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1. SUBTEXTO, UMA PROPOSTA DE CIRCUNSCRIÇÃO NA SEMIÓTICA ​

1.2 O subtexto na semiótica

1.2.4 O subtexto na semântica do nível discursivo

O nível discursivo, como vimos anteriormente, é o nível em que as formas abstratas do nível narrativo são revestidas de termos que lhe dão concretude (entrar em conjunção com o sucesso no nível narrativo, por exemplo, pode se dar no nível discursivo por meio do recebimento de um Oscar ou, hoje em dia, pelo número de seguidores que determinado influenciador digital contabiliza na internet). Esse processo se dá por meio da tematização e da figurativização (FIORIN, 2016: p. 90). É a semântica discursiva que reveste e, por isso, concretiza as mudanças de estado do nível narrativo. Nela, o subtexto se sedimenta, por exemplo, no uso das figuras, da polissemia, da metáfora e da metonímia.

Quando as figuras não pertencem a mesmo percurso figurativo, mas estão unidas por algum traço sêmico, elas podem embutir, em sua relação, um outro tema subjacente àquele que se encontra mais à superfície. Fiorin explora mais um exemplo de Brás Cubas para ilustrar o mecanismo, desta vez, reproduzindo um excerto do capítulo 17, “Do trapézio e outras coisas”:

...Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos réis; nada menos. Meu pai, logo que teve aragem dos onze contos, sobressaltou-se deveras; achou que o caso excedia as raias de um capricho juvenil.

— Desta vez, disse ele, vais para a Europa; vais cursar uma Universidade, provavelmente Coimbra; quero-te para homem sério e não para arruador e gatuno. E como eu fizesse um gesto de espanto: — Gatuno, sim senhor; não é outra coisa um filho que me faz isto…

Sacou da algibeira os meus títulos de dívida, já resgatados por ele, e sacudiu-mos na cara. — Vês, peralta? é assim que um moço deve zelar o nome dos seus? Pensas que eu e meus avós ganhamos o dinheiro em casas de jogo ou a vadiar pelas ruas? Pelintra! Desta vez ou tomas juízo, ou ficas sem cousa nenhuma.

Estava furioso, mas de um furor temperado e curto. Eu ouvi-o calado, e nada opus à ordem da viagem, como de outras vezes fizera; ruminava a idéia de levar Marcela comigo. Fui ter com ela; expus-lhe a crise e fiz-lhe a proposta. Marcela ouviu-me com os olhos no ar, sem responder logo; como insistisse, disse-me que ficava, que não podia ir para a Europa. (Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, em Obra completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1979, vol. I, p. 536)

O tema subjacente ao texto é o do interesse. O narrador não diz que Marcela é interesseira, mas, ao equiparar o percurso figurativo da temporalidade (quinze meses) ao das finanças (onze contos de réis), mediante o traço sêmico da duratividade, como aponta Fiorin (2016, p. 101), acaba desvelando esse traço da personalidade da personagem, confirmado no fim do texto, quando ela se nega a acompanhar Brás Cubas à Europa.

As isotopias temáticas ou figurativas, quando contrapostas, também produzem subtexto, transparecendo outros temas subjacentes. Um exemplo desse mecanismo está na letra da música “Meu guri”, adaptação de Chico Buarque ao clássico do cancioneiro popular italiano “Gesù Bambino”, de Lucio Dalla (música) e Paola Pallottino (letra), em que as contraposições de enunciação e enunciado e de duas isotopias algo contraditórias criam um novo efeito de sentido:

Quando, seu moço, nasceu meu rebento Não era o momento dele rebentar Já foi nascendo com cara de fome E eu não tinha nem nome pra lhe dar Como fui levando, não sei lhe explicar Fui assim levando ele a me levar E na sua meninice ele um dia me disse Que chegava lá

Olha aí Olha aí

Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri

E ele chega

Chega suado e veloz do batente

E traz sempre um presente pra me encabular Tanta corrente de ouro, seu moço

Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro Chave, caderneta, terço e patuá

Um lenço e uma penca de documentos Pra finalmente eu me identificar, olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí

Olha aí, é o meu guri E ele chega

Chega no morro com o carregamento Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador Rezo até ele chegar cá no alto

Essa onda de assaltos tá um horror Eu consolo ele, ele me consola Boto ele no colo pra ele me ninar De repente acordo, olho pro lado E o danado já foi trabalhar, olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri

E ele chega

Chega estampado, manchete, retrato Com venda nos olhos, legenda e as iniciais Eu não entendo essa gente, seu moço Fazendo alvoroço demais

O guri no mato, acho que tá rindo Acho que tá lindo de papo pro ar

Desde o começo, eu não disse, seu moço Ele disse que chegava lá

Olha aí, olha aí

Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri

O enunciador declara no enunciado o oposto do que diz na enunciação. Nesta, a mãe humaniza o bandido — algo que normalmente não acontece no noticiário policial —, enquanto naquele a oposição entre as isotopias do trabalhador (chega suado e veloz do batente; de repente acordo, olho pro lado, e o danado já foi trabalhar) e do bandido (tanta corrente de ouro; uma bolsa já com tudo dentro/ chave, caderneta, terço e patuá/ um lenço e uma penca de documentos; com o carregamento/ pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador) fornece elementos para o enunciatário perceber que há uma contradição entre o enunciado e a enunciação. A narradora propõe também um jogo entre hipérboles e eufemismos para enfatizar o contraste entre o enunciado — “me trouxe uma bolsa já com tudo dentro/ chave, caderneta, terço e patuá/ um lenço e uma penca de documentos” — e a enunciação — “pra finalmente eu me identificar” —, que atenua o que o enunciado diz.

O resultado é que, mesmo sem a narradora explicitar isso, sabemos que o filho dela é um bandido e que está morto — ela não diz; quem diz é o subtexto, o não dito, que exprime aqui uma crítica social sobre o processo de marginalização da população favelada.

Fiorin destaca que ainda há textos que se desenvolvem não apenas pela articulação de duas ou mais isotopias, mas pela justaposição das mesmas, criando uma pluri-isotopia, terreno fértil para o subtexto:

(...) não há um trecho com uma isotopia, outro trecho com outra e a contraposição das duas, mas ocorre uma superposição de isotopias, ou seja, o discurso inteiro pode ser lido sobre mais de uma isotopia. Insistimos em que essa pluri-isotopia está inscrita no texto por meio de desencadeadores ou conectores de isotopia. (FIORIN, 2016: p. 115)

Como permitem ao enunciatário passar de um plano de leitura a outro, a metáfora e a metonímia “podem ser tomadas como conectores de isotopia”, segundo Fiorin (2016, p. 119). Como tal, também podem servir a composição do subtexto, tendo em vista que são um outro jeito de se dizer o literal, ou melhor, são um mecanismo que leva o enunciatário a subentender o literal — neste caso, o não dito. Vale relembrarmos aqui o exemplo de “O Olho”, de Nabokov, em que o “desencadeador” do subtexto é uma metáfora: “como um rosto familiar no meio de uma multidão difusa, lá estava o nome de Smurov!”. Como dissemos, o narrador não diz que Smurov sorriu ao descobrir seu nome na carta, mas a metáfora (o não dito dito de outra forma) deixa isso claro.

Podemos notar que todos esses elementos constroem — às vezes, concomitantemente — o subtexto. Constituem, como argumenta Fiorin no caso dos mecanismos retóricos da sintaxe discursiva, “uma maneira insubstituível de dizer” — o do dizer por meio do não dito, operando no campo da dubiedade, o que amplia as possibilidades de significação, como indica o semioticista: “instaurando no discurso o segredo e a mentira, desvelam uma nova verdade, produzem um novo saber, descobrem significados, encobrindo-os” (2016, p. 87).

Fiorin afirma que tais recursos são operados pelo enunciador para persuadir o enunciatário. Elencar os elementos que compõem esse conjunto de estratégias discursivas por meio do não dito, por si só, não explica, totalmente, a razão de existir dessas estratégias do dizer. Afinal, como se dá essa persuasão? É certo que o subtexto leva o enunciatário para além do que diz o dito. Mas para onde? Com que objetivo? Para tentar responder a essas e outras perguntas, vamos recorrer a alguns conceitos da semiótica tensiva, de Claude Zilberberg.

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