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O trabalho e o ser humano: entre o sofrimento e a dignidade

2. O TRABALHO, A CONSTUIÇÃO DO HOMEM E O TRABALHO DOCENTE

2.1 O trabalho e o ser humano: entre o sofrimento e a dignidade

Compreender o trabalho docente faz necessário repensar o trabalho, enquanto categoria de análise e sua articulação com a vida humana, no contexto mais amplo da sociedade. Nesse sentido, buscamos pontuar as mudanças no campo do trabalho que vêm ocorrendo com rapidez no mundo atual, onde a globalização e a informação se estendem por todo o planeta. ORGANISTA (2006) especifica que não somente houve transformações no âmbito do trabalho, mas também nas relações sociais. Nessa mesma perspectiva, NETO (2001) afirma que:

[...] as relações sociais atuais, consubstanciadas pelo sistema capitalista, arrancam e roubam parte de nossa essência humana, pois a alienação originada dessas relações impossibilitam que o trabalho e a produção do mundo material e espiritual sejam direcionados no sentido do engrandecimento do gênero humano. (NETO, 2001, p. 11-12).

O autor apresenta a quebra das relações impostas pelo mercado que desumaniza o ser humano e que promove relações sem conotação com o crescimento do humano. Assim, desumanizados e individualizados os trabalhadores, nas suas relações, perdem o vínculo e o campo de ação que se torna fértil para a violência. Corroborando com essa perspectiva, o sociólogo Bauman (1998-2004) afirma que vivenciamos uma sociedade em que as relações estão líquidas e, sendo assim, perderam a concretude.

Em relação ao trabalho, a perda de uma situação estável de emprego, para Harvey (2005), é crescente em todos os países, como também o enfraquecimento do poder sindical, que deixa suscetível uma gama de desempregados favorecendo regimes e contratos flexíveis de trabalho. Dessa maneira, uma situação nebulosa envolve os destinos do trabalho e do trabalhador que vem perdendo uma vinculação estável com o emprego.

No entanto, para melhor entender as novas relações no mundo do trabalho atualmente é oportuno fazer um giro na constituição do trabalho propriamente dito. Para isso, inicialmente, fomos buscar a raiz etimológica da palavra trabalho, que em latim aparece como labor, no sentido de cuidado, empenho, sofrimento, dor, mal, doença, enfermidade, desventura, desgraça e infidelidade. Para as línguas românicas, trabalho no

verbo latino vulgar tripaliar, tem o significado de um instrumento de tortura composto por três paus.

Nesse sentido, a raiz da palavra trabalho evidencia o esforço humano pela sobrevivência já que em cada empreendimento humano há desprendimento de energia física e psíquica que é sua força de trabalho. Diante desse esforço, da representação de tortura e de sofrimento que vem impregnada na palavra trabalho, por que teríamos nós humanos inserido-o em nossas vidas ?

Schwartz (1996) nos fala que o trabalho possui valor que é diferenciado ao longo do tempo histórico e cultural. Assim, a fabricação das ferramentas pelo homo habilis, que começou há 2,5 milhões de anos, modificou a sua maneira de viver a partir de então, permitindo uma nova configuração de organização social. O trabalho, nessa perspectiva, teria se iniciado com a Revolução Neolítica aproximadamente entre 9000 a.C. e 8000a.C. no Oriente Médio.

Como não perceber que cada um recorta a noção de trabalho segundo sua própria filosofia ou de filosofia, mesmo de sua ideologia, que a idéia segundo a qual se “inventa” alguma coisa no campo das práticas humanas tem algo de estranho e até de absurdo? (SCHWARTZ 1996, p.150)

O autor nos coloca que há múltiplas formas de entender e explicar o trabalho, que a partir de sua inserção em uma comunidade altera suas relações e suas configurações sociais e dessa forma, “ressignifica” o valor dessa atividade humana. Entretanto o trabalho, desde a antiguidade mantinha uma dicotomia com os ideais mais nobres.

Visto pela ótica do sofrimento o trabalho estava destinado àqueles que deveriam ser castigados e aos escravos. Em Platão (2003), cujo pensamento marcou a filosofia, definia que “educar é tornar ‘o olho da alma’ em direção ao mundo das Idéias, enquanto que o trabalho acorrenta a alma ao corpo e ao mundo sensível”. (CHARLOT, 2003 p.1).

CHARLOT, ao apresentar a concepção de trabalho no prisma platônico mostra que o sentido do trabalho na perspectiva de acorrentado e da dor o aproxima do sentido cristão presente em nossa sociedade.

Mas o trabalho tem a ambivalência de ser, a principio, o castigo divino - “Você comerá o pão com o suor de seu rosto” (BÍBLIA Gn 3, 19) - diante da desobediência da criatura humana e, por outro lado, ter um significado positivo:

O trabalho é um bem do homem — é um bem da sua humanidade — porque, mediante o trabalho, o homem não somente transforma a

natureza, adaptando-a às suas próprias necessidades, mas também se realiza a si mesmo como homem e até, num certo sentido, « se torna mais

homem».(IOANNES PAULUS PPII, 1981).

Essa encíclica pontua a positividade do trabalho. Em contrapartida, esse documento também alerta para a exploração e subjugação do ser humano diante do trabalho, que fere e despersonaliza a sua dignidade.

Retomando a caracterização do atual mundo do trabalho, a literatura nos mostra a situação difícil dos trabalhadores diante das relações impostas na contemporaneidade. Fidalgo (1999) e Fidalgo e Fidalgo (2003) demonstram que a lógica das competências estabelecida pelo mercado exige cada vez mais do trabalhador um desempenho aprimorado, alterando

[...] as relações de trabalho e que interferiria mais diretamente na objetividade e na subjetividade do seu indivíduo-trabalhador, a ponto de responsabilizá-lo pelo desenvolvimento ou não de suas potencialidades e de sua empregabilidade, sem, entretanto, assegurá-la. (op. cit, 2003, p.1).

Nesse sentido, Bauman (1998) afirma que a flexibilização no trabalho atingiu vários países de forma crescente e exemplifica que na França em 1970, 58% dos trabalhos tinha a conotação temporária ou de prazos fixos. Já nos Estados Unidos, em 1993, 90% dos trabalhos era por tempo parcial e sem os direitos trabalhistas. Assim, as relações com o trabalho e de trabalho estão subjugadas a um contexto maior em que as condições postas na atualidade pelo capitalismo selvagem em que vivemos são cada vez mais exigentes e pressionam o trabalhador.

No Brasil temos outros agravantes do país que está:

[...] sob a custódia da finança internacional e sem esboçar alternativas claras para sair da condição subordinada que assumiu na nova ordem mundial. A partir desse quadro, poderíamos desfiar um vasto repertório de exemplos que atestam as diversas conseqüências deletérias para os mundos do trabalho. (FIGUEIREDO, ATHAYDE, BRITO E ALVAREZ, 2004, P.7-8).

Diante do exposto fica difícil enxergar o trabalho como algo edificante. Mas por outro lado, como afirmou a autora Carreteiro em uma entrevista para os jovens: “todo o trabalho tem a sua positividade, qualquer que seja o trabalho você tem que ter criatividade para exercê-lo.” (op.cit., 2006, s/p).

Assim, a atividade do trabalho convive com todas essas contradições: ao mesmo tempo ser dor e ser cura, ser tortura e ser valor, ser:

[...] como uma atividade fundante do ser humano, mas também como um processo de alienação do trabalhador; como algo que possibilita a criação e a construção do sujeito, mas como algo que também desconstrói, desumaniza. (ARANHA, 2005, 94).

Assim, ao nos inserirmos na análise do trabalho e penetrar no âmbito de sua complexidade, da sua ambivalência.

É com um mundo tão crescentemente incerto que seus habitantes se debatem para lutar corpo a corpo, e é para viver em tal mundo que eles concentram as energias e desejam preparar-se, quando febrilmente as habilidades com que “tirem o melhor partido” de sua liberdade talvez não escolhida, mas real demais.”(BAUMAN, 1998, p.251).

Este autor, ao explicitar a incerteza como uma condição posta pela situação do trabalho atual e as fragmentações das relações, questiona os rumos da liberdade em seu livro O mal-estar da pós-modernidade ao indicar o enorme número de excluídos produzidos pelas atuais relações de trabalho, fato que interpela e reduz a liberdade de todos.

O mal-estar da contemporaneidade continua sendo a falta de liberdade, mas não apenas no âmbito do indivíduo, pois a falta de segurança e as incertezas do mundo do trabalho desestabilizaram as relações deixando-as fluídas, líquidas, (BAUMAN, 2004).

Essa insegurança no trabalho acarreta sofrimento do trabalhador que busca na sua ação a sua sobrevivência e mais do que isso, também sua identidade humana. Assim, a sociedade está vivendo o mal-estar em escalas diferenciadas, que subjuga sua existência pelas condições de trabalho, no trabalho e também na falta de trabalho. O mal-estar presente na vida do trabalhador solapa sua energia e traz sofrimento e doenças.

O trabalho na perspectiva marxista é compreendido como um processo dialético Marx (2004). Ele concebe o trabalho da seguinte forma:

O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da natureza dos meios de vida já encontrados e que têm de reproduzir. Não se deve considerar tal modo de produção de um único ponto de vista, a saber: a reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se muito mais, de uma determinada forma de manifestar sua vida, determinado modo de vida dos mesmos. Tal como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem, como o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção. (MARX, 1999, p. 27-28)

Essa afirmação de Marx deixa claro que o trabalhador se constitui em consonância com a sua atividade de trabalho. Dessa forma, ao se inserir num contexto de trabalho, o ser humano se transforma a partir dessa ação. Concordando com essa afirmação e ampliando-a Schwartz (1996) nos apresenta uma dimensão de construção humana do ser que trabalha. Dessa maneira, por mais prescrito que seja um trabalho, o trabalhador altera sua condução e cria sua dinâmica de ação para a realização de uma atividade.

Schwartz (2000) nos fala sobre o uso de si e sobre usos dramáticos de si que envolvem a maneira como o trabalhador situa-se diante do trabalho, as escolhas, as possibilidades de uma ação mais ou menos autônoma do mesmo. Assim, o trabalhador não é visto como um ser passivo diante do trabalho, que o tortura e escraviza, mas que tem sempre um espaço de criação e de renormalização.

Toda forma de atividade em qualquer circunstância requer sempre variáveis para serem geridas, em situações históricas sempre em parte singulares, portanto escolhas a serem feitas, arbitragens -às vezes quase inconscientes- portanto, o que eu chamo de “usos de si”, “usos dramáticos de si”. Simplesmente, em nossa época, é verdade que a forma do trabalho como emprego ou mercadoria é, de um modo geral, quer dizer: nem sempre, o modo mais rico de ativação dentre estes modos “dramáticos”. (SCHWARTZ, 1996, P.151).

As renormalizações acontecem a partir das normas antecedentes. Entendendo, com Schwartz (2000), que o conceito de normas antecedentes se refere ao que é exigido, posto como ponto de referência para o trabalhador para execução do seu trabalho, ditames estabelecidos por outros.

Há um contínuo e contraditório movimento na atividade do trabalho pois há um conflito entre as normas antecedentes dadas ao trabalhador e sua atitude de renormalizar sua ação.

Focalizar o trabalho docente nesse aporte da abordagem ergológica foi possível pelo caráter complexo que envolve a atividade de ser professor. Ser professor é estar inserido em normas antecedentes, em um arcabouço de inúmeras prescrições. Contudo, o trabalho do professor não se resume a executar as normas antecedentes mas, pelo contrário, é um constante renormalizar de sua atividade docente. Essa dinâmica de ação do trabalho é comparada com a própria vida, assim, Charlot (2003) compara duas definições que se complementam quando afirma que:

Para Canguilhem, a vida é atividade de oposição à inércia e à “indiferença”para Yves Schwartz, “isso é verdade também da vida no trabalho é tentativa de “viver”, ela é tentativa de jamais somente submeter-se a ele, ela é tentativa de fazer valer neste meio, nesse tecido de normas antecedentes, neste enquadramento “abstrato”, um trabalho, umas normas de vidas oriundas da própria história daquele e daqueles que trabalham.”(op.cit., p.14).

Nessa dinâmica, o trabalho é movimento, é constituição de produção não apenas de bens de consumo, mas do próprio trabalhador que o executa. A dinâmica das interações resultantes do trabalho é entrelaçada de valores e sentidos que o configuram. Trabalho e vida são indissociáveis para o entendimento do ser humano, ainda que eivado de contradições como o sofrimento e a criação, a dignidade e a opressão.