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O trabalho na roça e a alimentação: alimento com “sustança” x alimento

VIVIDAS EM RELAÇÃO AO TRABALHO.

4.1. O trabalho na roça e a alimentação: alimento com “sustança” x alimento

“esforçado”.

As condições materiais de existência, mais precisamente o tipo de trabalho realizado, foi apontado como um fator importante na promoção de uma vida saudável. O simples fato de estar em atividade, trabalhando, é considerado como um sinal de saúde. Neste sentido, em entrevista, o Sr. José comentou:

... agora já to aposentado, mas eu vou te falar procê, a vida lá era mais difícil um pouquinho, mas pra mim era melhor né. Pra mim era, porque, como se diz, enquanto eu tava lá eu tava com boa saúde, e agora aqui, como se diz, a historia da gente, o bixo pegou né (...) porque eu tenho problema de diabetes, pressão, tem agora o problema das pernas, as pernas é uma coisa que manda muito na gente né, trabaiava né, mas ai eu aposentei, mas enquanto eu tava trabalhando era muito melhor do que agora (...) porque tem muita gente que fala: „Deus me livre de serviço‟, mas eu já penso um ponto, eu queria tá trabalhando do jeito que eu trabalhava, com saúde, agora eu tô a toa e, como se diz, o caboco não vale nada mais... (entrevista José, fevereiro de 2012) [grifos meus].

Enquanto conversava com o José, sua esposa, que também participava da entrevista, comentou: “Se tá trabalhando é porque tá com saúde né?!”. No entanto, alguns tipos de trabalho são considerados melhores do que outros no que se refere à promoção da saúde. Neste sentido, o trabalho que era exercido na velha Pedra Negra, ou seja, o “serviço de roça”, justamente por ser realizado ao ar livre, próximo e em interação com a natureza, é considerado por muitos dos atingidos como capaz de proporcionar uma boa saúde. Nas palavras de outro atingido:

123 ... a idade prejudica muito a gente, mas se a gente tiver frequente naquele serviço todo o dia você vive mais, mas se você parar, pra depois você recomeçar fica difícil, é difícil né, tem que movimentar, você vê ai hoje muita gente reclamando: „ah que as minhas juntas isso, que minhas juntas aquilo, é desgaste de osso, que é aquilo que é aquilo outro, to com as pernas duras, e tal‟, mas eu acho o povo hoje muito é acomodado com essa parte né, porque lá na velha Pedra Negra pelo menos a gente viajava seis quilômetros pra trabalhar, ia de pé e voltava, aqui se o povo tem que ir ali em baixo ninguém quer ir de pé, quer ir de carro, né...e a caminhada é boa pra isso ai, a caminha é bom, nêgo até faz essa caminhadinha ai em volta da Igreja, mas ai não, caminhada eu acho que tem que caminhar é mais longe, não pode ser correndo mas também não pode ser devagarzinho né, lá na roça já na caminhada você já ta fazendo um exercício que é muito bom pra saúde, você transpira o corpo, é bom, e hoje o povo tá meio acomodado, eu acho que o povo hoje ta meio acomodado viu sô, nessa parte... (entrevista Carlinhos, fevereiro de 2012) [grifos meus].

Além do trabalho na roça que exigia um esforço físico significativo e, por isso, era visto como “gerador de saúde”, o tipo de alimentação consumida também era percebida da mesma forma por muitos atingidos. Como consta no próprio site da AHE Funil: “A adoção de uma alimentação saudável previne o surgimento de doenças crônicas e melhora a qualidade de vida.” 66

No entanto, me parece que não foi bem isso que a construção da usina proporcionou à comunidade.

Durante conversa e entrevista com o Sr. Abdias, antigo morador de Pedra Negra, o que mais me chamou a atenção foi que a primeira coisa que ele me falou, ao contrário da grande maioria das pessoas que havia conversado até então, foi que a saúde piorou muito. Não o acesso aos serviços de saúde, esses ele disse que realmente melhoraram significativamente, mas segundo Abdias: “a saúde do povo piorou demais”, principalmente por causa da alimentação. Conforme analisamos no segundo capítulo, ele também disse que antigamente todo mundo tinha sua horta, seu pomar, plantava feijão, mandioca, milho, todos “alimentos de qualidade”, sem agrotóxicos ou outro produto químico. Agora, depois da vinda para Ijaci, passaram a ter que comprar praticamente de tudo e, segundo Abdias, os alimentos que compram são de “péssima qualidade”, com muitos agrotóxicos e outros produtos químicos que são, em sua opinião, bastante prejudiciais à saúde.

Para exemplificar o seu raciocínio ele me contou sobre a forma com que o feijão vem sendo costumeiramente produzido hoje em dia, por meio da aplicação de um produto químico para acelerar o processo de crescimento da planta até a colheita, fato bastante repudiado por ele. Um pouco antes da realização do trabalho de campo, alguns

66

Constante no site: <-http://www.ahefunil.com.br/home/educacao ambiental/eventos-e-

124 pesquisadores da Universidade Federal de Lavras estavam fazendo um experimento com um feijão que plantaram em uma área próxima do bairro Pedra Negra, e alguns moradores tiveram a curiosidade de acompanhar o plantio, desaprovado por muitos. Em relação a isso, o Sr. Carlinhos, depois de falar do plantio de meia na velha Pedra Negra e do feijão que ainda compra de um produtor de lá (feijão que segundo ele é de boa qualidade e não tem nenhum tipo de agrotóxico), ele comenta:

...eu gosto de comprar assim, já compro direto do produtor né, porque já compra um trem pronto, chega em casa eu guardo ele ai, guardo tudo dentro dum litro de plástico pra num dá caruncho, ele não tem remédio, não tem nada, porque essas plantas hoje... ali mesmo tem o pessoal da FAEP plantando ali e a gente vê, eles plantaram um feijão lá, o feijão deles era regrado, plantaram feijão, deu feijão, mas o quê que tá acontecendo, o feijão tava amarelando, tava começando o tempo da chuva, ai o quê que eles fizeram, o tempo tava firme, eles foram lá e meteram remédio naquele feijão, adiantaram o feijão a poder de agrotóxico, colheram aquele feijão e foram vender, mas aquele feijão ta envenenado, pra quê né?, esperava o tempo certo dele uai!, mas eles adianta o trem, é aonde ta acontecendo com muita gente hoje é isso aí, poder de agrotóxico, esses remédios bravos que estão dando nessas clínicas aí, eu acho que isso não podia funcionar não, mas eu sei lá, eu prefiro comprar do produtor da roça que no dele lá não tem nada, se eu comprar um feijão daquele lá eu já tenho um cado de sisma deles lá né, até pra madurar eles põe remédio em cima dele, antecipa os negócios, vai a força né... (entrevista Carlinhos, fevereiro de 2012) [grifos meus].

Um fato que também ilustra esse ponto de vista ocorreu no final do primeiro dia de trabalho de campo realizado em novembro. Eu estava na casa do João por volta das 20hs, Maria estava preparando um jantar, e eles me convidaram para ficar, mas eu agradeci e falei que estava cansado da viagem e queria chegar em casa logo pra poder descansar. João então me ofereceu de, outro dia, comermos um angu doce que sua mãe costumava fazer na velha Pedra Negra e que era muito gostoso; disse que era uma comida simples, mas que tinha muita “sustança”. Falou que antigamente o pessoal costumava comer comida desse jeito, bem simples, mas muito saudável, comidas como farinha, fubá e trigo, alimentos que, segundo João, servem de base pra fazer muita comida de qualidade, com “sustança”. Ele comentou que o pessoal mais rico hoje em dia come uns pratos que vem muito pouca comida, e que ainda é de má qualidade, comida que ele chamou de “esforçada”, referindo-se aos produtos, adubos e químicos que se costuma colocar na terra para acelerar o processo de produção dos alimentos.

João também se mostrou bem crítico em relação a esta forma de plantar que, segundo ele, produz alimentos que são prejudiciais à saúde. No entanto, ao mesmo tempo em que falava mal dessa forma comum de se plantar hoje em dia, disse entender a necessidade disto, tendo em vista o tanto de gente que tem nascido no mundo

125 ultimamente. Comentou que antigamente eles escolhiam o melhor lugar e a melhor época de plantar e, hoje em dia, se planta em qualquer lugar. Ao falar isso, ele apontou para o terreno que tem em frente a sua casa (um lote vago com uma terra que me pareceu bem ruim e imprópria para o cultivo) e disse que se quiserem eles conseguem plantar até ali, bastando apenas colocar algum tipo de adubo químico e “aplicar algum veneno”. Segundo João, o objetivo hoje em dia é produzir muito, em pouco espaço e em pouco tempo, o que, para ele, é muito ruim pra qualidade do alimento.

A necessidade de mudança em relação aos alimentos percebida pelo João se deu não somente em relação à sua forma de produção, mas também de seu consumo. Ao falar a respeito de um primo seu, João comenta:

Aí então ficou essas casas mais resistentes lá, essas casa que vende ... que antigamente dizia era armazém né, esses dias mesmo eu estava conversando com meu primo né, que ele é muito...ele gosta dessas coisas também, ele falou que se tivesse dinheiro ele ia fazer um armazém, num é esse negocio de supermercado não, ia fazer é um armazém!, cortar salame em cima do balcão, bexiga dependurada, não tem esse negócio de muita frescuragem, de tudo no computador não, o negócio dele é isso, ele tem essa noção (...) só que tem que eu falei com ele assim, ô Donizete, hoje as pessoas, hoje assim, pra você buscar a freguesia, você começa a ter que acompanhar o movimento, acompanhar a...como é que se fala...a modernização das coisas, então hoje se você picar um salame com a faca as pessoas já acha que é anti-higiênico, falta de higiene, porque antigamente, lá na Pedra Negra, não tinha nada disso; não só lá né... (entrevista João, fevereiro de 2012)

Essa mudança em relação à alimentação, muitas vezes entendido como “frescuragem”, não diz respeito apenas à forma de consumo do alimento, mas também está relacionada à maior possibilidade de escolha proporcionada pela grande variedade de produtos alimentícios encontrados à disposição para compra hoje em dia. Mesmo que os atingidos não tenham condições de comprar o alimento que gostariam de consumir, a simples visualização do produto, principalmente por parte dos mais jovens, pode alterar o seu critério de escolha.

A própria Maria, mulher de João, percebeu essa mudança em relação ao critério de escolha dos alimentos a serem consumidos a partir de algumas atitudes do seu filho mais novo, o Mateus. Num sábado à tarde, eu estava tomando um café e comendo um pão de sal com a Maria quando ela, reclamando do filho, comentou que ele tinha umas coisas estranhas, que no dia em que ela não fazia carne, apenas fritava um ovo, ele reclamava do ovo e não comia. No outro dia, quando ela fazia carne de boi, ele achava ruim e pedia para ela fritar um ovo. Maria desaprovou essa atitude do filho e disse que com ela não tinha dessas coisas, que na velha Pedra Negra eles sempre comiam o que

126 tinha pra comer, até broto de taboa (aquela planta que costuma dar nos brejos) eles comiam. Falou que eles viviam à base de abóbora, angu e broto de várias plantas que encontravam por lá, até de picão.

Como vimos no segundo capítulo, a diversidade dos alimentos consumidos na velha Pedra Negra estava relacionada às possibilidades de produção do mesmo a partir da plantação e da extração (coleta e pesca), uma vez que se comprava muito pouca comida. João comentou que eles compravam mais era um óleo, um sal, essas coisas mais básicas que eles encontravam nas duas mercearias que existiam lá, disse que a maior parte da comida eles mesmo plantavam, arroz, feijão, milho, mandioca, hortaliças, frutas, etc. João comentou que as duas mercearias, que funcionavam como bar também, viviam cheios, sempre lotados, e vendiam muito, disse que elas davam muito dinheiro. Como eram as únicas opções também, o pessoal costumava cobrar mais caro, mas o povo gostava das mercearias, pela comodidade do lugar e por funcionar também como boteco.

Nesse sentido, podemos verificar que há disponibilidade de alimentos e que esses também estavam disponíveis na antiga Pedra Negra. Contudo, agora com custo maior e, na avaliação da população local, de pior qualidade e diversidade. Os terrenos urbanos e a ausência de matas e rios, por conseguinte, de alimentos plantados ou para coleta, reduziram a diversidade na oferta, bem como encareceu o acesso aos alimentos. Assim, podemos inferir que a mudança para a nova Pedra Negra teve como consequências a perda na autonomia em relação à segurança alimentar, bem como gerou insatisfações em relação à obtenção e consumo de alimentos.

Em relação à pesca, assim como pude analisar sobre a comunidade da nova Ponte do Funil, muitos foram os que reclamaram da impossibilidade de se continuar esta prática no novo lago formado pela construção da usina. Depois de gravar uma entrevista com o Abelardo, achei interessante quando ele me contou a respeito da pesca na velha Pedra Negra que, segundo ele, era muito boa. Disse que bastava pegar umas poucas minhocas e ir pro rio que logo você já voltava com uns peixes bons, como o mandi, o dourado, e outros67. Ele comentou que o lago acabou com os peixes e falou que, hoje em dia, só dá pra pescar se for com nota de cinquenta, ou seja, só se comprar o peixe, porque igual antigamente não dá mais. Abelardo comentou também que o peixe é

67 Durante a pesquisa outras pessoas também comentaram sobre a questão da pesca, o Sr. Pedro, depois de gravarmos uma entrevista, me mostrou várias fotos dos peixes que pescou na velha Pedra Negra, fotos muito interessantes de peixes enormes como o dourado e o Jaú. Ele também reclamou muito do fato de não conseguir mais pescar depois da construção da usina.

127 um alimento muito saudável e lamentou não poder comê-lo com a mesma frequência de antigamente.

Neste sentido, por serem produzidos (ou coletados) de maneira natural, sem agrotóxicos, os alimentos consumidos na velha Pedra Negra eram considerados pelos moradores como sendo de boa qualidade, saudáveis. Além disso, como me pareceu ser comum entre os atingidos considerar aqueles que vivem na roça como pessoas saudáveis, de “sangue grosso”, o consumo de alguns tipos de alimentos que, hoje em dia, costumam ser considerados ruins para a saúde, como é o caso de alguns tipos de gordura, não são vistos necessariamente como prejudiciais a todos.

Em relação a isso, a dona Edelmira, outra atingida que também me falou que antigamente quase não comprava comida, pois plantava de tudo, e que por isso tinha uma alimentação natural que ela considerava saudável, comentou algo sobre seu pai que me chamou a atenção. Segundo ela, hoje em dia, os médicos falam que não se pode comer isso, que não pode comer aquilo, mas que seu pai mesmo comeu gordura e carne de porco a vida toda e morreu muito feliz por ter conseguido aproveitar todas essas coisas. Segundo Edelmira, o médico de seu pai havia lhe dito que ele não poderia comer esse tipo de alimento, mas ele não escutava, não obedecia, e continuava comendo assim mesmo. Disse que ele morreu feliz por conta disso, pois se não tivesse comido ele teria morrido do mesmo jeito, mas não teria aproveitado tanto quanto aproveitou.

Durante as entrevistas pude perceber outros entrevistados que também tinham esta mesma atitude de não acatar as decisões dos médicos de forma tão pacífica. Como comentou o Sr. Pedro:

... acho que minha vida, assim, sobre a ... pra mim acho que melhorou um pouco, teve uma miorinha, só as doenças que...mas acho que isso ai eu acho que é a idade né? Vai aparecendo as coisas, até 50 anos a pessoa vai, de 50 pra cima a pessoa já ta descendo, ai já vai aparecendo umas coisinhas, igual a minha esposa...eu mais é o joelho mas o resto é bom, pressão é boa, 12/8, mas o joelho, a artrose minha, tem dia que ela ataca aqui ó, até incha, outro dia tá na coluna, mas o joelho não para de doer não, igual quando eu piso, o joelho não para de doer não, ta escutando? (estalos) é os dois... eu tomo um comprimido quando tá doendo muito, eu tomo, era pra eu tomar de 8 em 8 hs mas eu não tomo não, tomo só um por dia porque ele é muito forte, nó, aquilo marga que fica umas 5 hs margando na boca, ele é brabinho. (entrevista Pedro, fevereiro de 2012) [grifos meus].

Apesar de termos observado certa resistência por parte de alguns atingidos em acatar passivamente todas as orientações dos médicos, a mudança para o bairro urbano de Ijaci, ao facilitar o acesso aos serviços de saúde, pode ter levado alguns atingidos a

128 recorrerem a esse tipo de serviço com mais frequência, o que pode ter provocado também o aumento no consumo de medicamentos produzidos industrialmente em detrimento do uso de plantas medicinais, tradicionalmente utilizadas na prevenção e cura de enfermidades.