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O trabalho na autonomia da vontade ou da autonomia liberal

No documento livro-cidades-sustentaveis (páginas 126-134)

DIREITO COLETIVO DO TRABALHO E COOPERATIVISMO POPULAR

1.1 O trabalho na autonomia da vontade ou da autonomia liberal

Na denominada Modernidade podemos afirmar que o mundo possível, para o Direito, é um mundo no qual o Estado reconhece, protege e pretende transformar todos os direitos em individuais.

Segundo Carlos Frederico Marés de Souza Filho

(...) a construção do Estado contemporâneo e de seu Direito foi marcada pelo individualismo jurídico ou pela transformação de um todo titular de direito em um indivíduo. Assim foi feito com as empresas, as sociedades e com o próprio Estado; criou-se a ficção de que cada um deles era uma pessoa, chamada de jurídica ou moral, individual. Assim também foi feito com os diferentes povos, criando a ficção de que cada povo indígena seria uma individualidade com direitos protegidos. Isto transformava s direitos essencialmente coletivos dos povos em direitos individuais4.

Na continuação do texto completa

O Direito contemporâneo, além de individualista, é dicotômico: às pessoas – indivíduos titulares de direitos – corresponde uma coisa, o bem jurídico protegido. A legitimidade desta relação se dá por meio de um contrato – acordo entre duas pessoas. É evidente que este esquema jurídico não poderia servir aos povos indígenas da América Latina, porque, mesmo que considerasse cada povo uma individualidade de direito, os bens protegidos (os bens que os povos precisam proteger) e sua legitimidade não têm nenhuma relação com a disponibilidade individual e com a origem contratual5.

A Modernidade, nesse sentido, cria e consolida, enquanto bases estruturantes de Direito Privado, categorias jurídicas que

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SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de.

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projetam um modelo de Direito, fundador de um complexo legislativo que assentará, ao longo do séc. XIX, o marco legislativo e contratual da sociedade oitocentista.

Segundo Luiz Edson Fachin, o Direito Privado e, consequentemente o Direito Civil, possui três pilares fundamentais, três categorias capazes de sintetizar o projeto moderno de Direito, assinalados como o contrato, o projeto parental e as titularidades, frutos da necessidade burguesa de afirmação de um Estado e Direito que atendesse suas necessidades de classe6

Entretanto, o advento do séc. XX – toda conjuntura das duas grandes guerras, as revoluções operárias, os efeitos do crack da Bolsa de New York, além das mutações econômicas estruturais

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Atualmente o Direito, em sua complexidade, reflete preocupações do Jurista do séc. XXI, pensador que se habilita na compreensão dos denominados direitos humanos, na incidência do que se denomina sentimento constitucional

– criam as condições objetivas materiais para a alvorada de um Direito, denominado Contemporâneo, fundado na Dignidade da Pessoa Humana, capaz de resgatar certo Humanismo, perdido nas Luzes, rica em anseio de Liberdade, mas de eficiente vocação abortiva no que tange a emancipação do Homem. Esse Direito ganha o nome de Direito Social.

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FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 6.

7

Sobre o tema HOBSMAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. 2ª edição. São Paulo: Cia das Letras, 2005.

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A expressão nasce das reflexões de Karl Loewenstein e Pablo Lucas Verdú citados pelo professor Raul Machado Horta referindo-se ao sentimento

manifestado pelo vínculo moral entre as instituições e os homens, sem o qual nada é sólido nem regular, de acatamento á Constituição, para assegurar sua permanência, que não se resolve exclusivamente no mundo das normas jurídicas, decorrente, além da imperatividade jurídica, da adesão á Constituição se espraiando na alma coletiva da Nação gerando formas difusas de obediência constitucional.. FACHIN, Zulmar. Curso de Direito

Constitucional. 3ª edição. São Paulo: Método, 2008.

autonomia coletiva9

Mas no limiar da Modernidade o Direito representou o que seus teóricos denominaram a morte do sagrado, dando origem ao que se pode entender por reificação ou sacralização do econômico.

, expressões anteriormente independentes das faces do Direito Internacional, Direito Público e Direito Privado, que já não se podem ser demarcadas com precisão já que o que se denominou ramos do Direito, aproxima-se muito mais de uma separação didática para compreensão do fenômeno jurídico do que sua factibilidade na práxis jurídica.

O ponto de partida dessa afirmação é a Renascença e as reflexões dos denominados autores da transição, que por dentro dos átrios da Igreja Católica, preparam a alvorada da Modernidade.

Embora a filosofia moderna tenha avançado através dos pensadores racionalistas, o humanismo de contestação (representado por teóricos, dentre outros, Willian de Ockham, Erasmo de Roterdã, Picco Della Mirandola e John Duns Scot) é o verdadeiro prolegômeno do moderno campo jurídico.

Pode-se buscar no Mercador de Veneza a constatação da influência de Modernidade sobre a nova disposição do corpo, ou simplesmente denominar-se a nova configuração do Direito a partir do Monismo Jurídico10

Os questionamentos da Renascença, em relação ao conceito de Direito Justo de São Tomás de Aquino, enquanto Direito , que será pormenorizadamente explicado por Max Weber.

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DEL CLARO, Maria Ângela Marques. A emergência da autonomia privada coletiva no Brasil. Ação sindical nos anos 80 do século XX, Constituição Federal de 1988 e surgimento das Centrais Sindicais. In Sindicalismo desafiado: reinvenção do ator social referencial na representação da subjetividade do trabalhador na obra de RAMOS FILHO, Wilson. Direito Coletivo do Trabalho depois da EC 45/2004. Curitiba: Gênesis, 2005.

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No mercador de Veneza encontra-se o julgamento de um judeu de nome

Shilock, que pretende o pagamento de dívida através de libras de carne humana,

mas é surpreendido pela Direito Estatal que o deixa na miséria, devendo para coroa italiana bem como ao nobre que lhe afrotava diariamente com cuspes na face. Shakespeare demonstra, incidentalmente, como o Estado se apodera do monopólio do discurso jurídico.

Natural é a vontade divina racionalizada pelo Soberano11

Esse choque de interesses coloca em disputa a racionalização do Justo, inaugurando o denominado convencionalismo.

recuperam textos clássicos como a Antígona de Sófocles, subtraindo o direito que já existia antes da vontade do soberano, uma espécie de direito dos deuses.

Pode-se afirmar que as teorizações desses pensadores pré- modernos serviram de base para o pensamento moderno acerca da Filosofia e abriram as portas para o novo paradigma: o indivíduo.

A partir do conceito de indivíduo – o mínimo existencial indivisível capaz de relacionar-se socialmente – toda teoria acerca do sujeito de direito será estabelecida ao longo dos séculos de consolidação da Modernidade, somando-se a construção do Estado, o denominado processo civilizatório, o advento da Razão e o surgimento do Capitalismo.

O pensamento de Thomas Hobbes é fundamental para estabelecer a possibilidade de um pacto, entre os cidadãos – indivíduos – de submissão ao Soberano, resguardados os direitos relativos à reprodução da vida, ou seja, a sua segurança (preservação da vida).

No Estado imaginado pelo pensador inglês a força de reproduzir e proteger a vida humana se dava na qualidade do Homem Artificial12

Para a compreensão do individualismo ocidental no Direito, entretanto, as reflexões mais relevantes, são as de John Locke, no que tange ao limite do Soberano na atuação estatal, dado pelo conjunto de indivíduos que compunham o povo

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GOYARD-FABRE, Simone. Filosofia crítica e razão jurídica. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo, Martins Fontes, 2006.

12

HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro. Coimbra: Fundação Caloustre Colbenkian, 2001.

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Problematização de John Locke em seu clássico Dois Tratados sobre Governo quando discute a questão da propriedade como direito natural já que o homem, pela modificação da terra, deixa um pouco de si mesmo, de sua vida nela, o que

especialmente no limite dado à invencibilidade do direito de propriedade, tão fundamental quanto o direito a vida, já que a propriedade se conquistava com o trabalho na terra, onde parte da vida se debilitava através do esforço e a recompensa se dava na modificação da propriedade, agora em simbiose ao próprio indivíduo, passava a ser parte de sua individualidade – leia-se seu direito fundamental.

Convém lembrar também, no mesmo período, a própria idéia de ação egoísta de Adam Smith, princípio do individua lismo utilitarista, onde caberia a cada unidade individual a realização de suas tarefas baseadas no seu interesse particular, restando a mão

invisível o controle do que restava, neste caso o mercado14

Dentre os pensadores contemporâneos, que refletem acerca do Direito e do Estado Moderno, em especial Max Weber, apontam o séc. XVIII como determinante para construção do momento em que, através de uma burocracia estatal composta por um grupo de indivíduos qualificados para exercer o serviço público, um aparato militar público e uma estrutura organizacional (assenhoreada do uso exclusivo da força) com a finalidade de cobrança de tributos, como um marco fundamental para fundação do Estado Moderno e, por conseguinte, Direito Moderno.

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Por caminhos teóricos que não serão objeto de nossa análise, o Estado se impõe através do modelo de Estado de Direito, em conjuntura combinada entre a necessidade de organização do Poder Político na tentativa de fuga do estado de natureza e a limitação desse poder político através da titularidade do povo no exercício de sua vontade popular (marcada pela soberania popular assinalada por John Locke, conforme afirmação anterior) onde o povo representava o conjunto de proprietários, ou seja, os possuídos da terra onde se deixou um pedaço da vida e, portanto,

lhe legitima na disposição natural sobre a mesma.

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SMITH, Adam. Inquérito sobre a natureza e as causas da riqueza das nações. 4ª. Edição. Coimbra: Fundação Caloustre Gulbekiam, 1999.

tornou-se seu direito natural15

Na crítica de Karl Marx, esse Estado de Direito será a clivagem, o substrato de formação do Direito Moderno, enquanto Estado que gerencia interesses da burguesia, garantindo a reprodução das suas condições de produção, no mundo capitalista

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Nesse sentido, portanto, o coroamento de projeto da Modernidade se dará no Direito, enquanto reprodutor e garantidor da harmonia (paz social), ou ainda, espaço de contingenciamento das demandas sociais (segundo o modelo hegeliano), agindo na consolidação dos três pilares fundamentais anteriormente considerados: a família – ou o denominado projeto parental - o contrato e a propriedade – ou ainda, na expressão de Luiz Edson Fachin – as titularidades.

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O projeto parental, espaço de proteção do patrimônio, reprodutor da possibilidade de manutenção do poder econômico burguês através de sua sucessão hereditária, permite a manutenção da fixação do poder político na classe a que desde o início pertence a burguesia.

Importante salientar que em países como o Brasil a regulação da família passa pela realidade sócio-política nacional, advinda de uma economia agrícola, influenciada pela elite latifundiária que, embora tenha dado acesso aos seus filhos à formação jurídica européia – á época embebida pelos auspícios liberais – não aplicaram as mesmas categorias em nosso direito, deixando as conquistas dos códigos oitocentistas somente com o advento do Código de 1916.

Nosso Direito Civil começa com certo atraso no que tange a proposta liberal do séc. XIX, e dispõe de um Direito de Família

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Importantes as reflexões de RUZIK, Carlos Pianovski em texto denominado

Locke e a formação da racionalidade do Estado Moderno: o individualismo proprietário entre o público e o privado in FONSECA, Ricardo Marcelo (org.)

Repensando a Teoria do Estado. Belo Horizonte: Fórum, 2004.

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MARX, Karl. 18º Brumário de Luis Bonaparte. Tradução de Paul Singer. Coleção Os pensadores. Rio de Janeiro: Editora Abril, 1976.

bastante conservador.

Afirma Orlando Gomes

Para o casamento dos menores de vinte e um anos, exige o consentimento de ambos os pais, mas discordando, prevalece a vontade paterna. O marido é o chefe da sociedade conjugal, competindo-lhe administrar os bens particulares da mulher, fixar e mudar o domicílio da família e autorizar a profissão da esposa. O Juiz pode ordenar a separação dos filhos de mãe que contrai novas núpcias, se provado que ela, ou o padrasto, não os trata convenientemente. A mãe binúba perde, quanto aos filhos do leito anterior, os direitos do pátrio poder. O direito de nomear tutor compete ao pai. Consagra-se assim a posição privilegiada do homem na sociedade conjugal17.

O Código Civil de 1916 acaba por apresentar predileção incontestável ao casamento, assim denominado enquanto única forma legítima de família dispondo, em seu art. 315, que o casamento válido só se dissolvia com a morte de uma dos cônjuges, demonstrando a indisposição da legislação brasileira para com o divórcio18

Nosso destaque é afirmar que o Direito de Família, anterior ao Código de 1916, está calcado nas Ordenações Filipinas e no modelo por ela apresentado (de axioma medieval) o qual, mesmo com o advento do referido Código, ainda a Igreja Católica era a principal referência normativa para as relações familiares a disposição hereditária.

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Os institutos contemporâneos de proteção à sociedade conjugal, qual seja união estável, direitos dos filhos fora do casamento, família mono-parental, a questão dos homo-afetivos, são realidade de difícil consolidação, mesmo a partir da Constituição de 1988.

O contrato, para o Direito Moderno, se apresenta enquanto autêntico garantidor da dinâmica de circulação de bens, negócios e

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GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do código civil brasileiro. In Direito Privado (novos aspectos). Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 87.

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propriedades, desde que realizadas na intermediação do mercado, ou ainda, segundo Carlos Eduardo Pianovski Ruzik instrumento de trânsito jurídico de bens e interesses formado pelos princípios resgatados do Direito Romano adaptados à realidade comercial moderna.

O que significa afirmar que o Liberalismo Econômico não caminha no compasso do Liberalismo Social, muito menos no Liberalismo Político.

As teorizações modernas acerca dos contratos parte da denominada autonomia da vontade, ou espaço de liberdade no qual o Estado nada dispõem, espaço de total garantia da liberdade cumprindo ainda, seu papel, quando da manutenção da referida garantia.

Segundo Francisco Quintanilha Veras Neto a autonomia foi constituída inicialmente enquanto postulado de ordem liberal, através do conceito de autonomia da vontade utilizada enquanto

ideologia liberal que formatou importantes conceitos de mercado de trabalho capitalista, como o da autonomia individual, explícito no âmbito da contratação de bens jurídicos como mercadoria, inclusive força de trabalho submetida ao mecanismo de subsunção formal e material da força de trabalho e da garantia da apropriação privada da mais-valia social pela sua formalização jurídica19.

Entretanto, por dentro do modelo liberal, nasce a percepção da necessidade, ainda que sob a forma de discurso, da proteção de direitos para além da liberdade e igualdade, uma espécie de agir positivo, na tentativa de aproximação da efetivação de direitos.

A primeira vez que esta idéia emerge pode situar-se no projeto de Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, de Robespierre, assente a preocupação de reelaborar o

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VERAS NETO, Francisco Quintanilha. Autonomia Coletiva na Economia Solidária in Revista do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rio Grande – FURG, Vol. 11, Ano 2005. Rio Grande: FURG, 2005, p.289.

conceito de liberdade tornando-o indissociável do de fraternidade, numa perspectiva social e não meramente individualista. Isto é, o Estado aparece como agente direto do interesse coletivo com a obrigação de fornecer diretamente aos cidadãos meios de satisfação de necessidades e como orientador das atuações privadas no sentido da solidariedade, da fraternidade e da salvaguardas de direitos fundamentais.

Estava assim esboçado o primeiro núcleo daquilo que são atualmente os direitos sociais. A história da sua elaboração doutrinária coincide, em grande parte, com a história dos dois últimos séculos da luta dos homens pela sua emancipação e pela garantia de seus direitos.

Nesse momento, segundo os estudos de Ana Prata, o Direito Administrativo aparece enquanto primeiro locus para que a regulação das relações capital trabalho encontrasse guarida dentro do ordenamento jurídico, ou ainda, para que o Estado depositasse a demanda decorrente das relações do trabalho, sustentado por autores como Leon Deguit20

A legislação tão somente englobaria as sociedades comerciais, para além do individuo e do Estado. O Direito Francês da segunda metade do séc. XIX colocaria o Estado como agente do interesse coletivo.

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Segundo a mencionada autora caberia ao Estado, em primeiro lugar, a incumbência de promover as condições materiais de acesso dos pobres, tarefa que esse, e tão somente esse, deve se desincumbir.

1.2 O capitalismo social ou da fase intervencionista do

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