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"Grande sertão", as veredas do subtexto e o texto-vivência na adaptação do livro de Guimarães Rosa para a TV

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

“GRANDE SERTÃO”, AS VEREDAS DO SUBTEXTO E O TEXTO-VIVÊNCIA NA ADAPTAÇÃO DO LIVRO DE GUIMARÃES ROSA PARA A TV

CLÓVIS JUNQUEIRA SAINT-CLAIR

NITERÓI NOVEMBRO/2019

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CLÓVIS JUNQUEIRA SAINT-CLAIR

“GRANDE SERTÃO”, AS VEREDAS DO SUBTEXTO E O TEXTO-VIVÊNCIA NA ADAPTAÇÃO DO LIVRO DE GUIMARÃES ROSA PARA A TV

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal Fluminense para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem

Orientação: Prof.ª Dr.ª Renata Mancini

Linha de Pesquisa 2: Teorias do texto, do discurso e da interação

NITERÓI NOVEMBRO/2019

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Ficha catalográfica automática - SDC/BCG Gerada com informações fornecidas pelo autor S132" Saint-clair, Clóvis Junqueira

"Grande sertão", as veredas do subtexto e o texto-vivência na adaptação do livro de Guimarães Rosa para a TV / Clóvis Junqueira Saint-clair ; Renata Ciampone Mancini, orientador. Niterói, 2019.

112 f. : il.

Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019.

DOI: http://dx.doi.org/10.22409/POSLING.2019.m.95029281720 1. Semiótica. 2. Literatura. 3. TV. 4. Adaptação. 5. Produção intelectual. I. Ciampone Mancini, Renata,

orientador. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.

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-CLÓVIS JUNQUEIRA SAINT-CLAIR

“GRANDE SERTÃO”, AS VEREDAS DO SUBTEXTO E O TEXTO-VIVÊNCIA NA ADAPTAÇÃO DO LIVRO DE GUIMARÃES ROSA PARA A TV

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal Fluminense como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Renata Ciampone Mancini (UFF) – Orientadora

___________________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Silvia Maria de Sousa (UFF)

___________________________________________________________________________ Prof.º Dr.º Muniz Sodré de Araújo Cabral (UFRJ)

___________________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Lúcia Teixeira de Siqueira e Oliveira (UFF) – Suplente

___________________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Regina de Souza Gomes (UFRJ) – Suplente

NITERÓI NOVEMBRO/2019

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A meus pais, Learte e Heloísa Helena; meus avós, Sebastião, Lígia, Joaquim Clóvis e Maria Helena; meus irmãos Ricardo, José, Amanda e Carolina; meu amor, Tatiana; e meus amores, Pedro, André e Glória

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AGRADECIMENTOS

Mestre não é quem ensina, mas quem de repente aprende.

(Riobaldo)

… mas, eu, o que é que eu era? Eu ainda não era ainda. (Riobaldo)

A extensa lista de homenageados na dedicatória desta dissertação é prova de que nenhum trabalho, por mais solitário que seja, deve ser considerado resultado de uma ação individual. Estão aí não apenas os genes de nossos DNAs se misturando e gerando o milagre da vida, como o dialogismo de Mikhail Bakhtin para mostrar que falamos sempre através do outro. Esta dissertação é, portanto, um trabalho coletivo, em que a contribuição desse autor que a escreveu é minúscula diante da labuta que todas essas mãos, corações e mentes lembradas a seguir empenharam para me trazer aqui.

Em primeiro lugar, agradeço à minha família, que me colocou no mundo e que me ofereceu a primeira visão dele: a meus avós paternos (in memoriam), Sebastião e Lígia, com quem tive pouco contato, mas cujas raízes amazônicas resgatei recentemente e que hoje me inspiram no trabalho em defesa dos povos da floresta; a meus avós paternos, Joaquim Clóvis (in memoriam) e Maria Helena, que sempre me trataram como a um filho, pela presença, pelo apoio e todo o afeto; a meu pai, Learte (in memoriam), o professor Saint-Clair, que me apresentou Saussure e a semiótica, de quem herdei o amor à poesia e às palavras (esse título, se vier, é teu também, meu velho!); à minha mãe, Heloísa Helena, a Tia Helô de tantos dos meus irmãos, pelo incentivo e amor incondicional; a meu irmão, my-brother-in-sun, professor doutor Ricardo, pelo amor, parceria e inspiração; a meu irmão José, a quem não conheci, mas que amo e sei que protege a mim e aos meus de onde estiver; a minhas irmãs Carol e Amanda, pelos sorrisos, as risadas e o carinho fraternal; à minha companheira, Tatiana, com quem construo há 25 anos a obra mais importante da minha vida, por ser o ar que eu respiro, cada vez mais puro, e o sol que me ilumina e fortalece; a meus filhos Pedro, André e Glória, razões da minha alegria e existência, por todo amor que há nessa vida, pelo afeto que nos liberta desse padecer no paraíso. Sem vocês, esse trabalho seria impossível de ser realizado.

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A família de sangue não esgota, porém, a lista daqueles a quem devo tanto nesse processo e que fazem parte da minha segunda família, a dos amigos.

Não poderia abrir esse parágrafo sem mencionar o nome da professora Renata Mancini, minha orientadora, a primeira a tentar ordenar meus devaneios num discurso inteligível, pela enorme generosidade, dedicação e paciência em compartilhar seus conhecimentos com um semioticista neófito de última hora. Quero agradecer também às professoras Silvia Maria de Sousa e Lúcia Teixeira, que tanto contribuíram para a conclusão desse trabalho, mesmo antes do exame de qualificação, em especial à primeira, que, além das aulas de semiótica, acompanhou minha trajetória desde a entrevista para o programa de mestrado em Estudos da Linguagem; aos professores Muniz Sodré e Raquel Paiva, que também apostaram no projeto; ao professor Marcos Dantas, pelos inspiradores ensinamentos nas aulas de ​Economia Política da Informação e da Comunicação no Ibict da UFRJ; a Sérgio Sant'Anna, mestre desde os tempos da Escola de Comunicação e das primeiras oficinas literárias, pela inspiração e pelo amor à literatura; ​à professora Vanise Medeiros, pelo interesse e estímulo à minha produção; aos colegas do Grupo de Pesquisa em Semiótica e Discurso (SEDI/UFF); aos amigos do LabS, nosso querido Laboratório de Semiótica: o que seria de mim sem vocês, Lucas “Ezinha” Calil, Barbara Tannuri, Marcos Kalil Filho, Raiane Nogueira, Mariana Coutinho, Vinícius César Lisbôa Soares, Paulo Souza Jr., Ricardo Ferreira Filho e Cecília Maculan Adum?!

E não poderia concluir sem lembrar o apoio de amigos que me incentivaram a retomar os estudos acadêmicos e me emprestaram sua sabedoria e experiência na construção dessa jornada. São mestres, doutores, doutorandos da pesada, gente querida como Patrícia Saldanha, Josir Gomes, André Luiz Barros da Silva, Maurício Barros de Castro, Roni Filgueiras, Glaucia Neves, Denise Schittini e Antero Gomes. Obrigado pelas dicas, pelos conselhos e, principalmente, pela força!

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Sua voz quando ela canta me lembra um pássaro mas não um pássaro cantando: lembra um pássaro voando Ferreira Gullar, “Uma voz” (in “Dentro da noite veloz”)

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RESUMO

A minissérie “Grande sertão: veredas” (1985), de Walter Avancini, é um marco na teledramaturgia brasileira. Trata-se da adaptação para a TV do livro de Guimarães Rosa (1956), considerado, por muitos, intraduzível e mesmo inadaptável. Este trabalho tem por objetivo analisar a tradução intersemiótica do livro para a minissérie televisiva a partir da proposta de circunscrever semioticamente o termo subtexto — já consagrado no teatro e na TV, mas ainda não consolidado na teoria semiótica —, identificando seus procedimentos e apresentando-o como um conjunto de estratégias ​de textualização que constroem um dito pelo não dito. Para isso, de início articulamos os fundamentos da semiótica francesa e dos desdobramentos da abordagem tensiva, desenvolvida por Claude Zilberberg e Jacques Fontanille, para apresentar uma formulação semiótica para o subtexto, elencando alguns exemplos extraídos da literatura e identificando, nos elementos de análise do discurso, ferramentas e conceitos que se aplicam a esse conjunto de procedimentos e estratégias. Em seguida, selecionamos trechos do livro e da minissérie para traçar um comparativo e analisar de que forma a adaptação trabalhou essa estratégia do dizer não dizendo. Por meio desta análise e da investigação dos critérios de seleção para a construção dessas narrativas sob o aspecto daquilo que é dito pelo não-dito, identificamos especificidades de cada uma das linguagens que revelaram, no processo da adaptação, coerções próprias do âmbito mercadológico e da dinâmica comercial da TV.

Palavras-chave​: semiótica; literatura; TV; adaptação; tradução intersemiótica; subtexto; TV Globo.

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ABSTRACT

The miniseries “Grande sertão: veredas” (1985), by Walter Avancini, is a milestone in Brazilian television drama. It is the TV adaptation of Guimarães Rosa’s book (1956), considered by many to be untranslatable and even unadaptable. This research aims to analyze the intersemiotic translation of the book to the television miniseries starting from the proposal to semiotically circumscribe the term subtext — already established in theater and TV, but not yet consolidated in semiotic theory —, identifying its procedures and presenting it as a set of textualization strategies that build a saying by the unspoken. To this end, we first articulate the foundations of French semiotics and the unfolding of the tensive approach developed by Claude Zilberberg and Jacques Fontanille to present a semiotic formulation for the subtext, listing some examples from the literature and identifying the discourse analysis elements, tools, and concepts that apply to this set of procedures and strategies. We then select excerpts from the book and the miniseries to draw a comparison and analyze how adaptation worked this saying-not-saying strategy. Through analysis and investigation of the selection criteria for the narratives’ construction under the aspect of what is said by the unsaid, we identified language specificities ​that revealed, in the process of adaptation, coercions proper to TV’s market and commercial dynamics.

Keywords: semiotics; literature; TV; adaptation; intersemiotic translation; subtext; TV Globo.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO​... 12

1. SUBTEXTO, UMA PROPOSTA DE CIRCUNSCRIÇÃO NA SEMIÓTICA​... 23

1.1 Exemplos de dito pelo não dito …..………... 23

1.2 O subtexto na semiótica………... 27

1.2.1 O subtexto na sintaxe do nível narrativo ... 28

1.2.2 O subtexto na semântica do nível narrativo………....30

1.2.3 O subtexto na sintaxe do nível discursivo ... 31

1.2.4 O subtexto na semântica do nível discursivo ... 37

1.3 O subtexto e a abordagem tensiva ... 41

2. O SUBTEXTO NA ANÁLISE DO CORPUS ​ ... 50

2.1 O narrador sincretizado em interlocutor ... 50

2.2 Diadorim ... 55

2.3 Diadorim, Riobaldo e a tensão da homossexualidade ... 60

2.4 Diadorim e o pai ... 76

2.5 Hermógenes ... 79

2.6 O diabo na rua, no meio do redemunho ... 82

3.​ ​A ADAPTAÇÃO TELEVISIVA COMO PRODUTO DA INDÚSTRIA CULTURAL​………..100

CONSIDERAÇÕES FINAIS ​...107

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ÍNDICE DE GRÁFICOS E FIGURAS

Gráfico 1: A configuração tensiva………... 45 Gráfico 2: Relação entre aceleração de conteúdo, catálise e subtexto... 46 Figura 1: Teoria do Iceberg………... 15 Figuras 2.1 a 2.6: sequência de abertura do primeiro capítulo da minissérie……... 52 a 54 Figuras 2.7 a 2.12: sequência do encontro de Diadorim e Riobaldo na infância…….... 56 a 59 Figuras 2.13 a 2.25: sequência do reencontro de Diadorim e Riobaldo já adultos…... 63 a 69 Figuras 2.26 a 2.34: sequência de Riobaldo transtornado com pensamentos sobre

Diadorim……….. 72 a 76 Figuras 2.35 e 2.36: sequência de Diadorim revelando que Joca Ramiro é seu pai………... 78 Figuras 2.37 a 2.40: sequência de Riobaldo conhecendo Hermógenes………... 80 a 81 Figuras 2.41 a 2.49: sequência de Riobaldo descobrindo que Diadorim é mulher.…….84 a 88 Figuras 2.50 a 2.53: sequência de Riobaldo se aproximando de Diadorim morta…….. 89 a 90 Figuras 2.54 a 2.61: sequência de Riobaldo observando Diadorim nua………... 91 a 94 Figuras 2.62 a 2.65: sequência de Riobaldo desabafando diante de Diadorim………... 95 a 97 Figuras 2.66 a 2.68: sequência de Riobaldo se declarando e beijando Diadorim……... 98 a 99

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APRESENTAÇÃO

O diabo existe e não existe? (Riobaldo)

O escritor argentino Ricardo Piglia ​defende a tese de que na narrativa dos contos, a que ele se refere como “formas breves”, “o mais importante nunca se conta. A história é construída com o não dito, com o subentendido e a alusão” ​(PIGLIA, 2004: p. 91)​. Por intermédio da semiótica francesa de Algirdas Julien Greimas e dos desdobramentos mais atuais da teoria, com abordagem tensiva de Claude Zilberberg, procuramos desenvolver uma pesquisa acerca da estratégia discursiva do não dito, a partir do exame da adaptação do livro “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa, para a minissérie homônima, exibida pela Rede Globo em 1985, em 25 capítulos, roteirizados por Walter George Durst e José Antônio de Souza, e dirigidos por Walter Avancini, a quem também coube o roteiro final. O trabalho pretende identificar os recursos dessa estratégia, bem como seus objetivos e consequências, enquanto investiga de que forma foram trabalhados na tradução intersemiótica ¹ da obra para a TV.

A semente desta dissertação foi plantada muitos anos antes de seu autor decidir fazer mestrado. Jornalista de formação, escritor nas horas vagas, frequento oficinas literárias desde a primeira década dos anos 2000. A primeira delas foi com o escritor Sérgio Sant’Anna, que havia sido meu professor durante um ano letivo na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nos idos de 1987. As aulas do mestre na ECO sempre foram um estímulo ao pensamento e à criação. Naquela oficina ministrada no espaço Estação das Letras, em 2005, não foi diferente. A proposta era a de que cada um dos alunos trouxesse um conto de sua autoria e, a cada encontro, comentasse o texto de um dos colegas lido com antecedência. Entre uma avaliação e outra, discutíamos textos de autores consagrados,

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¹O linguista russo Roman Jakobson foi quem cunhou o termo “tradução semiótica”, ao definir os três tipos de tradução: ​intralingual​, ​interlingual e ​intersemiótica​. A primeira, também chamada de reformulação, “consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua”. A segunda, também chamada de tradução propriamente dita, “consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua”. A terceira, também chamada de transmutação, “consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais”. (JAKOBSON, 1995: p. 64-65)

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previamente escolhidos pelo escritor.

Lembro que Sérgio elogiou alguns aspectos do meu conto, que também foi bem-recebido pelos colegas, como costuma acontecer nesses grupos em que o afeto e a generosidade prevalecem, mas houve um ruído, que aflorou em meio à discussão mais geral sobre o texto, em que ele me indagou: “Mas o cara morre no final?”. Fiquei desconcertado. “Claro que morre!”, respondi. “Engraçado, achei que não. Aliás, preferia que não morresse…”, comentou o mestre. Aquilo me deixou perturbado, porque, para mim, o personagem “morria muito”: tinha pensado num final fechado, e não aberto como Sérgio vislumbrara. Na defensiva, deduzi que não descrevera tão bem a passagem da morte do personagem, quando, na verdade, havia recorrido a uma linguagem mais poética, que acabou imprimindo certa ambiguidade ao texto e permitiu a interpretação mais aberta. Essa foi a primeira lição que tirei daqueles encontros. A outra foi a semente.

Já não me recordo se líamos um trecho da “Metamorfose”, de Franz Kafka, ou do conto “Uma alma simples”, do livro “Três contos”, de Gustave Flaubert. Uma passagem em especial me chamou atenção: “Sérgio, é incrível, mas aqui parece que ele escreveu muito além do que está escrito. É como se dissesse muito mais coisas do que a frase diz em si”. “É por isso que ele [Kafka ou Flaubert] é considerado um mestre”, respondeu-me, com um sorriso, o escritor.

Foi um momento de misteriosa epifania, porque percebi na hora o quão sofisticada a narrativa poderia ser, mas não sabia explicar, concretamente, como o autor havia feito aquilo. E a verdade é que, à época, não investiguei. A cada oficina que fazia, porém, constatava as limitações dos meus textos ficcionais. Havia uma crítica comum a eles, quase sempre pontuada pelos colegas: eu costumava “entregar” demais ao leitor, escrevia “muito mastigadinho”. Notava esse defeito nos meus contos e também nos romances que lia de jornalistas da minha geração. Havia uma tendência de exacerbar descrições, escolhendo palavras e burilando frases para que soassem perfeitas, mas estávamos sendo apenas chatos.

Passei, então, a ficar mais atento a isso e, na medida do possível, tendo em vista minha formação dentro da pseudo objetividade jornalística, procurei escapar desses vícios. Mas tudo de maneira intuitiva, sem conhecimento teórico que me orientasse sobre as escolhas que fazia. Quando sobreveio o projeto de retornar à academia e fazer um mestrado, pensei: e

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se eu investigasse como esses mestres da literatura constroem esses textos? Como fazem para embutir numa frase outras que parecem invisíveis, mas que a gente “lê” na hora?

Essa indagação original foi se refinando aos poucos. Afinal, haveria um nome para essa construção narrativa? Em minhas elucubrações, sabia do que se tratava, mas não como designar — era um dizer não dizendo, o dito pelo não dito, uma espécie de escrita invisível. Comecei a pesquisar a respeito e esbarrei com o texto de Piglia. Paralelamente a isso, no projeto de ampliar meu campo de trabalho, comecei a fazer cursos livres de formação de roteiristas. Deparei-me, então, com o termo “subtexto”, com o qual, possivelmente, já devia ter esbarrado, mas que, naquelas circunstâncias, pareceu se encaixar na minha pesquisa como uma expressão viável para denominar meu objeto de estudo: uma camada subterrânea do texto, como uma entrelinha.

Ao investigar a origem do conceito, descobri, porém, que dizia respeito mais à linguagem teatral do que à literária ou à audiovisual. A noção foi concebida pelo pedagogo, ator e diretor de teatro russo Constantin Stanislavski, quando trabalhava, nos idos de 1898, sobre uma peça do russo Anton Tchekhov. Para dar sentido ao texto, aparentemente costurado com falas monótonas e frases desconexas (Lazzareti, 2013: p. 54), os atores precisavam rechear o interior de seus personagens, elaborando a motivação por trás dos diálogos, de modo a “dar vida” ao texto. O subtexto não estaria, portanto, explícito no texto, mas seria uma contribuição feita pelos atores para encontrar a motivação das falas, dando significação às mesmas nas entrelinhas:

O subtexto é um tecido de múltiplas e diversas linhas interiores da obra, e do papel, feito por ​ses mágicos, todo tipo de ficções da imaginação, circunstâncias dadas, movimentos internos, objetos de atenção, verdades pequenas e grandes, e a crença nelas, adaptações, ajustes e outros elementos similares. É o subtexto que nos faz dizer as palavras do papel. Todas essas linhas estão intencionalmente entrelaçadas entre si como os fios de um cabo, e nessa forma se estendem por toda a obra em direção ao superobjetivo. Somente quando a linha do subtexto penetra no sentimento, como se fosse uma corrente submarina, se cria a linha de ação contínua da obra e do papel. E se manifesta não apenas com o corpo, mas também com o som e com as palavras. (STANISLAVSKI, 1997: p. 83, grifo do autor)

É um trabalho do ator — e o conceito explica isso. Mas também está ligado ao texto, ou melhor, às brechas que ele proporciona por intermédio do não dito. Na definição de Jaqueline M. Souza e Marcos Hinke, do coletivo Tertúlia Narrativa, “Se o texto é a palavra visível no papel, subtexto é o implícito, o que se pode ler nas entrelinhas, o que comunica

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mesmo sem ser verbalizado. O subtexto é com frequência associado aos diálogos, mas também pode ser utilizado para se pensar a cena como um todo” (2007²).

A dupla de roteiristas acrescenta: “o subtexto adiciona camadas ao seu roteiro, revela muito sobre seus personagens e como eles veem o mundo e faz com que o público ativamente entenda significados que vão além da superfície”. Para alcançar esse efeito, por intermédio de omissões, metáforas, alegorias e alusões, entre outros recursos, é preciso que o roteirista tenha um profundo conhecimento sobre os personagens e seu universo.

Foi nessa página dedicada a compartilhar conhecimentos sobre a produção de roteiros de cinema e televisão, mais especificamente no artigo intitulado “Oito perguntas para melhorar sua escrita de cenas”, que fui apresentado a um princípio famoso, do escritor norte-americano Ernest Hemingway, que ficou conhecido como a Teoria do Iceberg e explicita essa estratégia do fazer literário que baseia esta pesquisa:

Se um escritor de prosa sabe o suficiente sobre o que ele está escrevendo, ele pode omitir coisas que ele conhece; e o leitor, se o escritor está escrevendo de forma verdadeira, terá um forte sentimento dessas coisas, como se o escritor as tivesse declarado. A dignidade do movimento de um iceberg é devido a apenas um oitavo do que está acima da água. Um escritor que omite as coisas porque não as conhece, só está criando buracos vazios em sua escrit​a. (HEMINGWAY, 1932, p. 192)

Figura 1: imagem capturada na internet para ilustrar a Teoria do Iceberg.

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² Esta citação da definição dada pelos roteiristas ao conceito do subtexto foi extraída do site: https://www.tertulianarrativa.com/single-post/2017/12/14/8-Perguntas-para-melhorar-sua-esc rita-de-cenas.

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“(...) e o leitor, se o escritor está escrevendo de forma verdadeira, terá um forte sentimento dessas coisas, como se o escritor as tivesse declarado (...)”. A máxima de Hemingway remete a uma das abordagens dos fatos de enunciação mencionados por Diana Luz Pessoa de Barros em seu livro “Teoria do discurso: fundamentos semióticos”, atribuída, neste caso, ao linguista francês Oswald Ducrot, em seus estudos sobre a enunciação, que levaram à elaboração de uma teoria da argumentação da linguagem. Ducrot afirma que há três leis que dão sentido ao discurso. Uma delas seria a da lítotes, quando “o locutor leva o ouvinte a interpretar o enunciado como dizendo mais do que sua significação literal” (BARROS, 2001: p. 97) — as outras duas seriam a da informatividade (“o falante deve dizer ao ouvinte o que supõe que o ouvinte desconheça”) e a da exaustividade (“o locutor deve dar as informações mais fortes que tiver sobre o tema em questão”).

Barros afirma que um dos principais métodos usados pelo enunciador para persuadir o enunciatário é “o recurso de implicitar ou de explicitar conteúdos” e que Ducrot (1969, 1977) identificou, no início de seus estudos, duas formas diferentes de se implicitar conteúdos: por meio de pressupostos e subentendidos (BARROS, 2001: p. 99). Em referência aos pressupostos, ela exemplifica:

Em “João continua gordo”, os adeptos da noção de pressuposição como condição de emprego dizem que “João era gordo antes” é condição de verdade (emprego lógico) ou condição para que o enunciado atinja o fim pretendido, para que a afirmação “João é gordo” se realize e a informação passe. Já Ducrot julga que dois atos de linguagem foram efetuados: o de afirmar a gordura atual de João e o de pressupor sua gordura anterior. (BARROS, 2001: p. 99-100)

Ducrot evoca a teoria dos atos de fala para tratar da noção da pressuposição, mas acreditamos que esta também possa ser aplicada a outras linguagens. Diana destaca o emprego retórico desse recurso por parte do enunciador para transmitir ao enunciatário, dissimuladamente, informações presumidamente conhecidas, que ele sabe, entretanto, que o outro desconhece:

Age assim a Mariazinha quando diz à amiga, enamorada de Pedro: “Ontem, encontrei-me com Pedro, mulher e filha, no cinema”. A informação nova, o conteúdo posto, é a de que ela se encontrou com Pedro e família, de que isso aconteceu ontem e no cinema. Um dos pressupostos, que deveria ser, assim, comum às duas é o fato de Pedro ter mulher e filha. Sabendo, de antemão, que a amiga ignorava ser o namorado casado e pai de família, Mariazinha, mesmo assim, forneceu-lhe a informação como algo já conhecido, já pressuposto. Deixou, portanto, de ser considerada “faladeira” ou de envergonhar a amiga que pôde fazer como se, realmente, soubesse do caso e não se importasse. Antes passar por “destruidora de lares” que por “idiota enganada”. (BARROS, 2001: p.101)

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Ducrot distinguia pressupostos de subentendidos com base no princípio de que a semântica era formada por dois componentes: um linguístico e outro retórico, “fazendo-se a passagem da significação linguística ao sentido retórico por meio da enunciação” (BARROS, 2001: p. 97):

No componente linguístico, o semanticista explica a frase, entidade abstrata, e assinala sua significação, independentemente de qualquer determinação contextual; no componente retórico, preocupa-se com o enunciado, entidade concreta, e com seu sentido efetivo numa dada situação. A enunciação encarrega-se de transformar a frase em enunciado. (BARROS, 2001: p.102)

O linguista francês revê essa posição ao reconhecer que haveria atos da fala, incluindo aí as pressuposições, provenientes também da enunciação. Assim, não poderíamos reduzir simplesmente o entendimento da pressuposição como o implícito da frase e o subentendido como o implícito da enunciação, mas “O ato de pressupor ocorre tanto no componente linguístico quanto no retórico, enquanto o subentendido só aparece ligado à enunciação e ao componente retórico” (BARROS, 2001: p.102). Segundo Barros, o subentendido é um efeito de sentido que faz com que o enunciatário interprete o discurso da maneira desejada pelo enunciador:

Ao responder ao autor, que nos pergunta o que achamos de seu livro, que a introdução é boa, subentendemos que o livro não nos agradou, pois deixamos de cumprir a lei da exaustividade de Ducrot, segundo a qual o locutor deve dar as informações mais fortes que tiver sobre o tema em questão, ou a máxima da quantidade de Grice [Herbert Paul Grice, filósofo britânico da linguagem]: “Faça com que sua contribuição seja tão informativa quanto requerido (para o propósito corrente da conversação” (1982, p.87). O conhecimento dessa “regra de cooperação discursiva” permite ao enunciador subentender, ou seja, dizer sem o dizer, que não achou bom o livro, pois sabe que o enunciatário, também ciente das máximas, assim irá interpretá-lo. (BARROS, 2001: p. 103).

Todas essas proposições — “o mais importante nunca se conta. A história é construída com o não dito, com o subentendido e a alusão” ( ​PIGLIA, 2004: p. 91)​); “O subtexto é um tecido de múltiplas e diversas linhas interiores da obra” (STANISLAVSKI, 1997: p. 83 ); “Se um escritor de prosa sabe o suficiente sobre o que ele está escrevendo, ele pode omitir coisas que ele conhece; e o leitor, se o escritor está escrevendo de forma verdadeira, terá um forte sentimento dessas coisas, como se o escritor as tivesse declarado” (HEMINGWAY, 1932, p. 192) ; ou “o locutor leva o ouvinte a interpretar o enunciado como dizendo mais do que sua significação literal” (BARROS, 2001: p. 97) — conversam entre si

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e abordam a estratégia do não dizer, mas não formalizam o conceito, não arrolam seus recursos nem aprofundam seus objetivos.

Greimas assevera no artigo “Enunciação, uma postura epistemológica”, publicado originalmente na revista “Significação”, em 1974, e depois traduzido por Maria Lúcia Vissotto, com colaboração e notas de Jean Cristtus Portela” (SCHWARTZMANN, 2018: p. 1) que para a semiótica tudo é texto: “Fora do texto não há salvação. Todo o texto, somente o texto, nada fora do texto” (GREIMAS, 1974: p. 31). Matheus Nogueira Schwartzmann propõe dois caminhos de leitura para o “adágio” greimasiano. O primeiro indicaria “que a semiótica se preocupa somente com o texto. Tudo o que não é texto, ou não é pertinente ao texto, não é de interesse da semiótica. Tudo o que é extratextual, e por consequência, de algum modo, extralinguístico, não é de interesse da semiótica”. O segundo apontaria para o fato de que “não há nada que, para a semiótica, não seja texto. Tudo é texto” (SCHWARTZMANN, 2018: p. 1-2).

Podemos dizer, então, que, nessa máxima, o semioticista lituano sintetizava, concomitantemente, a circunscrição e o alcance da semiótica como metodologia de análise do discurso: de um lado, deveria se ater à materialidade dos textos, para garantir a cientificidade dos estudos; de outro, poderia ser aplicada a qualquer ​corpus​, o que possibilitaria avanços inimagináveis à teoria e “que permitiu o estabelecimento, de (a) uma semiótica de vanguarda como a de Floch, que definiu como seu texto a comunicação, o trajeto (1990, p. 21), entre outras práticas e dinâmicas sociais, (b) uma sociossemiótica como a de Landowski, (1989, p. 199) que, no anos 1980, já defendia a elaboração de uma “semiótica das situações” e a semiotização do contexto (apud Portela, 2008, p. 98), e, (c) por fim, de uma semiótica das práticas, das formas de vida, dos modos de existência, como a proposta por Fontanille (2008)” (SCHWARTZMANN, 2018: p. 2).

Neste sentido, pedimos licença para utilizar o termo “subtexto” nesta pesquisa, ainda que, hoje, ele não encontre aderência na semiótica. Acreditamos que, na falta de um conceito específico para designá-lo, e tendo em vista que pretendemos dialogar com outras áreas onde a expressão já é consagrada e usual, ele possa se aplicar bem ao que entendemos ser, no fundo, uma estratégia de enunciação, aplicada no discurso a partir de diversos recursos diferentes. Que fique claro, contudo, que, ao adotá-lo, não pretendemos, de modo algum, subverter a teoria, mas apenas tentar circunscrevê-lo na semiótica, onde parece pouco estabilizado, tendo em vista que, embora o concepção dos implícitos de Ducrot tenha sido

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incorporada aos estudos semióticos (a terminologia está no “Dicionário de Semiótica”, de Greimas e Joseph Courtés), a questão do não dito, enquanto recurso ou estratégia, não parece contemplada em plenitude na designação formulada pelo linguista francês.

Em linhas gerais, entendemos o subtexto como o conjunto de estratégias e procedimentos do dizer não dizendo, do dito pelo não dito, em que o sentido se completa por meio de catálises, entendidas aqui como “a explicitação dos elementos elípticos ausentes na estrutura de superfície” (GREIMAS, 2008: p.54). Uma escrita invisível que surge à medida em que a enunciação se instaura e que se inscreve na relação enunciador/enunciatário, a partir das demandas por catálises que o enunciador “semeia” no texto para que o enunciatário faça a “colheita” e complete o sentido do discurso. Este conjunto de estratégias e procedimentos comporia o subtexto do texto.

Vale lembrar que essa construção de sentido encontra referência indireta no “Dicionário da semiótica” de Greimas e Courtés: “o enunciatário não é apenas o destinatário da comunicação, mas também sujeito produtor do discurso, por ser a ‘leitura’ um ato de linguagem (um ato de significar) da mesma maneira que a produção do discurso propriamente dito” (GREIMAS; COURTÉS, 2008: p. 171).

Como Greimas e Courtés apontaram no verbete Enunciador/Enunciatário, “O termo ‘sujeito da enunciação’, empregado frequentemente como sinônimo de enunciador, cobre de fato as duas posições actanciais de enunciador e enunciatário” (GREIMAS; COURTÉS, 2008: p. 171). Desta forma, essa escrita invisível a que nos referimos é, em certa medida, a escrita do enunciatário, concebida mentalmente a partir do fazer interpretativo do sujeito da enunciação, e que só é possível graças à escrita do enunciador, materializada no texto, a partir das estratégias escolhidas no fazer persuasivo deste enunciador.

Há no ato enunciativo, como argumenta Renata Mancini, um projeto enunciativo, “esse conjunto de escolhas e estratégias das quais o enunciador lança mão, no processo de textualização, visando a otimizar seu fazer persuasivo em relação ao fazer interpretativo de um enunciatário que ele prevê no próprio modo de enunciar” (MANCINI, 2018: p. 25). Poderíamos dizer, então, que o subtexto é um desses conjuntos de estratégias que, como veremos mais à frente, visa engajar o enunciatário no projeto persuasivo do enunciador.

Este projeto enunciativo se serve de uma gramática para promover esse engajamento, que pode ser maior ou menor, dependendo do estilo dominante do discurso — mais ou menos concessivo —, e que só é medido pelos elementos da semiótica tensiva, de Claude

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Zilberberg, como lembra Raiane Nogueira em sua dissertação de mestrado sobre a cobertura de mortes trágicas no jornal “O Globo”:

A abordagem tensiva introduz na semiótica a ideia de gradação, de continuidade, propondo “uma sintaxe que visa a dar conta dos movimentos e inflexões que servem de base para a construção discursiva” (MANCINI; TROTTA; SOUZA, 2007, p. 296). Assim, torna-se possível a identificação de uma dinâmica, de um ritmo do discurso, regido por uma pulsação da interlocução criada pela tensão contínua entre as lógicas implicativa e concessiva. A implicação é da ordem do previsível, do programado, da rotina, e se baseia na fórmula “se... então”. A concessão é da ordem do inesperado, da surpresa, do acontecimento, baseando-se na fórmula “embora...” (NOGUEIRA, 2015: p. 25).

Zilberberg expõe, didaticamente, a diferença entre as lógicas implicativa e concessiva ao comparar duas frases: “ele se afogou ​porque​não sabe nadar” é um enunciado implicativo e mais átono do que “ele se afogou ​embora​soubesse nadar”, que é um enunciado concessivo e mais tônico, porque tem um “valor de acontecimento”, da ordem do inesperado (ZILBERBERG, 2011: p. 99, grifos do autor).

Uma das premissas de que parte essa pesquisa é a de que o subtexto seria uma estratégia do enunciador para enunciar de maneira mais concessiva. Deste modo, no panorama do conjunto de estratégias do não dito, quanto mais presente o subtexto, mais concessivo seria o estilo do texto; e quanto menos presente, menos concessivo o estilo.

No nosso caso, pretendemos investigar, na adaptação do livro “Grande sertão: veredas” para a TV, como o enunciador trabalhou o subtexto e a concessividade do texto original, levando-se em consideração, evidentemente, as coerções próprias da linguagem e do ambiente televisivo, que tende a adotar uma forma de enunciar mais implicativo.

Como pontuou Osvando J. de Morais em seu livro sobre a produção do roteiro da minissérie, “Como a adaptação de um romance para a televisão está condicionada às diferenças entre os meios e suas técnicas específicas, pode-se propor a hipótese da tradução intersemiótica² do sentido estético da obra, na qual se mantêm alguns elementos definidores do seu campo semântico geral e, ao mesmo tempo, excluem-se outros, por imposição técnica do meio e também por opção estética e ideológica” (MORAIS, 2000: p. 36).

Uma dessas coerções diz respeito a adoção de uma narrativa linear, com vistas a assegurar a audiência da minissérie, muito diferente da narrativa descontínua que marca o livro, como lembra Morais:

Esquematicamente, pode-se fazer a hipótese de que um modo esteticamente orientado de tradução poderia consistir, por exemplo, na produção de uma obra visual

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interseção, com imagens entrecortadas e fundidas ou com fragmentos metonímicos, usaria da descontinuidade para mimetizar a forma ambígua da enunciação de Riobaldo, figurando na mescla visual os efeitos da duplicidade e das associações de sua memória.

Certamente, porém, a hipótese de uma obra assim formalizada visualmente jamais viria a concretizar-se, dada a imagem de “público” segundo os padrões televisivos de definição de audiência. (MORAIS, 2000: p. 33, parênteses do autor)

Morais diz que, neste sentido, a minissérie opera uma redução — “muitas vezes, um reducionismo” —, como costuma acontecer nessas traduções intersemióticas:

Os diálogos foram mantidos, mas numa outra ordem, que os lineariza. Tal perda foi, no caso, suplementada pelas caracterizações regionais de cenários e personagens, que deram à adaptação um sentido realista unívoco, perdendo-se os vários outros contidos no livro. (MORAIS, 2000: p. 34)

Não se pretende, contudo, fazer um tratado sobre os elementos constitutivos da linguagem da TV, mas mostrar que há coerções próprias dessa linguagem que a levam a ter um estilo mais implicativo do que a literatura, ao mesmo tempo em que se apura como o adaptador, dentro desse estilo mais implicativo, procurou driblar essas limitações.

Em sua dissertação de mestrado sobre a adaptação do filme “Django Livre” (2012), de Quentin Tarantino, para as histórias em quadrinhos, Mariana de Souza Coutinho lembra algumas especificidades da linguagem audiovisual em relação à linguagem literária, a partir do conceito de texto elaborado pelo linguista dinamarquês Louis Hjelmslev:

Hjelmslev (cf. 1978, p. 201) define o texto como uma articulação entre um plano de conteúdo — os conceitos mobilizados — e um plano de expressão — que manifesta os conteúdos. Algumas linguagens, no entanto, abarcam mais de um plano de expressão para manifestar um mesmo plano de conteúdo. Chamamos essas linguagens de sincréticas (cf. FLOCH, 1985). Um livro não seria um texto sincrético, porque compreende apenas um plano de expressão — o verbal — mas um filme o é, porque inclui pelo menos dois planos — o visual e o sonoro. (...) Por terem planos diferentes de expressão, as diversas linguagens têm características próprias que as constituem enquanto sistemas vivos, que vão se modificando com o tempo e incorporando novos usos e novas possibilidades. (COUTINHO, 2015: p. 14)

Como pretendemos levantar algumas questões relacionadas à passagem de uma linguagem à outra, teremos que levar em conta na análise esse sincretismo do audiovisual na articulação entre os planos de conteúdo e expressão.

No primeiro capítulo, apresentaremos o encaminhamento teórico da pesquisa, fundamentado nos preceitos da semiótica francesa de Greimas e da gramática tensiva de Zilberberg. Iniciaremos dando alguns exemplos do dito pelo não dito extraídos da literatura

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ficcional, com o objetivo de oferecer alguma materialidade que traduza com mais clareza o que entendemos como subtexto. Em seguida, ensaiaremos uma circunscrição do termo à semiótica para, então, articulá-lo com os estudos de Greimas e Zilberberg.

No segundo capítulo, mapearemos passagens e/ou aspectos da obra de partida — o livro de Guimarães Rosa — que expressem algum grau de subtexto e analisaremos como foram transpostos para a obra de chegada — a minissérie de Walter Avancini —, aplicando conceitos da semiótica. A intenção é verificar, dadas as coerções do meio, em que o enunciatário da TV demanda um estilo menos concessivo, como o enunciador elaborou o chamado arco tensivo da minissérie — como explicaremos à frente —, para avaliar, dentro de suas estratégias, se adotou um estilo mais ou menos concessivo ao transpor a obra para a TV ​. Abordaremos ainda a adaptação televisiva de “Grande sertão: veredas” enquanto produto da indústria cultural, discutindo suas condições de produção e possíveis implicações das mesmas sobre a obra. De início, demonstraremos que a prevalência do audiovisual como modelo de representação contemporâneo não foi um fenômeno natural, mas, sim, resultado de uma determinação social, política, econômica e cultural. Para isso, recorreremos a conceitos de Karl Marx. Destacaremos, então, o duplo papel das indústrias culturais, como fabricante de produtos e valores. Por fim, falaremos da necessidade de se considerar essas questões contextuais na hora de se examinar a tradução intersemiótica do livro de Guimarães Rosa para a minissérie de Walter Avancini.

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1. SUBTEXTO, UMA PROPOSTA DE CIRCUNSCRIÇÃO NA SEMIÓTICA

Para que referir tudo no narrar, por menos e menor? Aquele encontro nosso se deu sem o razoável comum, sobrefalseado, como do que só em jornal e livro é que se lê. Mesmo o que estou contando, depois é que eu pude reunir relembrando e verdadeiramente entendido — porque, enquanto coisa assim se ata, a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo.

Do que o que: o real roda e põe diante.

` (Riobaldo)

Como dito anteriormente, pretende-se investigar e circunscrever semioticamente a noção do que é dito a partir do não dito no texto e analisar essa estratégia discursiva na adaptação do livro “Grande sertão: veredas”, para a minissérie homônima exibida pela Rede Globo, por meio da teoria desenvolvida pela semiótica francesa de Greimas e da abordagem tensiva de Zilberberg.

Antes de nos empenharmos diretamente nessas empreitadas, cabe elencar alguns exemplos de dito pelo não dito colhidos na literatura de ficção, para facilitar o entendimento sobre o que propomos como subtexto.

1.1 Exemplos de dito pelo não dito

Um exemplo do uso do subtexto como estratégia enunciativa está no conto “Doutor”, de Luiz Schwarcz, em que o autor o emprega para semear ao longo do texto uma série de lacunas a serem preenchidas pelo leitor para construir, no final, uma resolução por catálise retrospectiva. Em linhas gerais, o conto é sobre as memórias de um garoto cuja mãe sonhava que ele se tornasse um médico, mas que acaba ganhando a vida como encanador. Logo na abertura, o narrador expõe a diferença de expectativa que os pais criam sobre o futuro profissional do protagonista:

Minha mãe queria que eu fosse médico. Coitada. Meu pai ria. Meu filho médico, ele dizia, e gargalhava. Se conseguir ser pedreiro ou encanador, está bom. Ela fechava a cara e continuava dizendo que eu iria ser médico, que eu estudaria para isso, faculdade e essas coisas, que eu era inteligente, olha a cara do menino, Oswaldo, ele tem cara de doutor.

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Meu pai era mestre de obras, pedreiro e encanador. Passava, no entanto, a maior parte do tempo desempregado, no bar, tomando cerveja, jogando dominó. Minha mãe trabalhava de diarista (...)

O narrador lembra o primeiro presente de Natal:

O primeiro brinquedo que eu ganhei de Natal foi um jogo de consultório médico. O primeiro e o último. Depois disso a nossa situação ficou mais difícil. Meu pai nem procurava mais emprego. Entrava em casa, me via brincando com o jogo que minha mãe escolhera, e dizia: “E aí doutor, dá para escutar o meu coração?”

E expõe um pouco mais a relação que mantém com o pai:

Nas primeiras vezes que meu pai pediu para que o auscultasse, até achei que ele falava sério. De roupa branca, entrava em seu quarto, ele esparramado na cama, e apoiava o estetoscópio de brinquedo em suas costas ou peito para ouvir o seu coração. Mas aí ele ria, uma risada estridente, ou adormecia, roncando alto, e eu desisti.

É neste trecho que o dito pelo não dito se materializa. Mais especificamente na frase “Mas aí ele ria, uma risada estridente, ou adormecia, roncando alto”. Após o narrador informar que o pai “Passava, no entanto, a maior parte do tempo desempregado, no bar, tomando cerveja” e “Depois disso [do Natal em que ganhou o presente] a nossa situação ficou mais difícil. Meu pai nem procurava mais emprego”, pode-se inferir que, nas situações em que o pai encontrava-se “esparramado na cama” e alternava situações em que ria “uma risada estridente” ou simplesmente “adormecia, roncando alto”, ele estivesse bêbado. Notem, contudo, que o narrador não faz uso de nenhuma palavra que exponha, expressamente, o estado de torpor do pai. Apenas sugere. Eis aí o subtexto. O dito pelo não dito.

Esta impressão fica ainda mais forte quando, dois parágrafos adiante, o narrador relata que o pai já falecera:

As coisas não aconteceram como a minha mãe queria. Meu pai, de tanto beber, durou pouco.

O conto, como prega uma certa tradição nas narrativas curtas, se encerra com um parágrafo de grande impacto, em que o subtexto novamente assoma para garantir uma intensidade dramática no fim do relato:

Meus colegas me apelidaram de ​Doutor, acho que algum deles ouviu minha mãe se despedindo de mim uma manhã. No começo eu não gostei, agora não dou importância. Gosto do que faço, do silêncio em minha volta quando dão a descarga e eu começo a auscultar. No entanto, depois que as águas passam tenho sempre a impressão de ouvir um coração pulsando. E uma risada incômoda saindo dos canos.

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O efeito dramático se constrói a partir da conexão entre as isotopias³ do médico, do bombeiro e da excelência (“Doutor”), que deixam claro que o narrador cumpriu o destino idealizado pela mãe — só que de maneira diferente —, e do subtexto evidenciando a presença da figura paterna ainda na vida do narrador, como um fantasma da infância: “tenho sempre a impressão de ouvir um coração pulsando. E uma risada incômoda saindo dos canos”. O narrador não diz, mas presumimos que o coração que pulsa e a risada incômoda que sai dos canos têm o mesmo dono: o pai dele. A escrita é invisível, mas fácil de se identificar.

Nem sempre, contudo, a resolução precisa ser concreta para que o subtexto se manifeste. Às vezes, ela pode ser mais aberta e possibilitar uma complementação ainda mais livre do enunciatário, reforçando a materialidade abstrata da escrita invisível do fazer interpretativo. No romance “O olho”, de Vladimir Nabokov, o personagem principal, que só descobrimos no final ser o próprio narrador do livro, conta sua história a partir de seu suposto suicídio. Smurov é um jovem tutor russo, que vive em Berlim, na Alemanha, em torno da comunidade russa emigrada nos anos 1920, e sobre quem paira todo tipo de suspeita sobre o modo como ganha a vida: de nobre a ladrão, passando por espião. Ele próprio desconfia, no entanto, que seja alvo da bisbilhotice de um conhecido, Roman Bogdanovich, que escreve um diário e o envia semanalmente a um amigo russo, para revisão. Nessa passagem que nos interessa, quando já se imagina que o protagonista é o narrador em si, após arrancar das mãos de Bogdanovich um envelope com uma carta que acredita que seja sobre ele, Smurov se desvencilha do conhecido e procura um lugar discreto para matar a curiosidade sobre o conteúdo da missiva:

“Estou com pressa”, eu disse, ofegante (a noite agitada me tirava o fôlego). “Até logo, até logo!” Minha sombra, ao mergulhar na aura do poste de luz, esticou e passou à minha frente, mas depois se perdeu na escuridão. Assim que deixei aquela rua, o vento cessou; tudo ficou surpreendentemente calmo e em meio à quietude um bonde gemeu numa esquina.

Subi nele sem nem olhar o número, pois o que me atraiu foi a festiva iluminação de seu interior, uma vez que eu precisava de luz imediatamente. Encontrei um lugar confortável num canto e com pressa furiosa rasguei o envelope. Nesse momento, alguém se aproximou de mim e, sobressaltado, coloquei meu chapéu em cima da carta. Mas era apenas o cobrador. Fingindo um bocejo, peguei calmamente meu bilhete, mas mantive a carta escondida o tempo todo, para me livrar de um possível testemunho em juízo — não há nada mais danoso que essas inconspícuas

_______________________________

³ Isotopia é a recorrência de traços semânticos num texto, que permitem associá-lo a um determinado plano de leitura (FIORIN, 2016: p. 112-113)

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testemunhas, cobradores, motoristas de táxi, zeladores. Ele se afastou e desdobrei a carta. Tinha dez páginas, numa caligrafia redonda e sem uma única correção. O começo não era muito interessante e de repente, como um rosto familiar no meio de uma multidão difusa, lá estava o nome de Smurov. Que sorte incrível!

Evidentemente que não se pode comparar o nível de engajamento de um leitor que levou 73 páginas para chegar a essa parte da história daquele que experimentamos agora, ao ler o trecho supracitado isoladamente. Tampouco devemos ignorar uma e outra experiência. No primeiro caso, manipulado pela habilidade do narrador de ir e vir, de acelerar e desacelerar a narrativa para criar mais tensão no leitor, fomos levados ao clímax da cena ao ler o seguinte período: “O começo não era muito interessante e de repente, como um rosto familiar no meio de uma multidão difusa, lá estava o nome de Smurov. Que sorte incrível!”. Foi como se tivéssemos experimentado a emoção do personagem, ou melhor, presenciado o instante de sua descoberta. Como um observador onisciente, pudemos vê-lo sorrir com a discrição característica do protagonista e pensamos: “O danado do Nabokov não escreveu que Smurov sorriu, mas é evidente que ele sorriu, e é evidente que ele disse isso sem dizer”. Pois bem, isso é o subtexto, o dito pelo não dito, a escrita invisível.

Nabokov poderia ter escrito “O começo não era muito interessante e de repente, como um rosto familiar no meio de uma multidão difusa, lá estava o nome de Smurov. Não contive o sorriso.” — ou “O começo não era muito interessante e, de repente, lá estava o nome de Smurov. Sorri de satisfação!” —, e deixar claro que o protagonista sorriu na hora em que viu seu nome estampado na carta, mas optou por não dizer, ou melhor, por dizer de outro jeito, insinuando. Ao utilizar a metáfora “como um rosto familiar no meio de uma multidão difusa” e empregar o ponto de exclamação na frase “Que sorte incrível!”, fez o que Ricardo Piglia identifica em “Formas breves”: escreveu por alusão. Ao mesmo tempo, deu pistas para que, no dizer de Roland Barthes, o leitor produzisse o sentido do que leu — “a leitura é verdadeiramente uma produção” (1988: 40): o autor escreve, mas é o leitor quem produz o sentido daquilo que lê — ou, nas palavras de Umberto Eco (2013), completasse o sentido do texto na leitura — o significado só se concretiza na interpretação do leitor.

No segundo caso, para o leitor desta dissertação, que não passou pela experiência de atravessar 73 páginas do livro para conhecer o trecho selecionado, o nível de engajamento na leitura é bem menor e, provavelmente, não fomos levados ao ápice da comoção. Provavelmente, neste caso específico, jamais o seremos, porque, agora, já conhecemos a

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história e a estratégia adotada pelo autor para criar esse momento (aqui, pedimos perdão pelo

spoiler — ​termo inglês, do verbo “​to spoil​”, “estragar”, também empregado quando algum

segredo sobre uma trama é difundido por alguém antes da hora —, ​mas recomendamos fortemente a leitura do livro de Nabokov). Por outro lado, basta exercitar um pouco a imaginação para compreendermos a dimensão que se abre com a ideia do subtexto: nós lemos ali que Smurov sorriu, mas, na verdade, cada um lê nas entrelinhas o que bem entende por identificar “um rosto familiar no meio de uma multidão difusa”. Significa dizer, por exemplo, que uma pessoa retraída, avessa a contatos sociais, poderia ter “lido” que Smurov fez uma cara de contrariedade ao localizar seu nome na carta. Não importa. O que importa é identificar que ali existe uma construção de significado sofisticada e que demanda a participação ativa do enunciatário para completar o dito induzido pelo não dito.

1.2 O subtexto na semiótica

Com esses exemplos ilustrativos de manifestações de subtexto, podemos, então, partir para a tentativa de esboçar uma circunscrição semiótica para o termo, já sob a luz da teoria. Tomamos por base, aqui, o Percurso Gerativo do Sentido (PGS), desenvolvido por Greimas e explicado de forma simples e didática por José Luiz Fiorin no livro “Elementos da análise do discurso”. Adotamos aqui o livro de Fiorin por se tratar de uma obra de referência na semiótica brasileira e pelo fato de o autor trazer exemplos que procuram destrinchar a estrutura do PGS e que revelam — ora intencionalmente, ora involuntariamente — procedimentos do não dito, embora não sejam apresentados como partes de um todo, dentro daquilo que identificamos como um conjunto de estratégias.

O Percurso Gerativo do Sentido “é uma sucessão de patamares, cada um dos quais suscetível de receber uma descrição adequada, que mostra como se produz e se interpreta o sentido, num processo que vai do mais simples ao mais complexo” (FIORIN, 2016: p. 20). O PSG é dividido por níveis — fundamental, narrativo e discursivo — que partem do mais abstrato e profundo, onde a estrutura é mais fixa e permite menos variações, até chegar ao mais concreto e superficial, onde a estrutura é menos fixa e permite mais variações num texto. Cada um deles é constituído por uma sintaxe e uma semântica.

Nesse modelo de produção de sentido, todo texto é concebido, portanto, a partir de um nível mais abstrato (fundamental), até alcançar o nível mais concreto (discursivo), passando pelo intermediário (narrativo), enquanto na análise dos textos o semioticista

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percorre o caminho inverso, expondo o nível fundamental por trás do discursivo. O nível fundamental é o que estabelece oposições semânticas fundamentais no texto, como Vida x Morte, por exemplo. Apoiado nele, cada um dos outros, à medida em que se avança no PGS, reveste de variáveis a estrutura do antecessor, que é sempre mais fixa que a de seu sucessor. Lúcia Teixeira explana esse processo:

No fundamental, uma questão abrangente e abstrata organiza o mínimo de sentido a partir do qual o texto se articula. No nível narrativo, entram em cena sujeitos em busca de valores investidos em objetos, traçando percursos que expandem e complexificam as oposições do nível fundamental. No patamar discursivo, um sujeito da enunciação converte as estruturas narrativas em discurso, por meio da projeção das categorias sintáticas de pessoa, tempo e espaço e da disseminação de temas e figuras que constituem a cobertura semântica do discurso. (TEIXEIRA, 2008: p. 176)

Como tudo está no texto e nada o escapa, como lembra Greimas, é de se supor que o subtexto possa se materializar em todos esses níveis, seja em elementos sintáticos ou semânticos.

1.2.1 O subtexto na sintaxe do nível narrativo

A sintaxe narrativa é composta por dois tipos básicos de enunciados, os de estado — que indicam se o sujeito encontra-se em estado de junção ou disjunção com determinado objeto — e os de fazer — que constituem as transformações no sujeito no percurso de um estado a outro —, como explica Fiorin:

a) enunciados de estado: são os que estabelecem uma relação de junção (disjunção ou conjunção) entre um sujeito e um objeto (no enunciado “Aurélia é rica”, há uma relação de conjunção, indicada pelo verbo ​ser, entre um sujeito “Aurélia” e um objeto “riqueza”; em “Seixas não é rico”, há uma relação de disjunção, revelada pela negação e pelo verbo ​ser, entre um sujeito “Seixas” e um objeto “riqueza”);

b) enunciados de fazer: são os que mostram as transformações, os que correspondem à passagem de um enunciado de estado a outro (o enunciado “Seixas ficou rico”, há uma transformação de um estado inicial “não rico” num estado final “rico”). (FIORIN, 2016: p. 28)

Desta maneira, criam-se duas narrativas mínimas: a de privação, em que se parte de uma conjunção para uma disjunção (“José empobreceu”); e a de liquidação da privação, em que se parte de uma disjunção para uma conjunção (“José enriqueceu”). As narrativas mínimas compõem uma narrativa complexa, que compreende quatro fases: a manipulação; em que o destinador age sobre o sujeito para levá-lo a querer e/ou dever fazer alguma coisa; a competência, em que o sujeito que vai fazer a transformação é dotado de um saber e/ou de

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um poder fazer; a performance, fase em que se dá a transformação (mudança de um estado para outro) central da narrativa, da disjunção para a conjunção — ou o contrário; e a sanção, em que ocorrem a constatação de que a performance se realizou ou não e o reconhecimento ou punição ao sujeito que operou a transformação.

Numa narrativa complexa, estas fases nem sempre se encadeiam numa sucessão temporal, mas em concordância com uma lógica, e podem, uma ou outra, ser omitidas. Quaisquer dessas etapas ou de seus programas narrativos podem ser apenas pressupostos. Essa pressuposição, grosso modo, pode ser entendida como um dito pelo não dito e constituir um subtexto. O poema “Tragédia brasileira”, de Manuel Bandeira, usado no livro de Fiorin para ilustrar um texto em que dois programas narrativos se entrelaçam, é uma prova disso:

Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade.

Conheceu Maria Elvira na Lapa — prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.

Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo quanto ela queria.

Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado. Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa.

Viveram três anos assim.

Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.

Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua

Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos…

Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul. (BANDEIRA, 1973: p. 146-147)

Bandeira poderia ter escrito, explicitamente, que Maria Elvira traíra Misael de modo contumaz ou mesmo detalhado cada um dos adultérios, mas optou por deixar implícito que ela o fizera, ao listar todos os bairros onde o casal vivera. Embora pudesse descrever os casos amorosos ou afirmar que a personagem era adúltera, preferiu omitir as performances de Maria Elvira, mas deixou subentendido que ela traiu Misael um número incontável de vezes, já que o período termina em reticências, sugerindo que o casal ainda teria morado em outras localidades, em decorrência das traições de Maria Elvira.

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1.2.2 O subtexto na semântica do nível narrativo

Conforme Fiorin, “a semântica do nível narrativo ocupa-se dos valores inscritos nos objetos” (FIORIN, 2016: p. 36), havendo duas variações: os modais, relacionados à fase da competência na narrativa, e os de valor, associados à performance do sujeito:

Os primeiros [objetos modais] são o querer, o dever, o saber e o poder fazer, são aqueles elementos cuja aquisição é necessária para realizar a performance principal. Os segundos [objetos de valor] são os objetos com que se entra em conjunção ou disjunção na performance principal. (...) O valor do nível narrativo é o significado que tem um objeto concreto para o sujeito que entra em conjunção com ele. (...) Objeto-valor e objeto modal são posições na sequência narrativa. O objeto modal é aquele necessário para obter outro objeto. O objeto-valor é aquele cuja obtenção é o fim último do sujeito. (FIORIN, 2016: p. 37).

A forma como esses valores se apresentam e se relacionam nas sequências narrativas dos personagens pode emprestar à história um significado oculto, que não deixaria de ser, também, subtexto. Neste caso, porém, encontra-se num patamar ainda mais abstrato e exige do enunciatário não apenas um olhar mais profundo para enxergá-lo, mas também uma certa comunhão com relação a valores compartilhados implicitamente pelo enunciador. No título do poema “Tragédia brasileira”, de Manuel Bandeira, citado no item anterior, por exemplo, há uma denúncia subjacente contra o machismo que marcava as relações entre homens e mulheres na sociedade brasileira na época em que foi publicado (1965), como analisa Fiorin, e que persiste até os dias de hoje:

Ao dar o nome de tragédia brasileira para o texto, o autor pretende desmascarar o machismo que rege as relações entre homem e mulher em nossa sociedade: um homem acha que, por sustentar uma mulher, mesmo que a relação não envolva prazer e carinho, dá a ele o direito de exigir dela exclusividade, fidelidade; um homem julga-se no direito de surrar ou matar uma mulher pelo fato de ela não lhe ser fiel; a culpa da morte da mulher é vista como sendo dela mesma (no texto, é a ação da mulher que conduz a uma privação de sentidos e de inteligência do homem, o que o leva a matá-la). (FIORIN, 2016; p.41)

Bandeira poderia fazer a denúncia explicitamente, atribuindo machismo a Misael ou mesmo chamando o personagem de machista no texto. Desta maneira, não deixaria dúvidas sobre sua opinião. Optou, entretanto, por dizer isso de modo indireto, ao nomear o poema como uma tragédia, de cunho negativo, mas permitindo que um enunciatário de perfil misógino, por exemplo, interpretasse o assassinato da mulher como um ato legítimo.

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1.2.3 O subtexto na sintaxe do nível discursivo

A sintaxe do discurso estuda as marcas da enunciação no enunciado. De acordo com Fiorin, “A enunciação é o ato de produção do discurso, é uma instância pressuposta pelo enunciado (produto na enunciação). Ao realizar-se, ela deixa marcas no discurso que constrói. Por exemplo, o enunciador pode reproduzir ou não a enunciação no interior do enunciado” (FIORIN, 2016: p.55):

Quando se diz “Eu afirmo que o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos”, o enunciador coloca o sujeito da enunciação (eu) e o ato de enunciar (afirmo) no interior do enunciado. Quando se diz “O quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos”, deixa-se de fora do enunciado o simulacro do ato de enunciar. (FIORIN, 2016: p.55)

A sintaxe discursiva abrange dois aspectos: as projeções de instância da enunciação no enunciado e as relações entre enunciador e enunciatário, a argumentação. Como sustenta Fiorin, essas projeções se dão pelo mecanismo da debreagem:

(...) em que se projeta no enunciado quer as pessoas (eu/tu), o tempo (agora) e o espaço (aqui) da enunciação, quer a pessoa (ele), o tempo (então) e o espaço (alhures) do enunciado. No primeiro caso (projeção do eu-aqui-agora) ocorre uma debreagem enunciativa; no segundo (projeção do ele-alhures-então), acontece uma debreagem enunciva. (FIORIN, 2016: p. 58)

Como se pode deduzir, a debreagem enunciativa produz um discurso em primeira pessoa e gera efeito de sentido de subjetividade, enquanto a enunciva, em terceira, causa um efeito de sentido de objetividade. Há três categorias de debreagens enunciativas e três de enuncivas: actancial (de pessoas), espacial (de espaço) e temporal (de tempo). Na classificação das debreagens, existe também a debreagem de segundo grau, ou interna, que ocorre no discurso direto, quando o narrador dá a palavra a uma das pessoas do enunciado ou da enunciação já instalada no enunciado, para criar um efeito de sentido de verdade.

Há ainda a embreagem, em que “se emprega a terceira pessoa em lugar da primeira” (FIORIN, 2016: p. 74) — por exemplo, quando Edson Arantes do Nascimento, atleta do século (passado), mundialmente conhecido, que fez deste recurso uma das marcas de seu discurso, fala em nome de Pelé.

Na sintaxe discursiva, as oposições entre debreagens de primeiro e segundo graus também podem engendrar um dos procedimentos do subtexto, como deixa entrever Fiorin num dos exemplos a que recorre no livro para destrinchar a estrutura do PGS, um excerto de “Memorial de Aires”, de Machado de Assis:

(33)

— Sabe o que D. Fidélia me escreveu agora? perguntou-me Aguiar. Que o Banco tome a si vender Santa-Pia.

— Creio que já ouvi falar nisso…

— Sim, há tempos, mas era idéia que podia passar; vejo agora que não passou. — Os libertos têm continuado no trabalho?

— Têm, mas dizem que é por ela.

Não me lembra se fiz alguma reflexão acerca da liberdade e da escravidão, mas é possível, não me interessando em nada que Santa-Pia seja ou não vendida. O que me interessa particularmente é a fazendeira — esta fazendeira da cidade, que vai casar na cidade. Já se fala no casamento com alguma insistência, bastante admiração e provavelmente inveja. Não falta quem pergunte pelo Noronha. Onde está o Noronha? Mas que fim levou o Noronha?

Não são muitos que perguntam, mas as mulheres são mais numerosas, — ou porque as afligiam as lágrimas de Fidélia, - ou porque achem Tristão interessante, — ou porque não neguem beleza à viúva. Também pode ser que as três razões concorram juntas para tanta curiosidade; mas, enfim, a pergunta faz-se, e a resposta é um gesto parecido com esta ou outra resposta equivalente: — Ah! minha amiga (ou meu amigo), se eu fosse indagar onde param os mortos, andaria o infinito e acabaria na eternidade.

É engenhoso, mas não é bom, principalmente não é certo. Os mortos param no cemitério, e lá vai ter a afeição dos vivos, com as suas flores e recordações. Tal sucederá à própria Fidélia, quando para lá for; tal sucede ao Noronha, que lá está. A questão é que virtualmente não se quebre este laço, e que a lei da vida não destrua o que foi da vida e da morte. Creio nas afeições de Fidélia; chego a crer que as duas formam uma só, continuada.

Quando eu era do corpo diplomático efetivo não acreditava em tanta cousa junta, eu era inquieto e desconfiado; mas, se me aposentei foi justamente para crer na sinceridade dos outros. Que os efetivos desconfiem. (Machado de Assis, “Memorial de Aires”. In: Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1979, vol. I, p. I I90-91.)

Em sua análise, Fiorin (2016, p. 72) pontua que “O discurso direto [debreagem de segundo grau], usado no diálogo entre Aguiar e Aires, em oposição às considerações do narrador [em discurso indireto, portanto, em debreagem de primeiro grau], marca a distinção entre as opiniões exteriorizadas por Aires e seu discurso interior, que revela seus reais interesses”. O interlocutor omite, mas o narrador diz — “não me interessando em nada que Santa-Pia seja ou não vendida”. O não dito está na debreagem de segundo grau, mas é dito com todas as letras na debreagem de primeiro grau.

Em seguida, ao dissecar o discurso interior do narrador [debreagem enunciativa de primeiro grau], Fiorin (2016, p.73) nota que acabam se consolidando duas oposições: “entre um ​eu ​que crê e os outros não creem [na possibilidade de haver dois amores]”, expresso no discurso direto da debreagem enunciativa de segundo grau, e entre “um ​eu anterior (do tempo de serviço ativo) e um posterior (do tempo da aposentadoria)”, expressos no discurso indireto

Referências

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