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2. O DIREITO FUNDAMENTAL À RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO PENAL

2.1 O TEMPO NO PROCESSO PENAL

2.1.2 O tempo do acusado

O acusado ou réu é o sujeito passivo da ação penal, é o individuo contra quem é movida a ação penal seja pública ou privada, nesta última é denominado querelado. O Decreto-Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969, o Código de Processo Penal Militar, traz no seu bojo uma definição precisa do que venha ser acusado: "artigo 69. Considera-se acusado aquele a quem é imputada a prática de infração penal em denúncia recebida"141.

O acusado é o sujeito processual sobre o qual recai a carga acusatória durante o tempo de duração do processo. É sobre os ombros do acusado que recai a pretensão punitiva do Estado, o sujeito passivo da ação penal deverá resistir à pretensão punitiva.

É evidente que a deflagração do processo traz gravames ao acusado, ônus estes que se tornam ainda mais nefastos diante da demora desarrazoada. A honra e a dignidade do individuo acusado da prática de uma infração penal são maculadas, além do que a deflagração de uma ação penal pode dar ensejo a várias limitações aos seus direitos individuais, como o necessário comparecimento aos atos do processo e, até mesmo, o risco de ter sua liberdade cerceada cautelarmente e mais, a tensão psicológica com uma situação que pode gerar mudanças quase definitivas na vida do individuo. O tempo de duração do processo é um tempo que é desapropriado do acusado142.

O tempo do acusado é distinto do tempo do julgador, isto, pois, o acusado sofre com a persecução penal. Para o acusado o tempo corre de maneira mais "veloz", ou seja, para o acusado o tempo de duração do processo pode parecer uma "eternidade", já que sobre ele recai toda pretensão punitiva do Estado.

141 BADARÓ, Gustavo Henrique RighiIvahy. Processo Penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, p. 197. 142 GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Op. cit, p. 343.

O acusado sofre por antecipação com a angústia de ter uma condenação transitada em julgado, aliás essa tensão psicológica é ainda maior e, isso em virtude da possibilidade de sofrer uma medida cautelar real ou até mesmo pessoal, como a decretação da prisão preventiva.

No geral, o medo toma conta do acusado que, ao atuar no processo penal diante de juízes, promotores de justiça, defensores públicos e advogados, encontra-se em uma situação de "inferioridade", desconhecendo, no mais das vezes, as regras dos procedimentos e a linguagem rebuscada utilizada no Direito143.

Quando se faz a afirmação de que o tempo do acusado corre de maneira mais rápida, não significa que o procedimento esteja sendo realizado de forma célere, na verdade, significa dizer que o acusado tem uma percepção distinta de tempo, ou seja, para ele a sensação temporal é mais larga, ou seja, tem a sensação de maior duração. Isto ocorre em virtude do sofrimento psicológico antecipado à pena, proporcionado pelo próprio curso do processo penal, quiçá antes do processo penal, até porque o inquérito policial proporciona sofrimento e tensão psicológica com a possibilidade de prisão cautelar (temporária ou preventiva) ou mesmo de ser posteriormente processado.

Nesse diapasão é mister citar AURY LOPES JR.:

O processo penal submete o particular a uma instituição que, em geral, é-lhe absolutamente nova e repleta de mistérios e incógnitas. [...] os membros do Estado - juízes, promotores e auxiliares da Justiça - movem-se em um cenário que lhes é familiar, com a indiferença de quem só cumpre mais uma tarefa rotineira. Utilizam uma indumentária, vocabulário e todo um ritualismo que contribui de forma definitiva para que o indivíduo adquira a plena consciência de sua inferioridade. [...] Tudo isso, acrescido do peso da espada de Dâmocles que pende sobre sua cabeça, leva o sujeito passivo a um estado de angústia prolongada. Enquanto dura o processo penal, dura a incerteza, e isso leva qualquer pessoa a níveis de estresse jamais imaginados. Não raros serão os transtornos psicológicos graves, como a depressão exógena. O sofrimento da alma é um custo que terá de pagar o submetido ao processo penal, e tanto maior será sua dor quanto maior for a injustiça a que esteja sendo submetido144.

A personalidade do acusado, sua dignidade e liberdade não são levadas em conta, o processo penal é um autentico instrumento de castigo antecipado, de per se.

143 RIVIÈRE, Claude. Os Ritos Profanos. Petrópolis, Vozes, 1997, p. 317.

A concepção de justiça parece obnubilada por uma concepção autoritária e despótica do Estado, sendo todo meio legítimo para defender a sociedade145.

O cidadão acusado ou indiciado, apesar de ser considerado presumidamente inocente, conforme o disposto no artigo 5º, inciso LVII da Constituição da República, adquire uma nova identidade, degradada, perde sua identidade anterior e altera sua vida social, sendo considerado "culpado" antes mesmo da sentença penal definitiva.

Para o acusado o processo de estigmatização gerado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória é uma punição drástica da alma e, por conta disso, sua percepção temporal é relativamente mais dilatada. Ademais, essa situação é mais grave nos casos de decretação de prisão cautelar. O tempo na prisão, especificamente para o preso provisório, corre muito mais "rápido", ou seja, o tempo passa e parece não terminar nunca, tempo este que lhe é subtraído de maneira institucionalizada. A persecução penal já representa, com a prisão provisória ou sem ela, de per se uma pena do processo.

Aliás, LUIGI FERRAJOLI afirma:

[...] Aqui estamos obviamente nos casos de patologia judiciária. Mas de uma patologia que assinala a possibilidade de fazer uso do processo como escopo de punição antecipada, ou de intimidação policialesca, ou de estigmatização social, ou de persecuções políticas, ou por todos estes motivos conjuntamente. Em todos os casos, além de cada intenção persecutória em relação ao suspeito, é indubitável que a sanção mais temida na maior parte dos processos penais não é a pena - quase sempre leve ou não aplicada -, mas a difamação pública do imputado, que tem não só a sua honra irreparavelmente ofendida mas, também ,as condições e perspectivas de vida e de trabalho; e se hoje pode-se falar de um valor simbólico e exemplar do Direito Penal, ele deve ser associado não tanto às penas mas, verdadeiramente, ao processo e mais exatamente à acusação e à amplificação operada sem possibilidade de defesa pela imprensa e pela televisão146.

A prisão temporária é assim denominada por ter prazo predefinido em lei quanto à sua duração (vide artigo 2.º da Lei n.º 7.960/1989 e artigo 2.º §4.º, da Lei n.º 8.072/1990). A prisão preventiva, por sua vez, não encontra restrição desta ordem, perdurando, supostamente, enquanto se fizer necessária para o andamento do processo. A prisão preventiva, ao ser utilizada de maneira abusiva, acaba revelando a natureza draconiana do processo penal, isto

145AQUINO, José Carlos G. Xavier de; e NALINI, José Renato. Manual de Processo Penal. São Paulo, Saraiva, 1997, p. 12.

146FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 4.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 675.

pois, em alguns casos, o tempo de duração da prisão provisória pode, arbitrariamente, ultrapassar o prazo de cumprimento da pena em caso de condenação.

O tempo de duração da prisão provisória para quem sente suas "grades autoritárias" é muito longo, aliás, não há dúvidas de que se trata de uma autêntica punição antecipada147. A pena privativa de liberdade, assim como a prisão provisória e o próprio processo penal atingem, muito mais a integridade psíquica do individuo do que a sua integridade física. Entres os séculos XVIII e XIX manifestou-se uma transformação na pena, que passa das penas corporais às privativas de liberdade e do mero castigo à "correção"148.

Nesse sentido, são as análises de MICHEL FOUCAULT:

Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras, sobre o que, então, se exerce? A resposta dos teóricos - daqueles que abriram, por volta de 1780, o período que ainda não se encerrou - é simples, quase evidente. Dir-se-ia inscrita na própria indagação. Pois não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições. Mably formulou o princípio decisivo: Que o castigo, se assim posso exprimir, fira mais a alma do que o corpo149.

Não há dúvidas de que a prisão, seja ela provisória ou decorrente de sentença condenatória com trânsito em julgado, atinge a mente do individuo, que porventura terá uma perspectiva temporal distinta. Aliás, CEZAR ROBERTO BITENCOURT trata detalhadamente dos problemas psicológicos que a prisão produz no individuo, entre eles pode-se citar: a epilepsia, as oligofrenias, as esquizofrenias, as depressões, as reações explosivas à prisão, as recorrentes tentativas de suicídio etc150.

Não só o acusado, mas o condenado à pena privativa de liberdade terá uma percepção subjetiva distinta do transcorrer do tempo. Para ANA MESSUTI, a pena é insubstituível, intransferível, única: "ainda que a pena esteja prevista e quantificada, de modo uniforme, objetivo, cada um viverá como própria. Cada um viverá sua própria pena"151.

147FERRAJOLI, Luigi.Op. cit, p. 715.

148ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 10.ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 252.

149

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; Tradução de Raquel Ramalhete. 41.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p. 21.

150BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4.ed. - São Paulo: Saraiva, 2011, p. 199-203.

151 MESSUTI, Ana. O tempo como pena. Tradução de Tadeu AntonioDix Silva e Maria Clara Veronesi de Toledo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 44-45.

O tempo da pena escoa-se em comum com o tempo que transcorre livre da pena, o tempo de vida de um ser humano, pois na medida em que são descontados os anos de pena, ou de prisão provisória, igualmente vão se descontando os anos de vida152.

O Direito Penal está fundamentado na concepção temporal, ou seja, o Direito Penal utiliza-se da passagem do tempo para punir os criminosos, nesse sentido:

No que se refere ao Direito Penal, o tempo é fundante de sua estrutura, na medida em que tanto cria como mata o direito (prescrição), podendo sintetizar-se essa relação na constatação de que a pena é tempo e o tempo é pena. Pune-se através de quantidade de tempo e permite-se que o tempo substitua a pena. No primeiro caso, é o tempo do castigo, no segundo, o tempo do perdão e da prescrição. Como identificou MESSUTI, os muros da prisão não marcam apenas a ruptura no espaço, senão também uma ruptura do tempo. O tempo, mais que o espaço, é o verdadeiro significante da pena153.

AURY LOPES JR já identifica a existência do tempo subjetivo do acusado e, porque não o do condenado. Aliás, o autor supracitado já cogita a possibilidade de análise da pena tendo em vista a sociologia do risco e a própria teoria da relatividade. 154 Diante de tudo, percebe-se que o acusado e, também, o condenado, tem seu próprio tempo, subjetivo.

Para o acusado a sensação de duração do processo penal é distinta das sensações dos demais sujeitos processuais e até mesmo da sociedade, pois, como já afirmava ALBERT EINSTEIN, a concepção de passagem do tempo também é influenciada por certos estados mentais155. No caso do réu, pelo sofrimento passado durante a angustiante demora subjetiva do processo.