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3. A viagem do desejo

Dois italianos separados por uma diferença de mais de 30 anos de idade, com trajetórias familiares e sociais muito diferentes, descobrem o Brasil no século passado e o relatam a seus conterrâneos através da tradução de A Confederação dos Tamoios de Gonçalves de Magalhães. "Por que?" soa como a pergunta inevitável, que traduzo como a descoberta do desejo desses homens.

Ceroni era militar de carreira e por opção, carreira que abandonou "para não

lutar sob bandeira inimiga da sua pátria". Junta-se às lutas pela independência e

unificação da Itália, é preso e exilado. Anistiado, em 1848 reune-se aos combatentes pela libertação da Itália, toma-se Comandante dos Voluntários de Valcamonica e Valtellina. Depois do armistício Salasco, retira-se para o Piemonte. Tornando à

Toscana, participa das lutas de 49. "Com a queda de Roma, e com ela toda

esperança de ressurgimento italiano", Ceroni volta a Torino com a família,

permanecendo na vida civil até 59. Eis Garibaldi organizando sua marcha das camisas vermelhas e, com ele, Ceroni, que participa ativamente da luta armada. Sua biografia é repleta de informações sobre os anos subsequentes de campanha pela unificação italiana, até sua aposentadoria em 1868, concedida pelo rei Vittorio Emanuele II, "depois de haver servido cerca de 36 anos à sua pátria". O desejo de Ceroni era uma Itália independente e unida, sob o comando de um rei valoroso. Em 1857, quando traduziu A Confederação dos Tamoios, seu sonho de Reino de Itália tinha sofrido um grande revés. Os ideais do "Risorgimento" tinham fracassado, junto com os intelectuais italianos que haviam participado ativamente desse movimento. Vittorio Emanuele era rei apenas do Piemonte e o sonho de uma nova Itália parecia perdido.

Ceroni conhece Gonçalves de Magalhães, lê A Confederação dos Tamoios e descobre um país que serve aos seus sonhos e projetos. Um país jovem, unido, um Reino, governado por um monarca patriarcal, que preza e defende as artes, as ciências e as letras. Um país moderno, pronto para participar do novo mundo que se articula na Europa. A Itália está dividida e subjugada e Ceroni se sente irmanado ao país que tem "uma epopéia de povo e liberdade"', proclama-se "humilde e obediente

servo" do monarca estrangeiro, preenchendo assim a lacuna da sua condição

original.

O desejo de Ceroni de uma pátria e um rei realiza-se na viagem pelo Brasil de Gonçalves de Magalhães, que ele conhece e atua através da tradução de A Confederação dos Tamoios.

Stradelli, por outro lado, filho de nobre família lombarda, sonha com uma vida de viagens pela África, com ser explorador, geógrafo, etnólogo. Substitui a África pelo Brasil, estuda topografia, farmácia e fotografia. Conhece a homeopatia.

"0 Brasil soa-lhe aos ouvidos como um clangor. O rio Amazonas, povoado de lendas, de histórias, de encantamentos, é a suprema atração. Irá para o Brasil.1,29

Este país que virá finalmente conhecer, ele já o concebera simbolicamente. A Europa desenvolvera um imaginário colonial, sobre o qual Stradelli elaborou seu imaginário de Brasil, tendo como centro a Amazónia, sua cidade mental, um conceito desenvolvido por Maria Corti em um texto intitulado La città come luogo mentale30. A cidade como lugar mental é uma construção civil nova, cultural e mental, que não coincide com a realidade citadina observada por um espectador real ou hipotetizável. Não é necessário que tal cidade seja fisicamente conhecida; é o ponto de vista, não a geografia, que determina a fisionomia do objeto descrito, que pode estar ausente. Esse ponto de vista, a leitura que se faz de uma cidade, evidentemente simboliza a leitura do mundo à qual ela pertence. Como o mito, o lugar mental pertence ao coletivo e conforme a identificação de valores positivos ou negativos com a leitura de mundo da qual é símbolo, a cidade será igualmente valorizada, de forma positiva ou negativa, nunca neutra. Stradelli concebe sua cidade mental a partir do imaginário coletivo europeu sobre o paraíso tropical, preparando-se para encontrá-la.

Chegando ao Brasil em 1879, viaja pelos afluentes do Amazonas, sobe e desce rios, conhece tribos indígenas, participa de expedições brasileiras. E tem um sonho: descobrir as fontes do Orenoco. E outro ainda maior: escrever e publicar o Vocabulário da língua geral, português-nheengatu e nheengatu-português. 0 Orenoco ele conhece, mas não suas fontes, sonho de tantos outros, antes e depois dele. O Vocabulário, concluído em 1920, é publicado em 1929, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, três anos após sua morte em um leprosário de Manaus.

Em 1886, Stradelli viaja à Europa e apresenta alguns desenhos brasileiros - inscrições indígenas - no VI Congresso Internacional de Americanistas, reunido em

^CASCUDO.C. Em memória de Stradelli.op.cit. p. 19

Turim. Seu volumoso material sobre o país, coletado ao longo da vida, integra a Exposição Colombiana de Genova em 1892. Sua coleção de pássaros e coleópteros está no museu de Londres. Suas expedições científicas foram patrocinadas e impulsionadas pela "Reale Società Geografica Italiana" e o relato dessas viagens foi publicado pelo Bolletino da mesma Sociedade. Assim, um pouco do seu particular mundo foi sendo dado a conhecer aos europeus.

Ao viajar para o Brasil, Stradelli vem para o paraíso da sua imaginação. Explorador entre os índios das selvas brasileiras, escreve o sonho dos românticos nos mapas, nas lendas, nas histórias, conhece a vida entre selvagens que se assustam com fotografias e o fazem seu deus. E descobre a linguagem: traduzir

esses selvagens para a civilização, criando um dicionário. Romanticamente

naufragado, depara-se com uma outra parte do Brasil, ao ler A Confederação dos Tamoios. Traduzir os índios para os brasileiros é fascinante, como passa a ser o traduzir os brasileiros para a Itália.

O Brasil era a terra dos sonhos, ainda precariamente relatada na Itália. O desejo de Stradelli se realiza na viagem, que ele traduz no texto. O texto em italiano não é uma tradução do texto de Gonçalves de Magalhães, e sim uma nova escritura desse texto, realização do desejo de tradução de um novo país. Maior do que esse, entretanto, era seu desejo de viajar ao encontro da cidade mental, na qual viveu a maior parte de sua vida.

Em ambas as traduções e para ambos os tradutores, o que lemos é, nos textos e além dos textos, a tradução do desejo na viagem. É o desejo viajando pelos textos. Para um, o desejo de participar da fundação de sua pátria unificada e moderna. Para outro, o desejo da aventura e da emoção de testemunhar o nascimento de uma nação, surgida no espaço e no tempo da sua cidade mental. Nos dois intelectuais, os traços dos cavaleiros medievais, a lutar contra os inimigos da pátria, as doenças, a miséria e, em ambos, a crença na possibilidade de uma linguagem única, na Itália e no Brasil.