• Nenhum resultado encontrado

PARTE I: O LUGAR E O LUGAR NA COMUNICAÇÃO

1.3. O TERRITÓRIO

O conceito de território é, talvez, dentre os três propostos para análise neste capítulo, aquele que carrega uma quantidade maior de definições. A forma mais comum de associação da palavra “território” é em relação à “pátria”, pois compreende a extensão territorial ou superfície terrestre daquele país, condição necessária para sua existência, ao estabelecer suas fronteiras, na qual o Estado exerce a soberania dentro de uma ordem jurídica estatal. No entanto, em todas as diferentes definições, existe uma característica que é comum a todas elas: o controle.

Se fizermos uma análise etimológica da palavra “território”, veremos que ela tem uma relação estreita com a palavra “terror”26, apesar de não assumir exatamente

este significado. É através do medo, da ameaça, da intimidação que as fronteiras dos territórios são criadas seja se tratando da extensão territorial dos países que defendem suas fronteiras através da força militar, seja em relação ao animal que delimita seu território defendendo-o a qualquer custo. Para tanto, estratégias são criadas para manter estas fronteiras intactas e livres de invasões não autorizadas por aqueles que controlam o território. A vigilância e o monitoramento são práticas que visam a controlar o fluxo de entradas e saídas dos territórios. Não é muito difícil percebermos como essas práticas estão diretamente associadas ao nosso cotidiano quando nos lembramos das senhas. No mundo digital, a necessidade de uma senha se tornou uma aliada no controle dos territórios, permitindo a vigilância e o monitoramento em caixas eletrônicos, bancos, transações com cartão magnético, sites, computadores pessoais, infra-estruturas de redes e outras infinidades de aplicações. Alguns prédios comerciais e, até mesmo em instituições de ensino, estão implantando um controle de acesso mediante cartões magnéticos e catracas que impedem a entrada de pessoas não autorizadas.

É interessante notar a relação do processo de territorialização com o processo de habitar e construir de Heidegger, uma vez que, quando decidimos levantar paredes e colocar portas e janelas, edificando coisas no espaço, estamos claramente marcando nosso território, delimitando fronteiras e criando espaços privados que, segundo De Certeau (2002, p. 203), são descritos como sendo:

26 A origem da palavra “território” vem do latim territorium que significa distrito, domínio, terra ao redor de uma cidade. Outras correntes dizem que vem de terreo, territo, que quer dizer atemorizo, temorizar, o que não são divergentes a partir do momento que, para dominar, é necessário gerar, no dominado, uma parcela de terror, principalmente quando se quer manter este domínio.

O território privado onde se desdobram e se repetem dia a dia os gestos elementares das “artes do fazer” é antes de tudo o espaço doméstico, a casa da gente. De tudo se faz para não “retirar-se” dela, porque é o lugar “em que a gente se sente em paz”. “Entrar-se em casa”, no lugar próprio que, por definição não poderia ser o lugar de outrem. Aqui todo visitante é um intruso, a menos que tenha sido explícita e livremente convidado a entrar.

Guatarri e Rolnik também compactuam com esta forma de entender o território privado como sendo um “sistema percebido no seio do qual o sujeito se sente 'em casa'” (apud HAESBAERT e BRUCE, 2002, p. 6) e, complementam tal conceito, afirmando que “o território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos” (idem, p. 06).

O processo de territorialização, portanto, está relacionado com a forma como se materializa o território. Aliado a este processo de territorialização temos, numa outra ponta, o processo de desterritorialização, que já foi citado anteriormente como sendo um processo análogo ao de desculturização (SANTOS, 2004) em que os migrantes passam a estabelecer residência em outro lugar que não o seu, como no caso daqueles que são do interior para a cidade grande. Os conceitos de territorialização e desterritorialização têm sua origem na obra de Deleuze e Guatarri, “Mil Platôs” de 1980. Para entendê-lo, no entanto, precisamos, primeiramente, compreender o conceito de território trabalhado por estes autores. A formação de um território está vinculada a um movimento mútuo entre agenciamentos que podem ocorrer de duas maneiras: o agenciamento maquímico dos corpos e o agenciamento coletivo de enunciações.

O primeiro, como o próprio nome sugere, é resultado da relação que se constrói entre os corpos das pessoas, dos animais e os corpos cósmicos, e também entre estes e a sociedade. Um exemplo do agenciamento maquímico é o agenciamento feudal no qual se misturam todos os tipos de corpos em torno de uma nova forma de economia baseada na agricultura de subsistência e o escambo, a troca de mercadorias, definindo a feudalidade. Já o agenciamento coletivo de enunciação está relacionado a um “regime de signos, a uma máquina de expressão cujas variáveis determinam o uso dos elementos da língua” (DELEUZE E GUATARRI apud HAESBAERT e BRUCE, 2002, p. 7) em contraponto à subjetivação

de um discurso com base nos saberes e exercício do poder individual, mas, sim, compartilhado. Um exemplo seriam os brasões das famílias que simbolizavam, de forma coletiva, o domínio de um território.

Segundo Deleuze e Guatarri, o processo de desterritorialização não é um processo único e isolado, pois ele implica um processo imediato de reterritorialização. A desterritorialização acontece quando os agenciamentos deixam de existir por algum motivo, mas logo em seguida outros agenciamentos surgem iniciando um novo processo de reterritorialização, sobrepondo o antigo território que foi desterritorializado. Isso não significa, no entanto, uma substituição dos territórios. Com a reterritorialização, um novo território surge a partir de novos agenciamentos. No cotidiano, é possível verificar esse processo de des-reterritorialização, vejamos nesse exemplo dado por Haesbaert e Bruce (2002, p.13) sobre a vida de um operário de uma fábrica de automóveis:

No decorrer do dia, ele atravessa basicamente dois territórios - o território familiar e o território do trabalho. Em cada um deles existem agenciamentos maquímicos de corpos e agenciamentos coletivos de enunciação muito distintos. Na família os corpos estão dispostos na figura do Pai, da Mãe e do Filho. Um triângulo hierárquico, imerso na castração, no Édipo e nos decalques — o filho sendo decalcado e remetido ao pai; esquadrinhado e decalcado na cama e nos braços da mãe; o regime alimentar e o regime sexual a que nos referimos antes são agenciamentos que compõem a família — vergonha do corpo, sexualidade oprimida, hora do jantar, todos juntos na mesa. Na fábrica, os corpos são outros, os agenciamentos coletivos de enunciação são outros. E um corpo técnico-científico, um aparato disciplinar, controle do tempo e do corpo, hierarquia de funções; são enunciados diferentes — é a cor verde para aumentar a produção, é a sirene que avisa a hora de parar o trabalho.

Retomando o exemplo do mundo digital, quando nos referíamos ao controle gerado a partir das senhas exigidas em bancos, sites, etc., existe outro processo de des-reterritorialização que recentemente tem levantado questões entre os teóricos da cibercultura. Como afirma Santos (2004), o aumento da circulação de informação e o poder da comunicação em rede são fatores primordiais no processo atual da globalização. Atualmente vemos uma reconfiguração de fronteiras em várias ordens: cultural, política, econômica, social em decorrência desta pressão gerada principalmente pelo fluxo de informação que trafega nestas redes mundiais de comunicação. É o que Massey (2001) chamou de “permeabilidade” das fronteiras, característica que não pode ser verificada nos meios de comunicação de massa,

pois não permitem um livre tráfego de informações (veremos como isso ocorre no capítulo sobre a Comunicação Situada) diferente da comunicação digital que surge com o advento dos computadores e da rede mundial que é capaz de interligar milhares de máquinas dispostas nas mais longínquas distâncias. É nesse instante que surge a ideia de um território informacional (LEMOS, 2006), fruto das reterritorializações que ocorrem no ciberespaço ou o espaço estriado da cibercultura, onde é possível criar diferentes produtos como blogs, sites, podcasts, chats, redes de relacionamento, mas, ainda assim, sujeitos ao controle do Estado comum em um espaço estriado. No entanto, na teoria de defendida por Lemos (2006), o ciberespaço, por suas características de um território informacional repleto de linhas de fugas, geram outros produtos como softwares livres, compartilhamento de dados, comunidade virtuais, está sujeito, também, a processos de “des-re-territorialização”: “O ciberespaço é um exemplo desse fenômeno: ele nasce como espaço estriado, território controlado pelo poder militar e industrial e vai sendo, pouco a pouco, des- re-territorializado por novos agenciamentos da sociedade (tensões de controle e acesso informacionais)” (LEMOS, 2006, p. 7).

Vimos anteriormente como ocorrem os espaçamentos entre os lugares através dos pontos fixados constituído por relações sociais por onde atravessam fluxos das mais diversas ordens. Mas, como se dão estes processos de territorialização e desterritorialização em meio aos conceitos de espaço e lugar visto anteriormente? Para exemplificar esta relação, iremos recorrer ao fato considerado histórico na trajetória do crime organizado no Rio de Janeiro: a expulsão dos traficantes do Complexo do Alemão em novembro de 2010 pela conjunção de diferentes forças militares. Até então, o Complexo do Alemão era um lugar formado por 13 favelas que abrigam quase 20 mil domicílios onde habitam mais de 65 mil pessoas numa área de quase 3 km². Este lugar é conhecido como uma das regiões mais perigosas e violentas do Rio de Janeiro e concentra quase 40% dos crimes cometidos na cidade.

A operação militar que se estabeleceu no final de 2010 para livrar os moradores do tráfico, diminuindo a violência neste lugar, visando uma reterritorialização a partir das ações de cerco. Os traficantes tentavam manter o território estabelecendo fronteiras através de carros atravessados nas ruas, pneus incendiados criando cortinas de fumaça, no intuito de limitar o avanço dos militares posicionados e prontos para invadir o território. Para todos os efeitos, antes da

ocupação dos militares, aquele lugar fora territorializado pelos traficantes, estabelecendo regras e normas de conduta dentro do Morro, controlando as fronteiras e os fluxos. O processo de reterritorialização pode ser constatado nos depoimentos dos responsáveis pela operação, quando afirmam, no final da operação, que “a missão foi cumprida pela tomada daquele território”27.

Portanto, podemos afirmar que este lugar, o Morro do Alemão, com suas 13 favelas, onde as pessoas habitam e por ele criam um sentimento de pertencimento, era um território outrora controlado pelo tráfico. As cenas na televisão mostrando moradores estendendo panos brancos nas janelas das casas com o pedido de paz, e aqueles que se recusavam a abandonar suas casas com medo de perder a sua casa ou as suas “coisas” demonstram uma das características que definem o lugar: a identificação e reconhecimento das coisas que lhes pertencem. O lugar, antes território dos traficantes, passa a ser um território dos militares, que estabelecem as suas regras e procedimentos (revistas nas casas e dos moradores, etc.). Contudo, o processo de reterritorialização pode acarretas em conflitos e, neste caso, quando se estabelece um conflito, rapidamente, os dois lados passam a se posicionar permitindo um confronto direto entre eles. Este embate fica tão evidente que em alguns momentos deixam de existir os moradores do lugar para apenas fazer parte do cenário, os “bandidos” e os “mocinhos”. Ou seja, como vimos anteriormente, o significado da palavra “território” tem uma relação com o “terror”, essa sensação que criar medos e estabelecer fronteiras para que seja então possível o seu controle, um território controlado. Só assim, depois do controle do território por aqueles que fazem parte do “lado do bem”, a vida volta ao normal revelando aqueles moradores do lugar que não eram percebidos durante a operação, mas que agora percebem o estrago de serem confundidos com o “lado do mal” naquele lugar.

O território, portanto, é entendido, neste trabalho, como sendo aquele lugar por onde passar fluxos de diversas ordens, mas que está sujeito a processos de territorialização e desterritorialização. Não há como dissociar estes dois termos, assim como não é possível separar “espaço” e “lugar”. No final das contas, o que irá determinar uma distinção entre estes termos são as relações que se estabelecem. No próximo tópico, utilizaremos o exemplo de uma ilha no oceano para melhor esclarecer as relações entre os termos, em que oceano é o espaço, a ilha é o lugar e

27 Trecho da entrevista coletiva concedida pelo Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, após o fim da operação.

uma casa na ilha é um território, mas esta não deixa de ser um lugar e ocupar um determinado espaço na ilha.

Documentos relacionados