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3.3 O TEMPO E UMA PROFECIA: “Últimos Dias da Lei” (mappô)

Por trás dos escritos e das ações de Nichiren está uma premissa budista-mahayana fundamental relativa à concepção cíclica da história, centrada na noção de mappô (lit., “fim da Lei”), o último dos três períodos de decadência gradual dos ensinamentos do Buda histórico, Shakyamuni ou Siddharta Gautama. A crença em mappô é o pano de fundo para o desenvolvimento de uma visão escatológica no ensino de Nichiren. No entanto, trata-se aqui de uma escatologia bastante diferente da judaico-cristã, por não depender de um Deus onipresente e onipotente que instituirá o “Reino de Deus na terra” ou o “Reino dos Céus”, com o julgamento dos vivos e dos mortos, a vitória final e conclusiva sobre o mal e a inauguração de um mundo perfeito acessível somente aos escolhidos de Deus.

De acordo com a tradição budista, Shakyamuni teria predito que, após sua morte, a influência de seu ensinamento e a sorte do próprio Budismo, seguiriam uma trajetória

Por último, ambos partiam de uma classificação de todas as doutrinas budistas para reivindicar a supremacia de seus ensinamentos e do Sutra de Lótus (cf. Saunders 1980: 140-42, 228-36).

descendente, dividida em três períodos (shôbô, zôhô e mappô, ou, de maneira abreviada, shô-zô-matsu). 11

No primeiro período de mil anos após a morte do Buda conhecido como a era da “Lei correta” ou “Perfeita” (shôbô ou shôhô), os seguidores se teriam lembrado claramente dos ensinamentos de Buda (dharma), compreendendo-os e praticando-os corretamente, e conseguindo atingir o nirvana com relativa facilidade. Os seres humanos teriam vivido por mais tempo do que se vive atualmente, e suas capacidades físicas, mentais, espirituais e morais teriam sido desenvolvidas a ponto de poderem atingir a iluminação e ficarem imunes ao mal, na forma do orgulho, dos desejos e da ganância.

Nos mil anos subseqüentes era da “Lei falsa” ou “de imitação” (zôbô ou zôhô), o mal estaria mais atuante no mundo, de maneira que os homens teriam estado sob o domínio de desejos obsessivos. Assim, mesmo que tivessem havido monges e leigos praticando o dharma, poucos o teriam compreendido e atingido a iluminação. Eventualmente, o Budismo seria praticado basicamente por meio da construção de templos e pagodes, demonstrando uma prática formal e superficial.

O terceiro e último período era dos “Últimos Dias da Lei” (mappô) deve, de acordo com o mito escatológico budista, durar dez mil ou mais anos. Nesse período, nenhum ensino correto seria repassado e o Budismo somente existiria numa forma degenerada, impedindo que as pessoas atinjam a iluminação. Nessa era, que compreenderia os tempos atuais, os homens estariam completamente dominados por impulsos e desejos egoístas, levando-os a se confinarem num círculo vicioso de efeitos cármicos negativos e de renascimentos incessantes em existências dolorosas (samsâra). O resultado do esquecimento da lei de Buda é um período de violência, caos e miséria (Yamada 1960; Murata 1971: 19-20, 32-34; Ingram 1977: 210-11)

A doutrina de mappô não foi pregada simultaneamente no mundo budista. Bloom (1967: 145) nota que houve mais ênfase em sua pregação em épocas de crise e instabilidade social. Tais épocas constituíam terreno fértil como dimensão existencial para o ensino abstrato. Assim, a idéia de destruição do dharma (ensino do Buda como lei cósmica) teria surgido no contexto da invasão da Índia pelos gregos e tribos nômades.

11 Os três períodos históricos são, em sânscrito, respectivamente: saddharma, pratirûpadharma e

Essa idéia penetrou a consciência popular na China no período de troca de dinastias e guerra civil, que testemunhou a perseguição do Budismo por Chou Wu-ti, em 574 (alguns budistas consideram o ano de 570 como o início da era de mappô). No Japão, também foi visto anteriormente que a crença em mappô foi amplamente difundida no conturbado período de transição para um governo militar, sediado em Kamakura. Talvez o pioneiro em propagar o advento de mappô tenha sido Genshin (942-1017), que escreveu um livro (Ôjô-yôshû) em que admoesta seus patrícios sobre a chegada dos Últimos Dias da Lei.

Entre os vários sutras que mencionam a teoria de mappô, Nichiren parece ter baseado sua interpretação dessa teoria na coletânea de textos mahayanas conhecida por Daishikkyô ou Daijikkyô (“Grande Coleção de Sutras).

De acordo com as tradições chinesas e japonesas, Shakyamuni teria morrido no ano de 949 a.C., o que leva a dizer que a era de zôbô teria começado em 51 a.C. e a era de mappô, em 1051.12 O marco inicial da era de mappô, de acordo com esses cálculos, coincide com o início de uma série prolongada de guerras civis no Japão e explica, em parte, porque a crença nos “Últimos Dias da Lei” se difundiu amplamente na época de Nichiren. Para muitas pessoas, as circunstâncias históricas mencionadas no início deste Capítulo, serviam como sinais comprobatórios da degeneração e das mudanças profetizadas. Violência, guerra civil e desastres naturais eram indícios suficientes para criar uma atmosfera pessimista e perpetuar a escatologia de mappô. Além disso, os monges budistas pouco podiam fazer diante dos males que afligiam as pessoas.

A crença em mappô também serviu de substrato e ponto de partida para outros movimentos reformistas do século XIII, particularmente para o Amidismo de Hônen e Shinran. Hônen tornou-se convicto de que, nessa era de decadência generalizada, o homem se encontrava muito fraco e degenerado para salvar a si próprio. Por isso deveria demonstrar confiança absoluta no poder salvador do Buda Amida, por meio da recitação do nenbutsu (Namu Amida Butsu ou “Eu tomo refúgio no Buda Amida”), garantindo assim o renascimento no Paraíso de Amida (Terra Pura). Outros líderes budistas dos

12

Não há consenso, no meio budista e acadêmico, sobre a data da morte de Shakyamuni (Yamada 1960: 459). “De acordo com sutras encontrados no Tibete, ele morreu em 2422 a.C.; de acordo com sutras preservados na Birmânia [atual Mianmá], o ano foi 422 a.C.. Budistas na Índia, Birmânia e Tailândia aceitam o ano de 544 a.C.” (Murata 1971: 34).

movimentos reformistas do Período Kamakura também debatiam a forma de Budismo mais apropriada para salvar o homem nessa época de degeneração.

A percepção de se estar vivendo nos Últimos Dias da Lei não levou à busca freqüente de um ideal milenarista, ou seja, à busca da destruição da ordem vigente e sua substituição por uma nova e perfeita ordem. A grande maioria da população buscava novos métodos espirituais para se obter a iluminação (salvação), que fossem apropriados para a era de mappô. Daí o forte apelo da devoção ao Buda Amida e ao bodhisattva Miroku, que prometiam o renascimento num paraíso búdico (no caso dos dois), ou que implantaria o “milênio” na terra (no caso específico de Miroku).

Nesse ambiente social e religioso, Nichiren viveu e desenvolveu seu ensinamento milenarista, que segue uma direção própria, na medida em que trata não somente da salvação individual pós-morte e fora deste mundo, mas sobretudo da liberação dos sofrimentos ainda nesta existência e a restauração de uma espécie de “idade de ouro” na Terra.

Uma fonte particularmente importante para as idéias de Nichiren foi o capítulo quinze do Sutra de Lótus (“Emergindo da Terra”), que descreve o Buda Shakyamuni como “o Senhor, isto é, como budeidade absoluta, que é o ‘pai’ de todos os mundos e budas futuros” (Ingram 1977: 211). Ao tomar a forma do Buda histórico Gautama, ele permitiu que todos os seres vivos pudessem atingir a iluminação. Em outros termos, a forma humana de Shakyamuni (nirmânakâya) foi apenas uma manifestação limitada de sua Essência ou dharmakâya (jap., hosshin ou “corpo da lei”).

Portanto, uma vez que a Verdade (



kyamuni) é eterna, a pessoa histórica que incorpora esta verdade e a ensina aos seres sensíveis é “eterna”, de modo que Mestre e discípulo possuem um parentesco original e “primordial”. É por esta razão que os “Bodhisattvas emergindo da terra” mencionados no capítulo [quinze] são os “discípulos originais” de



kyamuni, cuja missão é propagar o dharma para todos os seres sensíveis durante a era de mappô, por meio de “expedientes habilidosos”. O Bodhisattva específico, a quem é dada essa missão, é Jôgyô Bosatsu (em sânscrito, Vi    ac



ritra-bodhisattva) ou o “Bodhisattva da Conduta Eminente”. O ponto a ser enfatizado aqui é que Nichiren gradualmente veio a acreditar que era uma encarnação de Jôgyô Bosatsu, visto que somente ele, acreditava, estava pregando o Sutra de Lotus como o único meio de

salvação, em uma maneira apropriada às capacidades dos seres vivos desta época degenerada (Ingram 1977: 212).

A visão escatológica da história incorporada pelo Budismo japonês é fundamental para o surgimento do nichirenismo, visto que na era de mappô haveria de surgir um salvador, uma reencarnação do Buda eterno, cujo ensino diferente do de Shakyamuni seria capaz de conduzir toda a humanidade à redenção e à iluminação. A Nichiren Shôshû e a Sôka Gakkai vêem em Nichiren o cumprimento dessa profecia.13

Para Nichiren, o mundo em que vivemos é o pior em todo o universo, por reunir as piores pessoas. O Japão, em particular, seria uma país povoado por pessoas “que caluniam a Verdadeira Lei”. Os seguidores de Nichiren seriam pessoas que, por vontade própria e por compaixão pelas outras pessoas, decidiram nascer neste mundo para pregarem os ensinamentos do Sutra de Lótus (Ikeda 1991: 26-27).