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O surgimento do movimento de catadores no Brasil

3. As origens históricas dos catadores de materiais recicláveis e do movimento de

3.7. O surgimento do movimento de catadores no Brasil

A primeira cooperativa de catadores que se tem registro é a Coopamare, de São Paulo, criada em 1989. Essa cooperativa não só foi a primeira, como também, anteriormente, o mesmo grupo havia fundado a primeira associação de catadores do Brasil. A criação da associação data de 1985, mas o trabalho de mobilização e de organização desses catadores se inicia antes.

Desde os anos 1960, a Organização de Auxílio Fraterno (OAF), instituição criada pelo monge beneditino Inácio Lesama em 1953 e ligada à

Fraternidade das Oblatas de São Bento, atuava com as populações marginalizadas, especialmente os moradores de rua. As ações de voluntários e leigos eram, sobretudo, ações emergenciais de acolhimento, alimentação, higiene etc.. A partir de meados dos anos 1970, sob influência da Teologia da Libertação e com inspiração nas Comunidades Eclesiais de Base, a OAF começa a mudar o foco de suas ações. Iniciando um processo de profunda reflexão, a OAF fecha suas casas, oficinas e albergues e seus participantes iniciam um processo de vivência do modo de vida das ruas. Essa mudança radical, de instituição de caridade – prestadora de serviços assistenciais – para uma instituição de formação de comunidades de base, proporciona uma relação mais horizontal entre voluntários e moradores de rua e propicia a formação de grupos com fortes laços de solidariedade e com uma postura mais crítica e ativa frente à realidade. (Scarpinatti, 2008)

Voluntários e moradores de rua criam um grupo chamado Comunidade dos Sofredores de Rua, cujo nome de alto valor simbólico remete à expressão “servo sofredor” do profeta bíblico Isaías. Nesse momento, os espaços de encontro da comunidade passam por transformações, como o Centro Comunitário, a Casa de Oração e o Viaduto do Glicério, local onde se realizava reunião de distribuição de sopa. Tais espaços se tornam muito mais do que locais de encontros, mas espaços socialmente significativos voltados ao estabelecimento de laços de solidariedade.

Em maio de 1983, o jornal Notícias Populares noticia que “Mendigos montam ‘sindicato’ em SP”, dizendo que moradores de rua haviam criado uma organização que providenciava comida e estabelecia o preço para o trabalho dos catadores de papel. (Scarpinatti, 2008)

A Missão do Povo da Rua, criada em 1978, jornada de três dias com programação variada (atividades culturais e religiosas, reflexões sobre os problemas da população de rua e dos oprimidos de modo geral), era organizada em mutirão, com os catadores doando parte de sua produção semanal para a organização do evento. Eis o início da organização dos catadores. Em 1985, o Jornal Folha de São Paulo registrou uma manifestação dos catadores contra a repressão, carregando faixas e cartazes com dizeres

como: “Catador não tem casa e nem tem pão, papel é nosso pão”, “Queremos trabalhar”, “Abaixo a repressão”. (Scarpinatti, 2008)

Ainda em 1985, os catadores conseguem junto à OAF uma casa no bairro do Glicério e passam a ter um espaço físico fixo para exercerem suas atividades de maneira coletiva e organizada. Nesse mesmo ano é criada a Associação de Catadores de Materiais Reaproveitáveis, com 10 catadores. Essa formalização deu mais visibilidade e ampliou o número de contatos. Ao mesmo tempo, os adversários, como a prefeitura de São Paulo, sob governo de Jânio Quadros, passaram a combatê-los de maneira mais incisiva. (Scarpinatti, 2008)

Mesmo assim, o grupo se fortaleceu e, em 1989, constituíram a Cooperativa dos Catadores Autônomos de Papel, Aparas e Materiais Reaproveitáveis (Coopamare). A organização em cooperativa permitiu aos catadores a comercialização conjunta e mesmo o estabelecimento de um novo modo de relacionamento com a prefeitura – já sob o governo petista de Luiza Erundina.

Outras experiências parecidas também apareceram ao redor do Brasil. Em Belo Horizonte, em 1987, com apoio da Pastoral da Rua, é iniciado o processo de organização dos catadores de materiais recicláveis e, em 1990, é fundada a Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável (Asmare). E em 1993, a prefeitura inicia um processo de coleta seletiva em parceria com os catadores organizados. Em 1990, também é criada a primeira associação de catadores do Distrito Federal, a Associação dos Catadores e Recicladores de Resíduos Sólidos de Brazlândia (Acobraz), formada por catadores que atuavam em um pequeno lixão na cidade-satélite de Brazlândia, a 50 km de Brasília, com apoio do Governo do Distrito Federal. A partir dos anos 1990 e, principalmente, dos anos 2000 surgem diversas organizações de catadores, cooperativas ou associações, em todo o Brasil.

Cabe destacar a ação do Fórum Nacional Lixo e Cidadania, criado em 1998 por iniciativa da UNICEF, que surgiu com a proposta de erradicar o trabalho infantil nos lixões do Brasil e que se constituiu como importante espaço de articulação de várias entidades que apoiavam os catadores de materiais recicláveis, como a Cáritas, o Movimento Nacional de Meninos e

Meninas de Rua, a Caixa Econômica Federal, a Fundação Banco do Brasil, a Fundação Avina, universidades, Ministério Público Federal, órgãos do Governo Federal, além de contar com a participação de cooperativas e associações de catadores. Ainda em 1998, o Fórum Lixo e Cidadania também passou a se organizar em âmbito estadual e municipal, contando com representantes locais das organizações nacionais e de outros representantes de entidades e de autoridades locais. Segundo Scarpinatti, por meio desses fóruns “se disseminaram pelo país ideias e noções relativas à participação e à incorporação de diversos setores da sociedade nos sistemas de limpeza e destinação, com base na recuperação e na reciclagem de resíduos com a participação dos catadores” (Scarpinatti, 2008, p. 69-70).

Nesse mesmo período, as articulações entre diferentes organizações de catadores começam a ocorrer, culminando na criação do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), em 2001.

Em 1999 ocorreu o 1° Encontro Nacional de Catadores de Papel, onde surgiu uma grande articulação para a fundação de um movimento de âmbito nacional formado por catadores. Em junho de 2001, o movimento, ainda incipiente, organizou, em Brasília, o 1° Congresso Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, que reuniu mais de 1.700 catadores e catadoras do país inteiro. Nesse congresso, considerado o nascimento do Movimento Nacional de Catadores, foi lançada a Carta de Brasília, documento onde se encontravam os principais pontos de reivindicação dos catadores de materiais recicláveis do Brasil.

No ano de 2003, dias antes do Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, acontece o 1º Congresso Latino-americano de Catadores, em Caxias do Sul – RS, que reúne catadores de diversos países. Como resultado desse congresso, é escrita a Carta de Caxias do Sul, que difunde a situação e a pauta de reivindicação dos catadores da América Latina, unificando a luta entre os catadores de oito países latino-americanos. Essa carta reforça o caráter independente e combativo dos movimentos de catadores, que, para defender os direitos da categoria, não devem prescindir do tensionamento e do conflito junto a outras entidades da sociedade civil, empresas e governos (Silva, 2006).

Em 2004, é criada a secretaria nacional do MNCR, com sede em São Paulo, e diversas coordenações regionais e estaduais, o que amplia a base de mobilização do movimento. Com a institucionalização do movimento, que ocorre não apenas no âmbito de sua articulação nacional, mas também por meio do aumento do número de cooperativas e associações, o MNCR vive atualmente um grande dilema: quanto mais se institucionaliza, mais se afasta da população de rua.

O número de organizações de catadores tem crescido no Brasil. A recente organização e articulação de tais experiências tem permitido às diversas instâncias governamentais e não-governamentais obterem informações mais confiáveis a respeito dessa categoria. De acordo com os dados da assessoria de comunicação do MNCR, existem hoje 600 associações e cooperativas de catadores distribuídas em 2.934 municípios brasileiros.

De acordo com o Censo Demográfico de 2010, 387.910 pessoas se declararam catadoras e catadores de materiais recicláveis. No entanto, em decorrência da pesquisa do Censo se basear em unidades domiciliares fixas e permanentes e da depreciação do trabalho de catação, esse número possivelmente está subestimado6. O Ministério do Trabalho e Emprego estima

que existam, no Brasil, cerca de 800 mil pessoas que trabalhem regularmente com catação e reciclagem de lixo. Tais informações ainda são frágeis, uma vez que a atividade de catação ainda é realizada de modo informal por grande parte de seus profissionais. Mesmo quando analisamos os números de catadores organizados em cooperativas, não podemos perder de vista a enorme volatilidade que tais números possuem, uma vez que a origem social e a vulnerabilidade de grande parcela dos catadores acarreta ainda uma grande circulação dos mesmos.

6 Conforme análise do Ipea (2013), esta pesquisa não compreende os numerosos catadores

que realizam este trabalho mas não possuem residência fixa, ou seja, os moradores de rua. Além disso, como o Censo é uma pesquisa declaratória, pode haver pessoas que exercem outra atividade remunerada, além da catação, e não a declaram, em virtude da desvalorização e dos preconceitos em relação a esta profissão.

4. Aspectos econômicos e políticos da coleta e reciclagem de