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O social e a emancipação pública do trabalho

CAPÍTULO I AS METAMORFOSES DO SOCIAL: DA ἀναγκαῖά AOS

4. OS PROCESSOS DO SOCIAL E SEUS DESDOBRAMENTOS

4.5. O social e a emancipação pública do trabalho

A emancipação da condição humana da fabricação (work) ocorreu em três sentidos: 1) a emancipação simbólica do trabalho (work) em relação ao ciclo regenerativo do labor (labor) e em relação às necessidades vegetativo-corporais do corpo humano; 2) a emancipação política do trabalho convertido em categoria de representação pública no espaço visível do domínio comum dos cidadãos de modo que a atividade do trabalho passou a ser constitutiva da identidade coletiva dos agentes em

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concerto. Neste processo, o trabalho deixou de ser compreendido como uma escravidão imposta pelas necessidades inerentes à condição humana e passou a ser um símbolo de emancipação e mobilização política; 3) a consequente glorificação do trabalho como a mais elevada e digna das atividades humanas, a ponto de generalizar e qualificar todas as formas de ação humana como ―trabalho‖, logo, como atividade útil. A partir de tal glorificação, o trabalho passou a ocupar o topo da hierarquia dentre as atividades da vita

activa, reduzindo a ação à mera atividade de fabricação. Como assinala Arendt, o

trabalho passou a ser a ―mais estimada de todas as atividades humanas‖. Estes três sentidos da emancipação constituíram a sociedade de trabalhadores cuja preocupação primordial fora, desde sua origem, prover com abundância as necessidades vitais do homem. Uma vez que tal sociedade de trabalhadores tenha conquistado a vitória (ou triunfo) sobre as necessidades, ela passa a constituir-se como uma sociedade de consumidores, cuja preocupação principal passa a ser a felicidade numa vida longa, prazerosa, confortável, abundante e guiada pelos valores do consumo e do hedonismo. A vitória sobre as necessidades no mundo moderno, portanto, deve-se ―à emancipação do trabalho, isto é, ao fato de que o animal laborans foi admitido no domínio público‖ (Arendt, 2011, p.166), passando a ser o protagonista das sociedades de cultura de massas.

Em resumo, estes seriam os três sentidos transitivos da emancipação pública do trabalho. Cabe-nos então responder, a partir desta constatação, quais foram os eventos e fatores concorrentes decisivos para que tal emancipação ocorresse no curso da história política moderna. Segundo Arendt, foram cinco os eventos cruciais para a emancipação68. O primeiro fora a transformação da atividade do trabalho em processo- de-trabalho, de tal modo que esta atividade passou a ser concebida como uma réplica da dinâmica cíclica do processo vital. Esta transformação, afirma Arendt, proviera da Filosofia marxista que compreendia o trabalho e a procriação (ou fertilidade) como ―duas modalidades do mesmo fértil processo da vida‖ (Arendt, 2011, p.130). Como

68 Não considerei, dentre estes fatores concorrentes para a emancipação pública do trabalho, a vitória da concepção ―do trabalho como fonte de toda propriedade‖, conforme entendia Locke, ou como fonte de toda riqueza acumulada, como afirmara Adam Smith. Sem embargo, Arendt enfatiza que o surgimento de uma sociedade de trabalhadores fora antecedido pelo surgimento de uma sociedade de proprietários: ―com a aquisição da propriedade é interrompida a ‗implacabilidade‘ com que o processo do trabalho é compelido pelo processo vital‖ uma vez que se estabelece um elo entre a privatividade da apropriação e a sociedade que protege a legalmente. Não obstante, ao eleger Marx como interlocutor privilegiado, Arendt partiu do pressuposto de que a emancipação começa de fato quando o trabalho passa a ser considerado fonte de toda produtividade, além de tornar-se expressão máxima ―da própria humanidade do homem‖, como postulava Marx. Somente a partir destas duas reviravoltas dos valores é que o trabalho passa a ser concebido como um processo ou processo de trabalho.

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sabemos, Marx entendia que o trabalho não só representava a ―reprodução da vida do próprio indivíduo‖ como seria a instituição responsável por assegurar a própria ―sobrevivência da espécie‖. Nesta lógica, o trabalho designava a produção e a reprodução da espécie humana, denominada, em sua natureza social de ―Gattungswesen do homem, isto é, sua qualidade de membro da espécie‖ (Arendt, 2011, p.110). Segundo Arendt, esta subsunção do trabalho no processo fértil vital só se tornou possível porque Marx ―ajustou‖ sua teoria do trabalho à dinâmica dos processos na era moderna, de modo que a visão álacre do trabalho (a crença na ―bênção‖ ou na ―alegria do trabalho‖), herdada da tradição hebraica, passou a ser conciliada com a exigência de produtividade. Ao proceder o ―equacionamento‖ ou o ―ajuste‖ entre a produtividade e a fertilidade Marx o fez de modo que ―a força da vida‖ se tornasse fertilidade e esta, por sua vez, se tornasse a força-motriz do ―processo das forças produtivas da sociedade‖ (Arendt, 2011, p. 134). Esforço e gratificação, produção e consumo, trabalho e descanso, dor e alegria, regeneração e reprodução foram subsumidos num mesmo ciclo fértil vital de produção do excedente e de reprodução da espécie. Marx ―ajustou sua teoria, a teoria da era moderna, às mais antigas e persistentes intuições sobre a natureza do trabalho, que, segundo as tradições hebraica e clássica, estava tão intimamente ligada à vida quanto o nascimento‖ (2011, p.141).

Ao fazer uma análise fenomenológica do trabalho industrial, dando ênfase às características fundamentais da fabricação — o emprego brutal da violência no processo de produção, a reificação da matéria-prima transformada em objetos tangíveis e produtos finais, a repetição coletiva dos movimentos, a simbiose entre o ritmo das máquinas e instrumentos e o ritmo do homem que trabalha69, a multiplicação dos objetos mentalmente prefigurados e posteriormente materializados — Arendt quer salientar o quanto a dinâmica moderna dos processos de fabricação incorporou e aproveitou tais elementos vitais eivados de satisfação pessoal, autoconfiança e autonomia, para maximizar não só a produtividade, mas também a adesão dos operários ao trabalho enquanto símbolo de pertença e de orgulho (―viver do suor do próprio rosto‖). Sem estes elementos vitalistas, a lógica dos processos não subsistiria, sobretudo

69 Esta seria a ―unificação rítmica do corpo trabalhador com seus utensílios, na qual o próprio movimento do trabalho age como força unificadora. O trabalho, mas não a obra, requer, para obter melhores resultados, uma execução ritmicamente ordenada, [...] exige uma coordenação rítmica de todos os movimentos individuais‖. Daí as canções de trabalho que fazem do ―trabalho rítmico‖ uma atividade ―altamente espiritual‖ (Arendt, 2011, p.181). A tese de Arendt, neste aspecto, é que o processo de trabalho se converte em ritmo para maximizar a produtividade, repetir o ritmo cíclico do processo vital e gerar adesão e orgulho entre os trabalhadores.

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em razão do seu funcionamento enfadonho e puramente mecânico. Ou melhor, sem este amálgama de elementos emocionais, vitais, religiosos e funcionais o processo de emancipação pública do trabalho não ocorreria. Sem o orgulho do trabalho não haveria como emancipar politicamente tal atividade.

Nesta lógica, a produtividade do trabalho passou a resultar não apenas deste amálgama entre os elementos vitais, religiosos e funcionais, mas também do ―equacionamento da produtividade com a fertilidade‖, de tal modo que o ciclo sempre- recorrente entre labor, trabalho, superabundância e fertilidade passou a ser experienciado como ―a pura satisfação de estar vivo‖ enquanto criatura. A partir desta ressignificação, a humanidade trabalhadora passou a presumir que ―não existe felicidade duradoura fora do ciclo [feliz e sem propósito] prescrito de exaustão dolorosa e regeneração prazerosa‖ (2011, p.133). Neste aspecto, a teoria e a práxis do trabalho segundo Marx ―coincidiu‖ com as ―teorias da evolução natural do processo vital‖ (2011, p.143-144). Em resumo, a transformação do trabalho em processo, a partir das descobertas revolucionárias de Karl Marx, tornou-se possível pelo ―equacionamento‖ entre produtividade e fertilidade, ou pelo ―ajuste‖ entre processos modernos de trabalho e a tradição hebraica da ―alegria de trabalhar‖, ou, finalmente, pela ―coincidência‖ entre esta dinâmica processual moderna e as teorias vitalistas e relativas à evolução natural da vida. É neste aspecto que a revolução teórico-prática de Marx se constituiu num evento.

O segundo evento decisivo para a emancipação pública do trabalho fora o advento da moderna divisão do trabalho. Segundo Arendt, ―a divisão do trabalho resultou diretamente do processo do trabalho‖ (2011, p.152) e definiu-se ―pelo princípio geral da organização‖ dos partícipes que se reúnem em conjunto de modo que haja uma:

equivalência qualitativa de todas as atividades singulares para as quais nenhuma habilidade especial é necessária; e essas atividades não têm um fim em si mesmas, mas representam, de fato, somente certas quantidades de força de trabalho, somadas umas às outras de modo puramente quantitativo. A divisão do trabalho é baseada no fato de que dois homens podem reunir sua força de trabalho e ―proceder um com o outro como se fossem um só‖. Essa unidade é o oposto da cooperação; ela indica a unidade da espécie, em relação à qual cada membro individual é igual e intercambiável (Arendt, 2011, pp.152- 153).

Concebida como um conjunto de trabalhadores ―socialmente organizados segundo este princípio da força de trabalho comum e divisível‖, a divisão do trabalho anula o sentido da atividade executada pelo partícipe tendo em vista que, ao seccionar o

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processo de produção em etapas, a função individual exercida não tem uma finalidade intrínseca, voltada para o produto acabado, mas somente uma finalidade automática, ―natural‖, isto é, ―a reprodução dos meios de subsistência‖ e a ―exaustão da força de trabalho humana‖ (2011, p.153). Nesta divisão de produção, todos os trabalhadores são concebidos como avos da ―força de trabalho‖ coletiva que, embora fracionada, torna-se indivisa porque seu vigor provém, em última instância, da unidade da espécie humana, não dos indivíduos isolados, homens substituíveis e mortais que compõem provisoriamente tal unidade. Por isso, a divisão do trabalho tornou-se ―inteiramente adequada e em consonância com o processo do trabalho‖ (e com o processo da obra), isto é, ela se constituiu num evento material cuja consequência visível fora não apenas a consolidação do trabalho como processo de produção de bens de consumo e reprodução da espécie humana, mas também implicou o estreitamento da diferença entre bens de consumo e obras duráveis. Nesta lógica, toda a produção passou a ser obrigatoriamente perecível a médio prazo: para acelerar e tornar interminável o ciclo de produção e consumo.

Daí terceiro evento decisivo para a emancipação pública do trabalho: a emergência de uma sociedade de consumidores. Arendt considera que, com a moderna divisão do trabalho, o ônus das necessidades da vida biológica foi dividido de modo a diminuir o quinhão de cada trabalhador na provisão dos bens duráveis e perecíveis para a ―humanidade socializada‖, como a denominara Marx. Esta divisão do ônus, movida também pela ―repugnância à futilidade‖, não apenas incrementou exponencialmente a divisão do trabalho mediante a invenção de ferramentas e instrumentos de automação produtiva como ―suavizou consideravelmente o esforço do trabalho‖, de modo que a sociedade do homo faber passou a produzir seus insumos de subsistência e reprodução conforme a mesma mecânica automática do processo laboral-vegetativo dos corpos, ainda que o ritmo de tal processo vital fosse demasiadamente lento em relação ao acelerado ritmo do processo de produção industrial70. O resultado desta divisão do ônus das necessidades da vida biológica fora o aumento da ―fertilidade natural do animal

laborans‖ (2011, p.150), produzindo uma inédita superabundância de bens de consumo.

Uma sociedade de consumo, nesta lógica, não poderia prescindir da produtividade de

70 Não obstante, a imitação de processos naturais na dinâmica do processo de trabalho fora regra no primeiro estágio da revolução industrial. Esta lógica mimética desnaturaliza a matéria-prima natural segundo os fins mundanos preestabelecidos, ―de sorte que o mundo ou o artifício humano, de um lado, e a natureza, de outro, permanecem como duas entidades nitidamente separadas. Na era dos processos whiteheadianos ―passamos a ‗criar‘, isto é, desencadear por nossa própria iniciativa processos naturais que jamais teriam ocorrido sem nós‖ (Arendt, 2011, p.185).

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uma sociedade de trabalhadores. Afinal, consumo, trabalho, abundância e languidez só podem coexistir numa sociedade onde todos arcam com seu ônus de escravidão, ainda que de modo desigual. Daí a aceleração contínua do tempo de perecimento dos produtos do capitalismo industrial. Os processos da obra, nesta lógica do tempo à frente de si mesmo, convertem-se em objetos de consumo a serem permanentemente repostos pela abundância:

A interminabilidade do processo de trabalho é garantida pelas sempre- recorrentes necessidades de consumo; a interminabilidade da produção só pode ser garantida se os seus produtos perderem o caráter de objetos de uso e se tornarem cada vez mais objetos de consumo, ou, em outras palavras, se o ritmo do uso for acelerado tão tremendamente que a diferença objetiva entre uso e consumo, entre a relativa durabilidade dos objetos de uso e o rápido ir e vir dos bens de consumo, reduzir-se até se tornar insignificante (Arendt, 2011, p.155)

A emancipação pública do trabalho, portanto, permitiu que a sociedade de trabalhadores atendesse às demandas intermináveis da sociedade de consumidores. Podemos então afirmar que o evento da aceleração proposital da perecibilidade dos bens de uso transformados em bens de consumo conduziu à emancipação pública do trabalho com vistas a atender ao ônus das necessidades da vida biológica, isto é, ao ônus de uma sociedade de consumidores.

Daí o quarto evento responsável pela emancipação pública do trabalho: a redução de todas as atividades humanas à categoria ―trabalho‖ enquanto provedora das necessidades vitais e mantenedora da abundância social. O trabalho convertera-se em ―denominador comum‖ não apenas das ocupações manuais, mas também das atividades intelectuais criativas, tais como aquelas ligadas às artes, às ciências, à filosofia e à política. Todas as ocupações passaram a reivindicar para si o status de ―profissões‖ no sentido de um ofício socialmente reconhecido a partir do qual os ―profissionais‖ estariam habilitados a ―prover o próprio sustento‖ (Arendt, 2011, p.157). A emancipação pública do trabalho tornou-se possível na medida em que a lógica meios- fins se generalizou para todas as atividades humanas. Mais do que um fenômeno social difuso, a redução de todas as atividades humanas à condição de ―trabalho‖ tornou-se recorrente também nas modernas teorias do trabalho, as quais ―quase unanimemente‖ passaram a definir ―o trabalho como o oposto do divertir-se‖. Daí que:

Todas as atividades sérias, independentemente dos frutos que produzam, são chamadas [desde então] de trabalho, enquanto toda atividade que não seja necessária, nem para a vida do indivíduo nem

154 para o processo vital da sociedade, é classificada como divertimento [playfulness]. [...] A emancipação do trabalho não resultou em uma equiparação dessa atividade a outras atividades da vita activa, mas em seu predomínio quase incontestável. Do ponto de vista de ―prover o próprio sustento‖, toda atividade não relacionada com o trabalho torn[ou]-se um ―passatempo‖ (Arendt, 2011, pp.157-158).

Nesta lógica, a emancipação do trabalho resultou numa glorificação da atividade de trabalhar compreendida como meio de provisão das necessidades vitais; tal glorificação está, desde a origem, ―intimamente relacionada com a degradação de todas as atividades que resultam diretamente da violência‖, tais como a guerra, a pirataria e a espoliação. Toda riqueza, na sociedade dos trabalhadores e consumidores, deve vir do trabalho, jamais do espólio. Em razão deste imperativo moral de coibição da violência, a emancipação pública do trabalho — compreendido em seu metabolismo com a natureza — permitiu que se abrissem ―quase automaticamente as portas [do domínio público] ao retorno da necessidade em seu nível mais elementar‖ (2011, p.161). Assim, tal ―glorificação do trabalho como fonte de todos os valores‖ resultou numa ―elevação do

animal laborans à posição tradicionalmente ocupada pelo animal rationale‖ (2011,

p.105). Quer dizer, a glorificação do trabalho, ao subsumir todas as atividades humanas no seu processo de reprodução vital, permitiu que o animal laborans passasse a ser o protagonista do mundo público moderno. Assim fora consolidada a sociedade dos trabalhadores-consumidores.

O quinto evento decisivo para que ocorresse a emancipação pública do trabalho fora a emergência de uma classe trabalhadora politicamente organizada, cuja representação autêntica escapava às reivindicações reformistas e inclusivas dos sindicatos bem como à representação por interesses comum aos partidos. A representação autêntica dos trabalhadores ocorrera em ―momentos raros e decisivos‖ quando os líderes dos movimentos operários (desde a Primavera dos Povos, em 1848, até a Revolução Húngara, em 1956) não se deixavam guiar ―por programas e ideologias partidárias oficiais‖ e, assim, ao falarem e agirem homem qua homem, ―tinham ideias próprias quanto às possibilidades de governo democrático nas condições modernas‖, tal como fora o caso da proposição, sem êxito, do ―sistema de conselhos populares em substituição ao sistema partidário continental‖ (Arendt, 2011, pp.269-270). Assim é que ―a despeito de toda conversa e teoria, os trabalhadores foram o único grupo no cenário político que, além de defender seus interesses econômicos, travou uma batalha inteiramente política‖ (2011, p. 273). Fora em razão deste ―vasto potencial de poder‖

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que o trabalhador moderno fora admitido no domínio público enquanto cidadão emancipado. Por isso Arendt assinala que ―o momento crucial da história do trabalho foi a abolição do requisito de propriedade para o direito de voto. Até então, a condição do trabalho livre era muito semelhante à da [...] população escrava emancipada, na Antiguidade: constituía-se de homens livres, assimilados à condição de residentes estrangeiros, mas não eram cidadãos‖ (2011, p. 271). O movimento espontâneo dos trabalhadores fora autêntico e representativo a ponto de exercer uma ―força de atração‖ sobre todo o povo, engendrando um espaço público particular ―com novos padrões políticos‖. Em razão de tal representatividade, os trabalhadores deixaram de representar- se como classe isolada de interesses e para tornar suas reivindicações ―unânimes entre todo o povo‖, como fora o caso da proposição de um sistema parlamentar organizado a partir de ―conselhos ao invés de partidos‖ (2011, p.274).

Todos estes eventos estão relacionados aos processos concrescentes desencadeados pelo social. Assim, o trabalho foi promovido à estatura de coisa pública e se libertou do círculo biológico-laboral do comer para trabalhar e trabalhar para comer. Ao emancipar o trabalho e admiti-lo no mundo público, os processos do social não apenas libertaram tal instituição do processo fisiológico sempre-recorrente, mas deram à fabricação (work) uma valoração positiva historicamente inédita. Admitir o trabalho no mundo público alterou o caráter do próprio domínio público, sobretudo porque o trabalho socializado transformou-se em ―progressivo desenvolvimento‖ e perdeu a acepção antiga de atividade escrava da atividade laboral. Neste aspecto do progresso e do desenvolvimento, Arendt enfatiza que o social produziu o natural crescimento do artificial, isto é, o aumento da produtividade do trabalho de modo que as questões da divisão do trabalho social e da mecanização da produção passaram a ser objeto de preocupação do domínio público. Assim se deu a ―revolucionária transformação da atividade do trabalho‖. Fato é que este é o único processo decorrente do surgimento do social que Hannah Arendt vê como positivo e emancipador. Todos os demais, como vimos, têm uma acepção negativa vinculada aos processos de animalização do homem.

Cabe-nos, finalmente, fazer algumas ligeiras considerações acerca da crítica de Hannah Arendt a Karl Marx. A produção bibliográfica acerca desta crítica é tamanha que nos demandaria uma investigação à parte. Segundo Arendt, a emancipação pública do trabalho permitiu que houvesse um ―artificial crescimento do natural‖; a força-motriz de tal crescimento estaria no aumento da produtividade do trabalho. Mas o que define e

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como opera esta produtividade? Marx assinala que a produtividade do trabalho reside, em última instância, na ―força‖ física corporal de cada indivíduo e seus respectivos limites de exaustão. Este limitado vigor físico, assinala Arendt, ―não se esgota depois que [o indivíduo] produz seus meios de subsistência e sobrevivência‖; contrariamente, os indivíduos somados mostram-se capazes de produzir um ―excedente‖ que ultrapassa as demandas do necessário para cada um deles e para a própria reprodução da prole, isto é, do proletariado como um todo. Nesta lógica, não é o trabalho que explica a produtividade do trabalho, ―mas o excedente da ‗força de trabalho‘‖ (Arendt, 2011, p.108) como puro somatório de força física e energia humana. A força de trabalho ―é uma modalidade especificamente humana de força vital, tão capaz de criar um ‗excedente‘ quanto o é a própria natureza‖ (Arendt, 2011, p.134). A produtividade da força de trabalho, portanto, caracteriza-se por ―preocupar-se primordialmente com os meios de sua própria reprodução‖ a qual, uma vez assegurada, continua a produzir o ―excedente‖ mediante o uso da força vital excedente. O propósito do processo de trabalho, portanto, é garantir ―a reprodução de mais de um processo vital‖, isto é, garantir a reprodução do processo vital do gênero humano. Assim, ―o trabalho de alguns torna-se o bastante para a vida de todos‖ (Arendt, 2011, p.109). É por isso que, para Marx, a força motriz da produtividade do processo de trabalho reside no somatório das energias do animal laborans, não no trabalho propriamente dito. A produtividade está no ―excedente potencial inerente à força de trabalho humana, e não na qualidade ou no caráter das coisas que [tal excedente] produz‖.

Por outro lado, como já explicamos anteriormente, é próprio da ação processual conceber a vida humana como espécie, uma vez que os processos modernos são cegos à