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O texto, sua produção, sua escritura e minha leitura

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3. O texto, sua produção, sua escritura e minha leitura

Dentre a literatura produzida na segunda metade do século passado que podemos classificar como narrativas que contêm a história do Brasil, destaca-se A Confederação Dos Tamoios, pelo aspecto literário e pela trajetória de seu autor, Gonçalves de Magalhães, reconhecido como o escritor da corte do Segundo Império, a voz literária do trono. Se havia uma "fala do trono", o discurso oficial com que cada

ano o Imperador abria as sessões da Assembléia Geral, havia também uma voz do trono, que se encarregava de fazer circular, interna e externamente, uma imagem altamente elogiosa do governo de D. Pedro. Gonçalves de Magalhães nasce em 1811, em 1832 publica Poesias e em 1833 parte para a Europa, de onde retorna apenas em 1837. Dessa viagem, resultaram sua adesão ao Romantismo, a formação de um grupo literário brasileiro em Paris, a publicação da revista Niterói e seu livro Suspiros Poéticos e Saudades, ambos de 1836. Aclamado no Brasil como o introdutor do Romantismo, dedica-se ao teatro, escrevendo duas tragédias.

"Em 1838 é nomeado professor de filosofia do Colégio Pedro II, mas já em 1838 se torna secretário de Caxias, primeiro no Maranhão e depois no Rio Grande do Sul, até 1847, quando entra para a diplomacia, sendo Encarregado de Negócios nas Duas Sicílias, no Piemonte, na Rússia e na Espanha, Ministro Residente na Áustria, Ministro nos Estados Unidos, Argentina, Santa Sé, morrendo em Roma no ano de 1882. Fora criado Barão em 1872 e, em 1874, Visconde de Araguaia. Amigo do Imperador, bem relacionado, muito cônscio do seu valor, foi a primeira figura na vida literária oficial até a publicação de 'A Confederação Dos Tamoios', quando Alencar, abrindo a polêmica famosa, promoveu a sua redução a proporções mais modestas."4

É importante ressaltar, no entanto, que, não obstante tal redução, A Confederação Dos Tamoios continua a figurar em todas as antologias literárias brasileiras e Gonçalves de Magalhães continua a ser conhecido formalmente como o introdutor do Romantismo no Brasil.

A Confederação Dos Tamoios, já vimos, é uma epopéia composta por dez cantos, que narra o episódio da confederação dos indios Tamoios na luta contra os portugueses em 1560, destacando-se o chefe Aimberê como símbolo da resistência ao invasor. Outras figuras de importância são Anchieta e Nóbrega, mediadores entre

Tamoios e portugueses, além, evidentemente, de catequisadores exemplares. Tibiriçá, o índio convertido ao cristianismo e portanto renegado pelos indianistas românticos, em A Confederação Dos Tamoios é elevado à condição de arauto da nova ordem social e religiosa, guia do selvagem na viagem em busca da verdadeira fé e do verdadeiro deus, à semelhança do percurso de Dante e Virgílio.

Na sua luta contra os portugueses, Aimberê, o herói do poema, se destaca como o modelo de homem íntegro, guerreiro valente e destemido, mas também amoroso filho e esposo. É sua dedicação filial que, em grande medida, desencadeia a luta dos Tamoios. Ainda que não seja esse o motivo da guerra, não deixa de ter seu peso na decisão do índio de lutar contra os emboabas que escravizaram e terminaram por matar seu velho pai. Uma das mais veementes críticas ao poema se baseia, precisamente, na fragilidade de tal motivação para o desencadeamento de uma guerra entre nações. Em realidade, essa é apenas uma das razões do ódio de Aimberê aos portugueses, ódio que se liga à questão de posse e primazia de ocupação da terra. Esposo de Iguassu, o casamento não se consuma devido à pouca idade da noiva, que morre na batalha final contra os portugueses, assim como Aimberê, que se atira ao mar com o corpo da amada, preferindo a morte à escravidão, inevitável após a derrota final dos Tamoios. Ao longo da poema, o narrador afirma, em inúmeros episódios, a pureza, beleza, suavidade e inteligência de Iguassu, convertida ao catolicismo por Anchieta, e que tenta ensinar aos companheiros a verdadeira fé.

São, ambos, personagens vistos com ressalva pela crítica literária, Aimberê, pelo modelo de índio americano que representa, Iguassu pelo de mulher européia. De fato, o índio de Gonçalves de Magalhães segue o padrão que encontraremos completo no indianismo romântico, o modelo de Chateaubriand, Rousseau e Fenimore Cooper, o índio americano que encosta o ouvido ao solo para escutar a aproximação de outros, que faz do crânio do inimigo o copo do qual bebe nos festejos, que se veste com as peles dos animais e, não raro, dos inimigos, que matou.

Iguassu, por sua vez, é o retrato da mulher européia, como define José de Alencar na sua crítica a A confederação dos Tamoios. Gonçalves de Magalhães, diz ele, não soube criar uma heroína, uma

"Eva indiana; ao contrário, suas índias poderiam ser mulheres de qualquer mundo, salões franceses, chineses, europeus..."

Para Alencar,a maior falha do escritor foi não ter criado nada de novo, ter escrito uma epopéia, ao invés de tentar criar uma nova forma de poesia, e além de tudo uma epopéia cujos heróis são fracos, sem pujança, esqueletos sem matéria.

Segundo a minha ótica, é exatamente nessa falta do novo que reside uma das principais propriedades de A Confederação dos Tamoios, falta que permitiu sua apropriação pelo imaginário colonial, elaborado, entre outras instâncias, pela instituição literária.

Se os personagens do poema são fracos enquanto heróis, se são arcabouços informes que Gonçalves de Magalhães não completou, no dizer de Alencar, segue-se que poderão ser completados segundo a necessidade ou o desejo do seu leitor. Iguassu não responde ao modelo de "índia selvagem e inculta, flor silvestre", mas sim aos modelos de arte que Gonçalves de Magalhães viu na Europa, corresponde ao modelo universal eurocêntrico de mulher, não é uma heroína diferente da mulher conhecida pelos europeus. A falta de "cor locat' do poema, outra crítica insistente, significa que se pode então dar-lhe a cor desejada, que o poema pode ser pintado a cada leitura com as cores que mais convierem ao leitor. O poema presta-se a qualquer localização e interpretação, é lábil o suficiente para que o localizemos segundo nosso desejo. A labilidade, longe de ser defeito, configura-se como a grande virtude desse texto, que permite a acomodação do desejo.

E, finalmente, consideremos a forma conservadora de epopéia, que, a

primeira vista, se contrapõe à mudança temática. Em realidade, o uso de uma forma canônica aproxima o poema do ouvido europeu, acostumado a escutar em épicos a

história do nascimento de nações. E é exatamente disso que Gonçalves de Magalhães está falando, do nascimento de uma nação.

Por meio dos dez cantos do seu poema, Magalhães apropria-se do discurso histórico e do conflito entre indígenas e colonizadores e os transforma em momento de fundação. O colonizador português torna-se o portador do novo, é a fúria que traz junto consigo a verdade da fé. Da mesma forma, o poeta utiliza o discurso literário para marcar, com a chegada da cruz e do império, o nascimento de uma nova raça, a do homem brasileiro, amálgama do que de melhor existe nos colonizadores e nos selvagens. A pureza e ingenuidade do índio serão despidas de sua incivilidade e selvageria, através da ação purificadora do saber e da lei. É a chegada da civilização a essa terra Brasil, mãe acolhedora e fértil, paraíso tropical terrestre.

Esse paraíso, Gonçalves de Magalhães descreve em dois momentos: o primeiro é o da colonização, o paraíso religioso, o Eden que une a fé à espada. Uma vez alcançado, esse paraíso começa a se transformar pela ação de seus habitantes e se institui como um paraíso laicizado, tendo o trabalho e a indústria como ofício, como profissão de fé.

Nessa profisão de fé, o mito do progresso é o novo credo, e Gonçalves de Magalhães o assume, fundando um Brasil que se mostra aberto a todos que aqui vierem em busca de trabalho, atraídos por uma nação organizada segundo os princípios de um Estado moderno, que assegura ao homem o direito à propriedade e ao que plantar, com as leis e as garantias de uma sociedade capitalista.

Esse paraíso do modernismo, que lê o moderno como o atual, associando-o ao progresso e, portanto, à felicidade, está distante do conceito de modernidade que Baudelaire a essa época já discutia em Paris e que consistia, para ele, em retirar da moda o que ela pode conter de poético no histórico, retirar o eterno do transitório, ou seja, ter juntos a historicidade e o historicismo. Ao suprimir de seu poema a historicidade, Gonçalves de Magalhães anuncia a fundação da nação, declarando que desse momento em diante existe Brasil, o antes sendo um não-tempo.

É esse Brasil, fundado segundo os preceitos de uma moderna organização, o Estado definido sob o signo da Constituição e seus cidadãos definidos sob o signo da propriedade privada, que será divulgado através da publicação de A Confederação dos Tamoios, cuja primeira versão, de 1856, mereceu uma edição imperial e foi dedicada "A Sua majestade o Senhor D. Pedro IP'. A chancela imperial fica assim configurada, bem como a chancela literária e diplomática. São essas marcas que nos permitem perceber o aparelho social que produziu e conferiu credibilidade ao poema, através de sua existência autorizada.

O aparelho ideológico que produziu A Confederação dos Tamoios se mostra no discurso fundacional do poema, enquanto as condições de reconhecimento desse discurso são garantidas pelo poder outorgado através da chancela imperial ao autor e à obra, que se universaliza pela canonização, estratégia que pretende encobrir as marcas do sistema que a gerou.