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O surgimento da Rede Globo e o caráter nada lícito da transação

1. Televisão, mídia e poder

1.3 O surgimento da Rede Globo e o caráter nada lícito da transação

A Rede Globo de Televisão surgiu coincidentemente no ano da criação do primeiro Código Brasileiro de Telecomunicações, em 1962, conhecido por confiar ao Estado a obrigação de instalar e explorar as redes de telecomunicações no país. Michèle & Armand Mattelart (1997, p. 37), ao reconstruírem o processo histórico de formação da televisão no Brasil, não veem nessa junção de fatos, que se encontram aparentemente isolados, uma coincidência qualquer.

Para os autores, o golpe de Estado foi articulado dois anos antes, quando o Estado- Maior das Forças Armadas, mais precisamente a Marinha e o Exército, fizeram pressão para que esse código surgisse o mais depressa possível. Ele forneceria, na visão deMichèle & Armand Mattelart (1997, p. 38), o elo de que o regime militar precisava para garantir a integridade e a segurança nacional, por meio de uma rede nacional de comunicação.

Como já foi mencionado, paralelamente à criação do Código Brasileiro de Telecomunicações, Roberto Marinho, filho do jornalista Roberto Irineu Marinho e detentor do jornal O Globo e da Rádio Globo, comandou a criação da emissora que se tornaria, não somente aliada do regime militar, como uma das maiores, mais lucrativas e poderosas redes de televisão do planeta. Assim, no ano de 1965, Roberto Marinho pôs em uso uma concessão de televisão, outorgada pelo presidente Kubitschek, em 30 de dezembro de 1957, através do Decreto de n.° 42.946.

Para implantação de uma estrutura audiovisual mais moderna e arrojada em relação aos concorrentes, a Rede Globo iniciou suas negociações com o grupo americano de multimídia Time-Life, mesmo conhecendo as normas regulativas do setor e sabendo que tal acordo infringiria um artigo da Constituição brasileira, que proibia sociedades estrangeiras de participar da propriedade, administração e orientação intelectual de qualquer concessionária de um canal de televisão (MATTELART, 1997, p. 39).

Daniel Herz, em sua dissertação de mestrado, examinou com detalhes o período de implantação da Rede Globo no país, e orientou-se pela hipótese de que o Estado, regulamentando recursos públicos, foi instrumentalizado pelos interesses capitalistas predominantes na radiodifusão. Para confirmar sua tese, o autor analisou com precisão o acordo da Rede Globo com o grupo americano Time-Life, questionando sobretudo a atuação e a aprovação dessa parceria pelo governo militar. Segundo Herz (1991, p. 104),

ao verificar mais de perto essa sociedade, é impossível não notar as incongruências do processo, visíveis já na base contratual, firmada em 28 de junho de 1962.

Exatamente nessa data, foi consolidada a sociedade por cotas entre a Rede Globo e o grupo Time-Life, com um capital social inicial de Cr$ 500 milhões,15 aumentado em 14 de dezembro do mesmo ano para Cr$ 650 milhões. Desse último valor, Roberto Marinho ficou com Cr$ 390 milhões e sua esposa com Cr$ 187,3. Na integralização do capital, Roberto Marinho relacionou tudo que podia, inclusive dez martelos, cujo valor girava em torno de Cr$ 700 cada um.

Entretanto, o autor esclarece que o caráter ilegal da transação não se encontrava nos martelos, mas sim na forma como Roberto Marinho integralizou o seu capital de Cr$ 170 milhões, relacionando um equipamento completo de uma estação transmissora de TV, na Licença de Importação da FIBAN N° DG-60/7484/18056 e no contrato firmado com a RCA Corporation. O problema do contrato residia no fato de que o equipamento não pertencia a Roberto Marinho, já que havia sido importado pela Rádio Globo S.A., com isenção de direito e câmbio favorecido. Assim, estava impossibilitado de ser integralizado na sua parte de capital da TV Globo (CALMON apud HERZ, 1991, p. 104).

Outra divergência do processo estava no modelo de sociedade escolhido pela emissora. Ao optar pela sociedade de cotas, e não por ações, a Rede Globo isentava-se das publicações exigidas pelo modelo de contrato que adotava para todos os seus demais empreendimentos, conforme atesta João Calmon:

A TV Globo Ltda. adotou a forma da sociedade por cotas, e não por ações, e são por ações a Rádio Globo SA e outras organizações do mesmo grupo, porque este tipo de sociedade dispensa a publicação de atos constitutivos, das alterações contratuais, dos balanços, das decisões administrativas, e dos atos que impliquem distribuições de lucros a terceiros. Ademais, a sociedade por cotas, possibilitando a assinatura de alterações contratuais sem data, para eventual utilização, propicia o expediente de manter ‘testa-de-ferro’[...] (CALMON apud HERZ, 1991, p. 106).

Vale ressaltar que os investimentos do grupo americano Time-Life foram significativos e surgiram antes mesmo da efetiva assinatura do contrato. Conforme consta nos relatos da Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI, que investigou as ligações ilegais de Roberto Marinho com o grupo americano, a TV Globo recebeu da Time-Life

Incorporated a soma de US$ 1,5 milhão, equivalente a Cr$ 300 milhões, sete dias antes de o contrato ser firmado (HERZ, 1991, p. 106).

Além disso, em 24 de julho de 1962, a recém-constituída TV Globo assinou com o grupo Time-Life dois contratos. O primeiro, sob o título de Contrato Principal, estabelecia uma joint venture, na qual a Rede Globo tinha como dever adquirir e instalar todo equipamento de transmissão de TV e terminar, no prazo de um ano, a construção daquilo que seria sua sede inicial, um estúdio no terreno da rua Von Martius. Por outro lado, os direitos da recém-criada emissora eram muitos e compreendiam treinamento especializado na área de televisão, troca de informações sobre direção administrativa e comercial, assessoramento de engenharia, orientação para a aquisição de filmes e programas produzidos no estrangeiro e uma quantia de até Cr$ 220 milhões, valor que compreendia uma parcela igual à realizada em bens por Roberto Marinho no capital social da TV Globo Ltda (HERZ, 1991, p. 106).

Já o segundo contrato, de caráter técnico, firmado no mesmo dia que o principal, foi dotado de uma transação com detalhes que, aparentemente, soavam incoerentes. A começar pela discordância entre as empresas envolvidas no acordo: o Contato Principal foi assinado com o grupo Time-Life Broadcast International Inc., sediado em Delaware, e o Contrato de Assistência Técnica foi firmado com a Time Incorporated, com sede em Nova Iorque. Entretanto, João Calmon explica a harmonia do processo, realizado com o intuito de disfarçar a relação clara e ilícita de sociedade que se firmou no país:

Para não tornar muito ostensiva a participação estrangeira de uma só empresa, com 30% do lucro e mais a participação na receita, pretendeu- se, com péssimo disfarce, destinar o proveito alienígena a duas empresas norte-americanas que, na realidade, estão intimamente ligadas e se confundem no mesmo grupo Time (CALMON apud HERZ, 1991, p. 181).

Daí decorre o caráter audacioso e ilegítimo da transação. Todavia, foi a partir dessa união que a Rede Globo foi capaz de capitanear a indústria televisiva brasileira e inaugurar uma fase de crescimento acelerado para os meios de comunicação de massa, monopolizando o mercado e desestruturando seus concorrentes, que se tornavam incapazes de disputar e encontrar um público cativo, perante as inovações tecnológicas que a emissora disponibilizava a cada dia para sua grade de programação.

Aliada do regime militar desde sua fase inicial, a Rede Globo contou no final da década de 1960 com a estrutura adequada para estender seu império. Para Carlos Eduardo

Lins da Silva, a identificação do regime com a editora era indisfarçável, conforme relata o autor:

A Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados que investigou o caso Time-Life aprovou por unanimidade o parecer do redator, deputado Djalma Marinho, segundo o qual os acordos entre a Globo e o grupo americano infringiam o artigo 160 da Constituição da República. Mas o procurador-geral da República e o presidente Castello Branco, em março de 1967, decidiam que a operação havia sido legal, o que seria referendado em 1968 pelo presidente Costa e Silva (1985, p. 32).

A atitude dos militares em relação à Globo escondia uma intenção estratégica: o poder que a emissora conquistava gradativamente junto ao público, seria utilizado na criação de uma imagem favorável ao governo. Além disso, a Rede funcionaria ainda como precursora do projeto de integração nacional idealizado pelo regime.

Isso porque o Brasil, à época do golpe militar que levou o general Castello Branco à Presidência da República, em 15 de abril de 1964, encontrava-se em total divergência com os estados da União: Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais representavam os estados com maior poder político e força centralizadora, o que dificultava o exercício unificado do poder político no país. Temendo o desenvolvimento de focos de resistência em alguns estados, a estratégia principal do governo militar para garantir o controle sobre a nação e sua integridade administrativa, baseava-se na criação de um projeto de integração nacional, fundamentado na construção de estradas e no incremento das telecomunicações.

E assim ocorreu. Em 1965, a Embratel (Empresa Brasileira de Telecomunicações) foi criada com o slogan: “A comunicação é a integração”, e os militares confiaram-lhe três missões, a saber: unir os estados da federação através de um sistema de micro-ondas, construir uma estação terrestre de comunicação por satélite e lançar as bases de uma rede nacional de televisão (MATELLART, 1997, p. 37).

Em fevereiro de 1969, os militares concluíram parte de seu projeto de integração nacional e inauguram a Rede Básica de Micro-ondas, sistema de transmissão por satélites, que permitia a interligação e transmissão de programas ao vivo, em tempo real, para diversas regiões do país.

No mesmo ano, a Rede Globo comprou 49% das ações que o grupo Time-Life detinha na sociedade e inaugurou, em 1° de setembro de 1969, o primeiro jornal de âmbito nacional, o Jornal Nacional. Produzido na central do Rio de Janeiro e disponibilizado para

outros estados, a Globo, via telejornal, é a primeira a inaugurar um padrão de grande rede nacional.

2. A ditadura militar e o surgimento do Jornal Nacional: