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A questão urbana no Brasil

3. As origens históricas dos catadores de materiais recicláveis e do movimento de

3.5. A questão urbana no Brasil

No Brasil, ao longo do século XX, as condições de trabalho e de vida dos catadores pouco mudam. Tal situação começa a mudar a partir dos anos 1980, com a organização de cooperativas e associações de catadores. Primeiramente com o apoio e o protagonismo de setores da sociedade civil – principalmente de grupos ligados à Igreja Católica – e depois com a construção de organizações associativas locais, regionais e, a partir da virada do século, de um Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis, tais catadores passam a ter influência junto ao poder público, na formulação de

políticas de Saneamento e de Limpeza Pública, e também se constituem como atores imprescindíveis na esfera econômica, na cadeia produtiva da reciclagem de lixo. Para entender os motivos do surgimento das organizações de catadores a partir dos anos 1980 e 1990, devemos analisar, primeiramente, as transformações pelas quais passaram nossas metrópoles nesse período.

A década da redemocratização do Brasil é muitas vezes chamada como a “década perdida”, pois o modelo que permitiu o rápido crescimento econômico do Brasil nas décadas anteriores esgotou-se, facilitando a derrocada do governo militar. A grave situação econômica do país causou grande impacto sobre as grandes cidades nos anos 1980 e 1990. Um exemplo disso é o crescimento do que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) chama de “aglomerados subnormais” e que nós conhecemos como favelas. Segundo dados dos censos, em 1980, 1,89% da população brasileira vivia em favelas, em 1991 essa proporção passou para 3,28%. Esses mesmos dados mostram que o crescimento da população que mora nesses “aglomerados subnormais” em uma década foi 70%, maior do que o crescimento da população urbana em geral3. O município de São Paulo, o mais

populoso do país, é emblemático. Segundo os dados da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano do município, a população que habita favelas, cerca de 1% em 1973, passa para 8% no final dos anos 1980 e 19,4% em 1993. Um crescimento de 17,8% ao ano.

Outros autores, como Antonio Risério, também apontam tal tendência em São Paulo como algo bastante característico dos anos 1980 e 1990 (Risério, 2012, p. 322). Segundo o autor, dados da Fipe4 mostram que, em

1980, a população que morava em favelas em São Paulo era calculada em 375 mil pessoas, em 1987 passa para 813 mil e em 1993 eleva-se para 1,9 milhão.

Outras grandes cidades também apresentam grande parcela da população que vive em tais condições. Segundo Maricato (s.d.), 40% da população que mora na Região Metropolitana do Recife, 33% da população

3 Segundo Maricato (s.d.), os dados do IBGE são controversos, devido à metodologia utilizada

na medição, mas apresentam uma tendência que outras pesquisas também apontam.

4Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, entidade de direito privado, sem fins lucrativos,

criada em 1973 para apoiar o Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP).

que vive no município de Salvador, 31% da população de Fortaleza, 20% dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro e 20% da população de Belo Horizonte vivem em favelas.

Somando-se à tendência de expansão desses aglomerados urbanos que, segundo Paola Jacques, se caracterizam por reunir uma lógica e uma estética própria, a partir de “um processo espaço-temporal fragmentário, labiríntico e rizomático” (Jacques, 2011), os habitantes das cidades brasileiras enfrentam outros graves problemas. Dentre estes, podemos enumerar três fenômenos que particularmente nos interessam: o crescimento da precarização do trabalho e do desemprego, o alargamento socioespacial da pobreza e o déficit habitacional (Iffly, 2010, p. 254). Tais problemas decorrem, principalmente, da estagnação econômica dos anos 1980.

O aumento da precarização do emprego e o crescimento do desemprego normalmente andam de mãos dadas em períodos de estagnação econômica. Tal situação torna-se emblemática na Região Metropolitana de São Paulo, que atravessou, entre os anos 1980 e 1990, um período de intensa reestruturação produtiva. Tal reestruturação se deveu não só à estagnação econômica do país, que perdurou praticamente toda a década de 1980, mas também às políticas neoliberais que foram implementadas ao longo dos anos 1990. A reestruturação produtiva que, entre outras coisas, implicou no achatamento salarial da classe operária, no crescimento da participação do setor de serviços na economia e em amplo processo de terceirização produtiva, atingiu fortemente tanto as classes médias assalariadas paulistas quanto a parcela mais pobre dos trabalhadores. Pesquisas de Condições de Vida realizadas pela Seade5 na Região Metropolitana de São Paulo mostram que,

em 1994, 43% das famílias tinham uma inserção vulnerável no mercado de trabalho – contra 36% em 1990 – e 35% das pessoas empregadas disseram que estiveram desempregadas em algum momento ao longo dos dois anos anteriores – contra 9% em 1990. Tais dados mostram que a precariedade do

5 Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados, fundação vinculada à Secretaria Estadual

de Planejamento e Desenvolvimento Regional do Estado de São Paulo, é responsável pela produção e disseminação de análises e estatísticas socioeconômicas e demográficas do Estado de São Paulo.

trabalho se mostrou bastante presente na vida do trabalhador da Região Metropolitana de São Paulo. (Iffly, 2010, p. 254)

O aumento do desemprego e da precarização do trabalho acaba por gerar o crescimento da pobreza. Segundo os dados da Seade, na Região Metropolitana de São Paulo, em 1994, 47% das famílias se encontravam abaixo da linha da pobreza, do ponto de vista de renda, e 14,5% das famílias estavam em situação de miséria, quando acrescentados, à renda, os critérios de moradia, emprego e escolaridade (Iffly, 2010, p. 254).

Por outro lado, nessas duas décadas a situação de infraestrutura urbana passou por certas melhorias, sendo que alguns serviços praticamente se universalizaram na região metropolitana paulistana, como a coleta de lixo e o abastecimento de energia e de água. O esgotamento sanitário continuou sendo o item de infraestrutura urbana com maior desigualdade de acesso. Não obstante essas melhorias, a moradia continua sendo um grave problema urbano para grande parcela da população. (Iffly, 2010, p. 255)

Nos anos 1980 há uma mudança das tendências geográficas observadas nas grandes cidades, conforme constata Iffly, ao analisar o deslocamento observado na Região Metropolitana de São Paulo:

Por muito tempo o desenvolvimento da cidade se fez por meio do crescimento da periferia: os migrantes iam morar sempre mais longe do centro, muitas vezes construindo eles mesmos suas casas, em lotes desprovidos de qualquer infraestrutura. Esse processo, iniciado nos anos 1930, se acelerou na década de 1960, em razão do rápido crescimento industrial induzido pelos investimentos das multinacionais. Tal esquema caducou nos anos 1980. O crescimento demográfico cai nas zonas limítrofes da cidade, passando de 12,9% por ano, durante a década precedente, para 3,78% entre 1980 e 1987. Por outro lado, enquanto a população das regiões mais centrais permaneceu quase estável nos anos 1960 e 1970, ela aumenta em seguida num ritmo comparável ao das zonas externas (3,63% ao ano). (Iffly, 2010, p. 261-2)

Ao mesmo tempo, com a melhoria urbana que ocorre nas periferias, esses bairros vão se valorizando perante o mercado e expulsando as famílias mais pobres. Como observa Regina Bega dos Santos (2008):

Depois que surgem os primeiros estabelecimentos comerciais e de serviços, para a satisfação das necessidades básicas (padaria, farmácia, açougue, mercado) e que a mobilização dos moradores já pressionou o poder público por infraestrutura e serviços (calçamento de ruas, asfalto, transporte público, redes de abastecimento de água e luz, escolas postos de saúde etc.), os demais lotes, valorizados com a urbanização ocorrida, são postos à venda. (Santos, 2008, p. 121).

A partir de tal análise, a autora verifica que as políticas habitacionais levadas a cabo pelo Estado, acabaram beneficiando mais uma classe média assalariada do que a parcela mais pobre dos trabalhadores. Uma das causas disso eram as exigências burocráticas para a inscrição em tais programas, que, em geral, excluíam os mais pobres, os migrantes, os desempregados e os trabalhadores informais.

O que se percebe na cidade de São Paulo e também em outras capitais do país é uma mudança territorial da pobreza, fazendo com que a população mais pobre seja expulsa da periferia e migre para as regiões centrais da cidade, constituindo o que Risério chama de “enclaves pobres em áreas ‘nobres’” (Risério, 2012, p. 327). Conforme chama atenção Catherine Iffly, há uma diminuição dos estratos mais pobres nas áreas em que esses estratos eram mais presentes dez anos antes, as periferias leste e sul de São Paulo, e um empobrecimento das regiões centrais, o que gerou uma relativa dispersão no espaço urbano dos grupos de baixa renda (Iffly, 2010, p. 259). Segundo a autora, essa “nova geografia da pobreza”, vincula-se às novas tendências demográficas dos anos 1980. Até esse período, o crescimento de São Paulo ocorria de maneira mais intensa nas periferias, em virtude do crescimento industrial induzido pelos investimentos de multinacionais, principalmente a indústria metalúrgica e automotiva. Nos anos 1980, esse sistema “caducou”. O crescimento das zonas periféricas cai de 12,9% ao ano na década de 1970 para 3,79% na década seguinte. Em comparação, a população das regiões mais centrais, praticamente estável entre as décadas de 1960 e 1970, aumenta para 3,63% ao ano na década de 1980. No distrito da Sé, por exemplo, o crescimento populacional nesse período atinge 16% ao ano.

O número de cortiços na região central da cidade também aumentou consideravelmente. Segundo dados da Fipe, 6% da população paulistana vivia em cortiços em 1993. Além disso, apesar da falta de dados confiáveis, percebe-se o aumento considerável do número de sem-teto. Essta parcela da população, que vive na situação da mais extrema pobreza, se encontra principalmente nos centros das cidades. Por outro lado, as ocupações de terrenos irregulares e o crescimento das favelas ocorrem principalmente nas regiões menos centrais, sobretudo nas periferias.

Essa população de rua, seja em São Paulo ou em outras cidades grandes e médias do país, encontra na coleta de resíduos recicláveis sua principal fonte de sobrevivência (Bursztyn, 2000; Rodríguez, 2002; e Furini, 2010). Com o seu aumento , o número de catadores de materiais recicláveis também cresce. De um lado, aumenta o número de catadores que circulam nas ruas do centro da cidade, a exemplo dos trapeiros do séc. XIX, do outro, na periferia da cidade, também cresce o número de catadores que trabalham nos lixões. O aumento do desemprego de longa duração empurra trabalhadores com poucas perspectivas de inserção no mercado formal para o trabalho insalubre existente nos lixões das cidades brasileiras.

Com o apoio de alguns setores da sociedade civil e contra a vontade do Estado, esses catadores vão se organizando em associações e cooperativas e passam a influenciar também, principalmente a partir da “Era Lula” (2003-2010), diversas políticas urbanas, especialmente as políticas de gestão dos resíduos sólidos.