, este é o ―motivo pelo qual jamais podemos prever com certeza o resultado e o fim de qualquer ação‖, ―simplesmente‖ porque ―a ação não tem fim‖, e o ―processo de um único ato pode perdurar, literalmente, por todos os tempos até que a própria humanidade tenha chegado ao fim‖ (idem, p.291). A tradição da Filosofia Política sempre soube que:

aquele que age nunca sabe completamente o que está fazendo; que sempre vem a ser ‗culpado‘ de consequências que jamais pretendeu ou previu; que, por mais desastrosas e imprevisíveis que sejam as consequências do seu ato, jamais poderá desfazê-lo; que o processo por ele iniciado jamais se consuma inequivocamente em um único ato ou evento, e que seu verdadeiro significado jamais se desvela para o ator, mas somente à mirada retrospectiva do historiador, que não age (Arendt, HC, 2011, p. 291).

Diante da imprevisibilidade e irreversibilidade dos processos que se desdobram a partir da ação, a primeira reação dos filósofos quanto a este atributo humano fora, salvo raras exceções, de negação do agir e suas consequências, quais sejam: a milagrosa capacidade de começar espontaneamente algo novo e a capacidade de libertar os homens do jugo da necessidade. As reações contrárias a estas capacidades da ação desdobraram-se desde as prescrições de inação estoica à ataraxia pirrônica, desde a abstenção à apatia e, finalmente, culminaram nas tentativas de constituir diversas politeias (ou ―repúblicas‖) unicistas e utópicas. Estadistas e filósofos buscaram por séculos um substituto para a ação ―na esperança de que o domínio dos assuntos humanos pudesse escapar da acidentalidade e da irresponsabilidade moral inerente à pluralidade dos agentes‖. Esta ―busca de proteção contra as calamidades da ação‖, isto é, a busca pelo controle absoluto do agir e suas consequências, conduziu a imaginação política dos filósofos a prescrever formas de governo nas quais os monarcas pudessem, isoladamente, não apenas serem senhores ―dos seus atos do começo ao fim‖, como

8 Arendt, nesta passagem, omite a tentativa de produzir um sentido prévio para a ação conforme um processo universal que abole o ―caráter acidental do particular‖ e dá a ele ―ordem e necessidade‖. O sentido, assim, torna-se uma escolha pessoal livre e autoimposta. Este problema será melhor examinado no ensaio sobre o conceito de História Antiga e Moderna. Cf. Entre o Passado e o Futuro, pp. 124-125.

46 também pudessem substituir a ação pela fabricação de mundos sociais de modo tal que a pluralidade dos homens fosse reduzida a uma unidade representada pelo símbolo do corpo político, isto é, pelo conceito e pela prática da ideia de Governo.

As formas tirânicas de governo imaginadas pelo cânone da Filosofia Política, portanto, nada mais seriam que tentativas desesperadas de abolir a ação e substituí-la pelas atividades de fabricação de mundos sociais, seja pela aplicação prática da ideia de governo, seja pela lógica da ―produção‖. Que dizer, a ideia de excluir todos os homens do domínio público e impedi-los de participarem das questões comuns teria por propósito derradeiro instituir, violenta e artificialmente, uma ordem perfeitamente estável, segura, produtiva, previsível, passível de ser administrada, controlada e reproduzida ao modo de um experimento social ou científico. Para Arendt, esta fuga da fragilidade intrínseca própria dos assuntos humanos seria um modo de ―encontrar fundamentos teóricos e meios práticos‖ para uma ―completa fuga da política‖ (HC, 2011, p.277).

A dupla fuga — da política e da ação — tornou-se possível na medida em que o agir passou a ser concebido como fabricação da ordem e produção artificial de modos de viver junto. A ação, agora transformada em fabrico e produção de mundos sociais, só pôde transigir para a ordem prática quando os filósofos do político passaram a instituir a crença segundo a qual a divisão entre governantes e governados seria inexpugnável, natural e legítima. Uma vez que tal crença estivesse instituída, o conceito de Governo pôde transformar-se na instituição fundamental do político, sobretudo na era moderna.

Por Governo Arendt compreende ―a noção de que os homens só podem viver juntos, de maneira legítima e política, quando alguns têm o direito de comandar e os demais são forçados a obedecer‖9. A obediência permite que todos ajam ―como um só

homem‖, sem ―qualquer possibilidade de dissensão interna, muito menos de luta de caráter partidário: por meio do governo, ―os muitos se tornam um, em todos os aspectos, exceto na aparência corporal‖ (HC, 2011, p. 279). O conceito de governo não só institui a máxima assimetria entre governantes e governados (porque se funda na desigualdade natural entre os ―escravos por natureza‖ e os ―sábios e dotados de autodomínio de suas paixões‖), como anula a pluralidade dos homens e o dissenso intrínseco a tal pluralidade.

9 Na tradição do pensamento conservador (por exemplo, em Burke e De Maistre), postula-se que os homens nascem naturalmente desiguais em capacidades, atributos e feições. Daí que, para esta tradição, toda tentativa de constituir uma sociedade igualitária seria um modo artificial de violar a natureza desigual dos homens.

47 Por outro lado, a ideia de governo, conforme nos legou a Filosofia Política de Platão — seja ao tratar da arte do pastoreio n‘O Político, seja na

Politeia perfeita d‘A República — originara-se de uma tentativa de estender as

características do domínio doméstico e familiar para a vida pública na pólis. Segundo Arendt, Platão não pretendia ―abolir a família e o lar; pelo contrário, ele pretendia ampliar a vida doméstica ao ponto em que todos os cidadãos fossem assimilados a uma única família‖. Daí que a relação entre governantes e governados seria análoga à relação entre senhor e escravo, ou entre pastor e rebanho, ambas analogias da vida doméstica aplicadas ao domínio público.

A longevidade do conceito de governo, conforme legado por Platão, deve-se ao fato de que esta descoberta ―institucional‖ fora assimilada e reformulada pela tradição aristocrática e demofóbica da Filosofia Política a qual Arendt denomina por ―teorias da dominação‖, de Hobbes a Max Weber10

. Platão substituíra a ação pelo conceito de governo mediante a aplicação da doutrina das ideias à política. Governar, portanto, pressupunha que os governantes concebessem uma ―ideia‖ — palavra oriunda do ―domínio da fabricação‖ de utensílios — tal como é comum na experiência da fabricação, quando o artesão antevê o desenho ou forma do objeto que produzirá e, em seguida, utiliza as ferramentas e instrumentos para plasmar e materializar o objeto até então preconcebido como pura forma. Assim, governar implicaria em preconceber uma dada ordem social e empregar os meios necessários para que os governados a materializem a posteriori. Neste caso, os governados são os executores da ordem imaginada e preconcebida pelos governantes-artífices (os arcontes) de modo tal que ―quem sabe não precisa fazer, e quem faz não precisa pensar e conhecer‖ o que está a fazer (2011, p. 278). Platão, ao criar o conceito de governo, como sabemos, por inspiração da civilização egípcia e da arte hierática, o fez para:

Garantir que o iniciador [o arconte, o archon] permanecesse como senhor absoluto daquilo que começou, prescindindo do auxílio de outros para levá-lo a cabo. No âmbito da ação, esse domínio isolado

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Arendt, neste aspecto, desconsidera que a teoria da dominação de Weber (Herrschaft) não é uma teoria do poder no sentido instrumental o qual ela critica. As formas histórico-analíticas de dominação, segundo Weber — dominação carismática, tradicional e legal-burocrática — só interessam à sua sociologia das religiões na medida em que seus tipos de senhorio são capazes de produzir obediência legítima ante uma comunidade racional de adeptos. Enquanto o poder — no sentido hobbesiano dos recursos da chantagem, do poderio econômico e da persuasão — é passível de ser exercido ilegitimamente, podendo se esgotar na medida em que não houver mais disponibilidade de recursos por quem comanda, a dominação weberiana é exercida legitimamente por consentimento de quem obedece e, por isso, pode se perpetuar por séculos e constituir civilizações, todas, fundadas por líderes religiosos: budismo, judaísmo, cristianismo, hinduísmo, taoísmo e confucionismo.

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só pode ser alcançado quando os outros são usados na execução de ordens, quando já não é necessário que adiram por iniciativa própria ao empreendimento, com seus próprios objetivos e motivações, e quando, por outro lado, aquele que tomou a iniciativa não se permite qualquer envolvimento na própria ação. (Arendt, HC, 2011, p. 277- 278).

Para o bom exercício da arte de governar, diz-nos Platão, é preciso distinguir a ação entre o ―começar‖ (archein) e o realizar (prattein), ―duas atividades inteiramente diferentes‖. O arconte (archon), isto é, o governante, não precisa executar a ação, mas tão somente governar (archein) aqueles que a farão, os executores. Agir, segundo esta divisão, não se define apenas como pensar e conceber uma ordem social, mas também executar as ordens automaticamente, eliminando o pensamento como parte essencial da ação. Quem sabe e concebe não executa, apenas inicia o governo previamente idealizado; quem executa a ação por obediência mecânica, como autômato, fá-lo de modo absolutamente alheio ao sentido ou finalidade do que faz. Assim, pensamento e ação se dissociam como atividades independentes e intransitivas11.

Ao propor esta dissociação, Platão violou a concepção experiencial da ação no mundo da pólis. Para os gregos da idade clássica, a ação presumia que o agente fosse capaz de pensar, saber, fazer e executar algo, necessariamente nesta ordem de transitividade. Não havia distinção entre saber e executar. Archein e prattein compunham uma mesma ação, isto é, a ação começava e realizava-se num mesmo movimento. A despeito da ruptura com a experiência grega da pólis, esta proposição platônica que associa conhecimento com governo, assim como ação com obediência e execução de ordens assimiladas, prevaleceu na tradição da reflexão política, sobretudo depois do surgimento da era moderna.

Como assinala Arendt, n‘A República as ideias deixam de ser definidas a partir de uma concepção estética — as ideias são aquilo ―que mais brilha‖ (ekphanestaton) — e passam a ser definidas canonicamente, no sentido de egípcio de:

padrões, medidas e regras de comportamento, todos eles variações ou derivações da ideia do ―bem‖ na acepção grega da palavra, isto é, do

11 A inversão entre ação e fabricação aparece de forma diversa na Metafísica de Aristóteles, como assinala Arendt (2011, p.376-377). Aristóteles entende que a fabricação (epistemé poietike) precede imediatamente a contemplação da verdade (teoria), pondo a ciência política no mais baixo nível da hierarquia dos tipos de cognição. Aristóteles, contudo, não suspeitava da ação. Sua inversão decorre da suspeição de que ―a contemplação e a fabricação (theoria e poiesis) têm estreita afinidade e não se posicionam em uma oposição inequívoca tal como a que existe entre contemplação e ação‖. Para Aristóteles, a arte do fabrico é também uma arte contemplativa da ideia prefigurada e materializada.

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que é ―bom para‖ ou do que é ―adequado‖ (Arendt, HC, 2011, pp. 281).

Quando o rei-filósofo passa a conviver com seus semelhantes no escuro da Caverna, só então:

é que ele necessita das ideias que guiem como padrões e regras que lhe permitam medir e sob os quais subsumir a multiplicidade vária dos atos e palavras humanos com a mesma certeza absoluta e ‗objetiva‘ com que pode se orientar o artesão na fabricação e o leigo no julgamento de cada cama individual, pelo emprego do modelo estável e sempre presente, a ‗ideia‘ da cama em geral (Arendt, HC, 2011, p. 281-282).

O propósito de Platão, como já dissemos, era abolir o caráter frágil, imprevisível e improdutivo da ação. Para o rei-filósofo, o bem deveria ser avaliado como a mais elevada das ideias, acima até mesmo do belo. A arte da política, uma vez imaginada como fabrico, igualar-se-ia às demais artes do artesanato, de modo que não seria a pessoa do artista-demiurgo quem deveria ser louvada, mas ―o objeto impessoal de sua arte ou ofício‖. O artesão de mundos sociais é aí concebido como um mero operador ou aplicador das formas ideais as quais mobiliza de modo a dar a elas, tal como fazem os bons artesãos, uma materialidade conformada aos padrões e regras impostos pelo cânone12. A cidade ideal não é imaginada, propriamente, mas pensada e construída como a mais perfeita adequação às proporções oriundas do modelo numênico eidético. As leis ontológicas regentes desta gênese são canônicas e não dizem respeito às opiniões ou ao prazer do operador, mas à reprodução fiel das regras de simetria e igualdade impostas pelo objeto ideal imitado. As leis canônicas das formas ideais prefiguram a liberdade criativa de modo que, tanto na arte quanto na política, toda pluralidade é desautorizada. Assim se constroem as plantas que prefiguram os corpos políticos: a partir de uma política de imitação cujo fundamento repousa nas formas do mundo numênico e suas leis canônicas e unicistas13.

12 Ao analisar o conceito de Governo na Filosofia Política platônica e defini-lo como parâmetro ou cânone da ação do governante, Arendt entende que a República está amparada numa ―ordem psicológica que, na verdade, reproduz a ordem pública de sua cidade utópica‖ (2011, p. 280). Creio que somente na era moderna, precisamente a partir da Filosofia Política hobbesiana, surgiu a ideia de fundar uma ordem pública a partir da imposição de estados psicológicos como ―awe‖, ―terror‖ e ―fear‖. Esta psicologia jamais fora proposta pela filosofia tradicional, seja grega, seja romana. A Filosofia Política antiga não apregoava a fundação de uma ordem a partir de certos estados psicológicos dos súditos.

13 Não é nosso propósito aqui examinar criticamente a interpretação arendtiana da Filosofia Política de Platão, porém nos chama a atenção que, em momento algum, Arendt cogitou a possibilidade de que A

Politeia seja um livro irônico, como aliás, o interpreta Leo Strauss. Se for verdadeiro o argumento

50 Para abolir a ação e a política, as formas utópicas da modernidade, réplicas de segunda ordem da utopia platônica, passaram a glorificar a violência como catalisadora do fabrico de mundos sociais. Uma vez que a ação passou a ser concebida como produção, a violência passou a ser o dínamo das fundações e refundações da ordem política moderna:

Somente a convicção da era moderna de que o homem só pode conhecer aquilo que ele mesmo faz, de que suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricação e de que ele é, portanto, basicamente um homo faber e não um animal rationale, trouxe à baila as implicações muito mais antigas da violência inerentes a todas as interpretações do domínio dos assuntos humanos como uma esfera de fabricação. Percebe-se isso nitidamente na série de revoluções, típicas da era moderna, todas as quais — com exceção da Revolução Americana — revelam a mesma combinação do antigo entusiasmo romano pela fundação de um novo corpo político com a glorificação da violência como único meio de ‗produzir‘ esse corpo (Arendt, HC, 2011, pp.284-285).

Como afirma Arendt, assim nasceu a concepção segundo a qual a história é ―produzida‖ pelo homem na mesma medida em que a natureza é ―produzida‖ por Deus. A ação transformou-se numa modalidade de fabricação e passou a ser concebida segundo o cacoete moderno da relação entre meios e fins, isto é, passou a ser compreendida de modo instrumental. Arendt nos alerta para as ―consequências mortíferas‖ desta redução da ação a instrumento de fabrico de instituições e processos sociais. Estes seriam os ―caminhos batidos do pensamento‖, os quais restringiram a ação e a política a uma teleologia do fabrico e do processamento.

Embora a Filosofia Política platônica tenha dado origem a esta transformação da ação e da política em arte de fabricação institucional e em técnica de governo, tal legado platônico só fora posto no centro da Filosofia Política pelos pensadores modernos, os quais libertaram a tradição do preconceito, próprio da Filosofia Antiga, em relação ao trabalho e ao fabrico. Segundo Arendt, Platão e Aristóteles ―foram os primeiros a propor que as questões políticas fossem tratadas, e os corpos políticos governados, à maneira da fabricação‖ (HC, 2011, p.287). Foi somente na era moderna, também, que surgiram os conceitos de experimento e processo, os quais caracterizam o social como um tipo de ação meramente executora, impensada, ao qual Platão denominava, como

tentativa de Platão em abolir a ação (em sentido tradicional) é inválida. A hipótese straussiana dos diálogos platônicos como um exercício de ironia socrática é bastante plausível. Como diz o intérprete: ―Falar pela boca de um homem que é notório por sua ironia parece ser o mesmo que não afirmar nada". Cf. Leo Strauss, The City and Man, 1978, University of Chicago Press, p.51.

51 vimos, por prattein. Somente com a assunção das ideias de experimento e processo a teleologia do fabrico de instituições políticas, a concepção da produção da ordem como artifício e a própria ideia de Governo, puderam se concretizar como práticas do Estado soberano territorial moderno. Com a difusão da ideia de experimento, desde Galileu, o homem moderno começou a agir na natureza ao invés de simplesmente contemplar e registrar fenômenos. Arendt aponta-nos algumas das principais características do experimento moderno as quais explicam a aplicação deste recurso de investigação no exame dos fenômenos da natureza tanto quanto nos assuntos humanos. É o que veremos a seguir.

Podemos concluir, preliminarmente, que o conceito do social fora prefigurado pela Filosofia Política platônica e sua utopia unicista da cidade ideal. Tal legado fora ―aperfeiçoada‖ pela Filosofia Política moderna e pelas Ciências do Social na medida em que a concepção platônica da ação como fabricação e obediência mecânica (prattein) passou a ocupar o centro das instituições políticas modernas. A ideia onipresente em todas as reflexões políticas, desde Hobbes, seria engendrar uma ordem social estável, previsível e administrada, de modo a excluir os homens do domínio público. O social, assim, passou a designar a postulação de mundos cuja ordem só seria possível ante a fuga da fragilidade e calamidade intrínseca à ação humana livre e inovadora, quer dizer, a fuga da política e da ação no sentido clássico greco-romano. Desde sua origem, o social apresentou-se como um contraconceito do político, sobretudo quando instituiu o conceito de governo e o consolidou como mecanismo central de produção e fabricação da ordem unicista, vertical e assimétrica (isto é, mediante a divisão natural, legítima e intransponível entre governantes e governados). O conceito do social, portanto, pressupôs, desde sempre, que a ordem pública deve ser prefigurada pelos governantes que dão início a uma variedade de experimentos os quais visam abolir o pensamento e engendrar uma ordem de autômatos.