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O território quilombola como território étnico

No documento timothyongaroorsi (páginas 44-46)

Mapa 6 – Localização da comunidade São Pedro de Cima no município de Divino

2 ABORDAGENS TEÓRICO-CONCEITUAIS: O TERRITÓRIO

2.1 DAS DIFERENTES CONCEPÇÕES DE TERRITÓRIO AO TERRITÓRIO

2.1.1 O território quilombola como território étnico

Dos sujeitos do campo brasileiro que utilizam lugares e territórios como abrigo ou hábitat, podemos destacar os povos e comunidades tradicionais. Cruz (2012) esclarece a origem deste termo a partir de dois contextos diferentes: um como categoria de análise (conceito socioantropológico) e outro como categoria de ação (ação política e luta por direitos). Foi na década de 1990 que houve a popularização do termo, principalmente a partir da consolidação da questão ambiental em nível internacional para “nomear, identificar e classificar uma diversidade de culturas e modos de vida que, historicamente, têm ocupado áreas agora destinadas à preservação e à conservação ambiental [...] [e no campo das lutas pelo reconhecimento] [...] dos direitos culturais e territoriais dos múltiplos grupos indígenas e autóctones” (CRUZ, 2012, p. 595).

No campo acadêmico o termo povos e comunidades tradicionais é tratado como categoria de análise teórico-conceituais de caracterização socioantropológica de diversos grupos e coletividades brasileiras. No Brasil, fazem referência a:

Povos indígenas, quilombolas, populações agroextrativistas (seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco de babaçu), grupos vinculados aos rios ou ao mar (ribeirinhos, pescadores artesanais, caiçaras, varjeiros, jangadeiros, marisqueiros), grupos associados a ecossistemas específicos (pantaneiros, catingueiros, vazanteiros, geraizeiros, chapadeiros) e grupos associados à agricultura ou à pecuária (faxinais, sertanejos, caipiras, sitiantes-campeiros, fundo de pasto, vaqueiros). (CRUZ, 2012, p. 595-596).

Evidenciando traços e semelhanças entre essas coletividades, Cruz (2012) destaca algumas características comuns identificáveis: 1) relação profunda com a Natureza com uso comum dos recursos administrados por núcleos familiares, comunitários e/ou coletivos; 2) marcante relação com o território e a territorialidade, onde existe uma longa história de ocupação territorial marcada na ancestralidade, memória coletiva e sentido de pertencimento; 3) racionalidade econômico-produtiva centrada na unidade familiar ou comunal com atividades de baixo impacto ambiental, produção voltada para a subsistência e para as celebrações festivas e/ou religiosas, troca do excedente por itens não produzidos no local; relação parcial com o mercado capitalista e; 4) inter-relações com outros grupos da região de natureza cooperativa ou conflitiva, relações de outridade, alteridade e autoidentificação.

Dessa forma, ao observar o quadro de multiterritorialidades do Brasil, percebe-se que ele é composto por uma diversidade étnica que se configura numa diversidade de territórios étnicos. Segundo esta perspectiva, Anjos (2007) conceitua o território como

[...] um fato físico, político, categorizável, possível de dimensionamento, onde geralmente o Estado está presente e estão gravadas as referências culturais e simbólicas da população. Dessa forma, o território étnico seria o espaço construído, materializado a partir de referências de identidade e pertencimento territorial, e, geralmente, a sua população tem um traço de origem comum. As demandas históricas e os conflitos com o sistema dominante têm imprimido a esse tipo de estrutura espacial exigências de organização e a instituição de uma auto-afirmação política, social e econômica territorial. (ANJOS, 2007, p. 116).

O território étnico se forma através da memória coletiva da construção da identidade étnica, ou seja, a memória de uma origem comum. Esta identidade étnica é o que distingue o grupo de outros grupos, ou seja, através de relações de alteridade e outridade se dá coesão e significado ao grupo étnico (FERREIRA, 2009). Ao se desenvolver essas relações, valorizando o que faz o grupo ser diferente de outros e ao enfocar no que é socialmente efetivo, as diferenças acabam por adquirir um caráter étnico, uma identidade étnica que faz com que os grupos étnicos passem a ser vistos como uma forma de organização social (BARTH, 2000).

Reconhecendo os quilombos como grupos étnicos que conformam territórios étnicos, evidencia-se que os mesmos se organizaram de formas variadas e tem um papel importante na formação territorial do Brasil. Os territórios quilombolas, especificamente, se consistiam como movimento multiétnico de resistência, pois, diferente do que acredita o senso comum, não eram constituídos apenas por escravos fugidos, mas também por brancos europeus e indígenas, todos fugidos do sistema colonial (ANJOS, 2007). Caracteriza-se como um movimento que luta pelo direito ao reconhecimento das especificidades organizativas de reprodução sociocultural e pela reestruturação econômico-produtiva.

Em nível internacional e como resultado de um amplo e forte movimento social de luta por reconhecimento dos direitos dos povos tradicionais, a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2011) deu amparo legal para o processo de autoatribuição, autodefinição e garantia de direitos territoriais. Suas determinações foram incorporadas à legislação brasileira através da promulgação dos Decretos Legislativos nº 143 de 20 de junho de 2002 (BRASIL, 2002b) e nº 5.051, de 19 de abril de 2004 (BRASIL, 2004a). Dentre essas determinações se

inclui o direito à propriedade da terra, sendo essa entendida como o território-habitat necessário para a subsistência e reprodução cultural desses povos e determina a responsabilidade dos governos em cooperar com a proteção e preservação do meio ambiente desses territórios.

Os termos foram institucionalizados pelo Estado brasileiro no tocante a um conceito A partir das lutas dos movimentos sociais organizados, tem-se uma mudança do foco da reivindicação pela posse da terra para o reconhecimento das diferenças culturais, dos territórios e das territorialidades específicas desses grupos.

Percebendo o território constituído de multidimensões (econômica, política, simbólica e natural) inter-relacionadas em redes multiescalares, adentraremos no próximo tópico no tipo de território que é central no presente trabalho, a saber, o que é um território remanescente de quilombo. Pretendendo compreender a realidade em que se inserem os atores do território que é o objeto empírico desta dissertação, reconstruiremos o processo histórico de desenvolvimento do conceito de remanescente de quilombo e as mudanças ocorridas na legislação brasileira no que tange ao reconhecimento dos direitos constitucionais dessas comunidades, fruto de movimentos sociais organizados em escala nacional e internacional.

No documento timothyongaroorsi (páginas 44-46)