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O trabalho com a atividade epilinguística no ensino de língua portuguesa

2.6 A atividade epilinguística

2.6.1 O trabalho com a atividade epilinguística no ensino de língua portuguesa

A teoria proposta por Culioli não se debruça sobre a questão do ensino de línguas, embora seja uma teoria profícua para esse estudo. Desse modo, vários estudiosos, aqui no Brasil, que seguem seus estudos fizeram, e fazem, a articulação entre a TOPE e o ensino de língua.

Na prática do ensino de línguas, encontramos muito frequentemente atividades que priorizam as análises tidas como linguísticas e metalinguísticas. Cumpre-nos ressaltar que nessa última modalidade nem sempre os alunos têm o aproveitamento esperado, visto que a separação das atividades de léxico, gramática e produção textual dão a falsa impressão de que a língua é composta de partes independentes. Dessa forma nenhuma reflexão do professor é completa, deixando lacunas nos alunos que tendem a aumentar com o passar dos anos escolares.

Possenti (2007 p, 92) quando nos diz que “aprender uma língua é aprender a dizer a

mesma coisa de muitas formas” já adentra os domínios da epilinguística, pois visa a levar o

aluno a manipular o texto de diversas maneiras e de forma consciente, já no nível da metalinguagem. Tais atividades não têm a necessidade de serem técnicas, mas significativas,

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Texto original: (...) les gloses épilinguistiques forment une bonne partie de notre discours quotidien et jouent

un rôle important dans le discours explicative d’un informateur qui veut faire saisir le sens d’une phrase dans une langue étrangère ou la signification d’un énoncé mal interprété. Mais, on neglige presque toujours ces gloses épilinguistiques alors qu’elles sont une précieuse source de renseignements linguistiques et, à leur manière, constituent um système de réprésentation interne à la langue, c’est-a-dire une metalangue non totalement contrôlable. (Culioli, 1999b, p. 74)

de modo que a cada mudança do texto o aprendiz identifique os processos formadores do significado em questão.

Devemos entender que toda a tentativa dos alunos, por mais distante que esteja do esperado, é válida e correta, porém ao professor cabe a sensibilidade de criar situações que façam os aprendizes perceberem uma melhor, ou mais adequada forma de dizer. Às atividades epilinguísticas não interessam todos os contornos e polarizações do ensino tradicional, mas interessam os caminhos percorridos entre o que havia sido rotulado de incorreto e que se firmou, pelo menos naquele momento, como correto ou mais adequado.

O ensino de línguas pauta-se sobre os dois tipos de atividades mencionados no início deste texto, além das atividades epilinguísticas. É imprescindível a distinção entre elas. Segundo Franchi (1988), as atividades linguísticas constituem-se do exercício pleno, circunstanciado, intencionado e com intenções significativas da própria linguagem. Nesse contexto, as atividades linguísticas ocorrem em toda e qualquer interação do falante ou do aluno. Assim, essas atividades são reproduzidas na escola.

As atividades epilinguísticas operam diretamente sobre a linguagem, por meio das escolhas do falante dentre as formas linguísticas fornecidas pela língua – a atividade de parafrasagem, além das comparações e experimentações que de inconscientes tornam-se conscientes no momento em que se realizam no discurso. São essas atividades, que quando praticadas continuamente, levam os alunos às atividades de análise metalinguística. Essas últimas, agora, conscientes e analisadas criticamente. O nível epilinguístico é alcançado apenas por meio do metalinguístico, cabendo ao professor ser/estar sensível às minúcias presentes nos enunciados dos alunos para, a partir delas, conduzir o conhecimento linguístico dos discentes. Cabe ao professor ainda aceitar as variadas formas elaboradas pelos alunos e estar atento para perceber os momentos em que essa atividade está se manifestando para então trazer a reflexão do aluno para o nível da metalinguagem.

Tendo em vista os objetivos expressos nos PCNS (1999) de promover os estudantes na conquista da competência comunicativa, e consequentemente, discursiva, linguística, pragmática, textual, intertextual, a prática tradicional tem se mostrado pouco produtiva. Para não chegarmos ao extremo de dizer que tem fracassado. O ensino tradicional exige do aluno a conquista de um conhecimento metalinguístico que nem sempre ele atinge ou está disposto a atingir. Isso porque os aprendizes não estão interessados em estudar regras que apenas transmitem a ideia de que eles não sabem a língua que falam.

Para mudar essa situação, Conceição (2009) diz ser necessário dispor de conhecimentos sobre o funcionamento da língua, dos textos, sobre a base em que se constrói a

significação. A autora também coloca a criatividade como parte integrante da faculdade da linguagem. Observando essa criatividade surge o interesse de explicitar como se cristaliza a significação de que lançam mão os alunos produtores de textos. Com essa visão de linguagem, concebemos que todo enunciado, falado ou escrito é criativo, visto que é uma atividade de representação linguística, e como consequência disso não há como um falante não saber sua língua materna. A citação abaixo embasa nossas considerações sobre a criatividade.

(...) há atividade criativa mesmo quando a linguagem se sujeita a suas próprias regras e há criatividade na construção das expressões mais simples e diretas em cada um de nossos atos comunicativos. Há criatividade até quando falamos e nos servimos de linguagem no silêncio da reflexão em que reorganizamos os construtos anteriores da experiência. (FRANCHI, 1988, p.13)

A atividade epilinguística constitui-se num processo mental invisível, ou seja, não é possível a acessarmos facilmente, apenas na sua materialização por meio dos enunciados orais ou escritos da língua.

Segundo Franchi (1988), no trabalho com atividades epilinguísticas, as classificações de palavras, morfológica ou sintaticamente, são dispensáveis, assim o termo “gramática” remetendo a sistema e a ideia de uma metalinguagem representativa da nomenclatura gramatical não têm espaço. Conhecer o sistema, sua nomenclatura e organização é função do professor que deve ser capaz de fazer a ponte entre o material linguístico trazido pelos alunos e a norma, fazendo multiplicar as formas de expressão às quais os alunos têm conhecimento. Segundo o autor citado acima, nem sempre “se trata de “aprender” novas formas de construção e transformação das expressões; muitas vezes se trata de tornar operacional e ativo

um sistema ao qual o aluno já teve acesso fora da escola” (p.37). Acreditamos que com a

sistematização o aprendiz será capaz de incorporar novas formas linguísticas em seu repertório.

Geraldi (2002, p.64) defende que “quem aprendeu a refletir sobre a linguagem é capaz de compreender uma gramática (...) aquele que nunca refletiu sobre a linguagem pode decorar

uma gramática, mas jamais compreenderá seu sentido”. O autor ainda alerta para o fato de que

as atividades epilinguísticas são de extrema importância por tratar das aplicações que os falantes fazem das formas linguísticas, constituindo assim sua própria gramática, e não de uma metalinguagem cristalizada pela reflexão de outros.

Assim, as atividades epilinguísticas permitem uma potencialização no domínio da língua tanto pessoal quanto socialmente, já que fazemos amplo uso dela nas interações verbais

a que estamos expostos. Ainda podem ser conscientes ou inconscientes, em diferentes graus, variando de acordo com a finalidade a que são utilizadas.

Considerando o exposto até aqui, compreendemos que somente é possível acessarmos essa atividade por meio da, já mencionada, materialidade linguística, ou seja, do texto oral ou escrito. Segundo Conceição (2009), um texto, assim como sua produção, resulta da união

entre a “aparência” linguística e a “imanência” do conteúdo. Tal conteúdo emerge das

experiências dos sujeitos, suas ideologias, sua história, colocando no plano da expressão linguística o eu e o outro.

A teoria culioliana apresenta uma proposta que traz para o ensino uma oportunidade da elaboração de um projeto pedagógico significativo e relevante de aprendizagem da língua materna. Um ensino/aprendizado que se faça presente na vida dos alunos, não apenas na sala de aula, durante a aula de gramática.

Atividades de reconstrução e transformação textual evidenciam os processos formativos presentes na base da produção linguística do indivíduo. A abordagem epilinguística propõe uma reflexão sobre o texto, trazendo as minúcias da atividade de representação mental para o nível da metalinguagem. A ligação entre esses dois níveis promove, de acordo com Conceição (2009), o entendimento entre a capacidade do aluno de produzir textos e a de descrever os fatos linguísticos levados em conta em sua produção.

As atividades epilinguísticas são aquelas que suspendem o desenvolvimento do tópico discursivo (ou do tema ou do assunto), para, no curso da interação comunicativa, tratar dos próprios recursos linguísticos que estão sendo utilizados, ou de aspectos da interação. (TRAVAGLIA, 2006, p.34)

Travaglia (2006), citando Geraldi, (1993; p.24-25) exemplifica algumas situações em que é possível identificar tais atividades, são elas: hesitações, correções (auto ou heteroiniciadas), pausas longas, repetições, antecipações, lapsos, etc. Demonstramos abaixo alguns exemplos expostos pelo autor acima citado:

a) Achei o vestido de Maria lindo. Lindo não, maravilhoso.

b) Vamos fechar esta questão, pois o horário da reunião já acabou. c) Agora quem vai dar sua opinião é o João.

d) Não creio que a palavra mansão dê uma boa ideia sobre como é a casa de Pedro, creio que palácio seria melhor, daria uma ideia mais exata da realidade.

e) Não creio que ele seja um... um... um...mentiroso. f) Então ele trouxe o tou/o cavalo para o rodeio.

Ressaltamos, porém, que o conceito de atividade epilinguística que adotamos é mais complexo e amplo que o exposto pelo autor acima. Concebemos atividade epilinguística como a própria atividade da linguagem, manifestada nas marcas da língua, e operada exclusivamente pelo indivíduo, que é criativo e complexo.

A ideia de privilegiar o trabalho com o texto não incorre numa rejeição, ou inferiorização da gramática no ensino, trata-se justamente de um esforço por otimizar o ensino e a aprendizagem da língua.

Como consequência do ensino por meio das atividades epilinguísticas, chegamos a uma teoria gramatical consciente e operada exclusivamente pelos seus falantes, a atividade metalinguística. Isso proporciona, segundo Franchi (1988), um trabalho inteligente de sistematização gramatical. Podemos acrescentar ainda a habilidade de levantar hipóteses sobre a natureza da linguagem, do seu próprio discurso e das categorizações sintáticas.

Esse mesmo autor esclarece que não é possível saber quando, em que ano escolar os alunos terão essa consciência acerca da linguagem, mas o autor nos dá o como fazer. Trata-se do resultado de uma intensa manipulação dos fatos da língua, com vistas a sistematizar um

“saber linguístico” do qual o indivíduo (aluno) se aprimorou e se tornou consciente. O foco

dessa prática é sempre a questão da significação, não apenas numa representação do mundo, mas também numa ação pela linguagem, por meio e sobre os interlocutores, relacionando diretamente o modo e o estilo com que a usamos seus múltiplos recursos de expressão.

Tendo em vista que o objetivo do ensino de língua é levar o aluno a trabalhar com qualidade no nível da metalinguagem, as atividades epilinguísticas garantem exatamente a base de sustentação para a realização de tal trabalho, pois tornam conscientes os elementos em uso, no seu aspecto funcional.

As atividades metalinguísticas têm como objetivo fazer o indivíduo apropriar-se da língua, isso quer dizer, das suas possibilidades de descrição, categorias e regras. Isso, porém, só acontecerá quando todos os envolvidos no processo ensino/aprendizagem assumirem a difícil tarefa de abandonar a metodologia do classificar, do decorar, do rotular e lançarem-se na incessante reflexão dos processos formadores da significação. Sobre esses processos Rezende aponta

que dão/deem conta da importância da experiência singular para a percepção da forma dinâmica de construção de experiências e expressões, isto é, o trabalho de parafrasagem e desambiguização ou a atividade epilinguística. (REZENDE, 2008, p.99).

3 ESTUDOSLINGUÍSTICOSEGRAMATICAISSOBREAMARCAMAS

Na seção anterior abordamos temas que tratam do ensino de língua materna de modo geral, do conceito e das implicações das atividades epilingísticas em sala de aula, para, a partir desse momento, delimitarmos nosso campo de análise. Trata-se do estudo da marca

mas.

Trabalhando com essa marca, buscamos explicitar nessa seção, como ela é vista em diferentes quadros teóricos, para mais adiante apresentar uma proposta de ensino por meio das atividades epilinguísticas.

Contemplando nosso interesse pelas construções articuladas por meio da marca mas, desenvolvemos uma pesquisa bibliográfica na qual elencamos o posicionamento de gramáticos e pesquisadores de diferentes linhas da linguística, como o funcionalismo. Iniciamos pelas considerações da gramática normativa, refletindo as implicações de tais ideias no ensino, bem como na própria gramática da língua.

Mesmo admitindo as várias possibilidades de ocorrência da marca mas, as abordagens funcionalista e descritiva, acabam por restringir seu uso por considerar o enunciado pronto, já estabelecido na situação de enunciação. Dessa forma a variação radical presente nas línguas, apontada por Culioli, é restringida, logo, deixa de ser variação e de ser radical. Trata-se de considerarmos a linguagem como indeterminada, passível das mais diversas variações de acordo com o sujeito que a opera, e com todas as interferências às quais tal sujeito pode estar exposto.

Assim, na seção que segue buscamos, em diferentes quadros teóricos, levantar a natureza das operações mais comumente desencadeadas pela marca mas, para a partir delas melhor visualizarmos os processos que surgiram na análise dos enunciados de acordo com a TOPE. Além de, no que tange a gramática normativa, compreender o motivo de muitas vezes ser difícil para os aprendizes lidar com a tradição gramatical.

Almejamos verificar quais são os conceitos e os processos considerados pelas abordagens elencadas acerca da conjunção mas e das construções adversativas.

Esperamos, por meio desse compilamento, deixar claro que o texto utilizado nas gramáticas normativas não dá conta da variedade de processos expressos pelo marcador mas, tornando-se (as gramáticas) para o ensino, além de um guia limitado, uma base metodológica que não promove o desenvolvimento linguístico dos alunos, nem desperta suas consciências metalinguísticas.

Primeiramente, tratamos da abordagem normativa, ou tradicional. Dizemos tradicional por entender que essa visão da gramática é tida como um guia, um manual para os falantes, e que pouco tem inovado nas suas considerações. Comporão a base de dados nessa abordagem obras de gramáticos conhecidos como Cegalla, Bechara, Cunha e Cintra dentre outros. Em seguida apresentamos os estudos de autores como: Maria Helena de Moura Neves, Ataliba de Castilho, Antônio Súares Abreu e Mário Perini. Esses estudiosos refletem o uso corrente dos mecanismos da língua, diferenciando-se assim dos processos tradicionais.

Como nosso objeto de interesse, nesta seção, corresponde aos estudos que relacionam ideias de valor adversativo, e, portanto períodos compostos por coordenação, o período composto por subordinação não será aqui esmiuçado por não corresponder à delimitação da pesquisa, porém, fazendo-se necessário para melhor compreensão do primeiro processo, traremos simplificadamente tais construções. Com o interesse pelos enunciados que relacionam ideias adversas, especialmente utilizando o conectivo mas, trataremos também os processos formativos e os aspectos semânticos dessa conjunção, assim, limitamo-nos a refletir sobre as orações coordenadas adversativas.