• Nenhum resultado encontrado

Conforme ficou evidenciado no capítulo anterior, as tipologias que sedimentaram a existência do contrato individual de trabalho, como contrato especialíssimo para socialização da vida humana, desencadeou também a própria definição desse ramo do conhecimento jurídico.

Para Maurício Godinho Delgado:

O Direito do Trabalho é ramo jurídico especializado, que regula certo tipo de relação laborativa na sociedade contemporânea. Seu estudo deve iniciar-se pela apresentação de suas características essenciais, permitindo ao analista uma imediata visualização de seus contornos próprios mais destacados (2006, p.49).

Na mesma linha, segue o pensamento de Juan M. Ramirez Martinez, Jesús Garcia Ortega e Tomás Sala Franco: “O Direito do Trabalho se ocupa, em concreto, do trabalho que reúne as características de ser subordinado e por conta alheia, além de voluntário e retribuído” (2008, p. 20).

Esse pressuposto teórico fortaleceu-se de maneira tão hegemônica que ainda hoje é possível identificar afirmativas enaltecendo o trabalho subordinado como a essência e a própria razão de ser do Direito do Trabalho, apesar de haver, há muitos anos, uma corrente ainda minoritária do pensamento jurídico trabalhista que defende a ampliação do âmbito protetivo e, por consequência, do próprio Direito do Trabalho.

A corrente predominante, segue uma linha diametralmente oposta àquela preconizada por Romita.11

11

Arion Saião Romita, já prognosticara, no começo da década de 80 do século passado: “hoje em dia ganha vulto, novamente, a idéia segundo a qual o Direito do Trabalho deve expandir-se para abranger outras formas de relações de trabalho, que não sejam apena as de trabalho subordinado.

35 Eis o que diz, por exemplo, Maurício Godinho Delgado:

Qual a categoria central do Direito do Trabalho, a categoria sem a qual esse ramo jurídico não existiria? Obviamente, está se falando do trabalho subordinado, mais propriamente da relação empregatícia. O núcleo fundamental do Direito do Trabalho situa-se, sem dúvida, na relação empregatícia de trabalho, constituindo-se em torno dessa relação jurídica específica o universo de instituições, princípios e regras características a esse específico ramo jurídico (2006, p. 84).

Mas essa doutrina dominante, não consegue superar a contradição que está na própria essência dessa modalidade de relação de trabalho. A contradição está exatamente em estabelecer um paralelo entre trabalho/escravo e trabalho/servil e, entre estes e uma outra modalidade que passa a se chamar de trabalho livre/subordinado, entendendo-se como tal aquela surgida na idade moderna, industrial, capitalista.

O aludido autor, seguindo essa mesma linha, arremata:

O trabalho empregatício (enquanto livre, mas subordinado) constitui, hoje, a relação jurídica mais importante e freqüente entre todas as relações de trabalho que se têm formado na sociedade capitalista. Essa generalidade socioeconômica do trabalho empregatício é, entretanto, como visto, um fenômeno sumamente recente: nos períodos anteriores ao século XIX predominava o trabalho não-livre, sob a forma servil ou, anteriormente, escrava. Naquele antigo e medieval quadro de predomínio da utilização escrava ou servil do trabalho, restava um exíguo espaço socioeconômico para a contratação de prestação de prestação de trabalho livre; em tal contexto, as normas e conceitos jurídicos referentes a tais infreqüentes modalidades de utilização do trabalho livre eram, também, compativelmente escassas (DELGADO: 2006, p. 288).

As fronteiras do próprio Direito do Trabalho se dilatam. Há realmente uma tendência, que é compreensível, no sentido de ampliar o campo de atuação de normas protecionistas, especialmente quando enfaixam medidas tendentes à melhoria da condição social dos trabalhadores, de resto, recomendação da própria Constituição Federal, art. 165”. ROMITA, Arion Saião. Contrato Individual de Trabalho: formação e nota característica. In: GONÇALVES, Nair Lemos; ROMITA, Arion Saião (orgs). Curso de Direito do Trabalho. Homenagem a Evaristo de Moraes Filho. São Paulo: LTr, 1983. p.235.

36 A não superação desse dilema consiste em considerar essa modalidade de trabalho, ao mesmo tempo e sob a mesma circunstância, como livre e subordinado, uma vez que essas duas posições não podem se completar ou se fundir, por serem absolutamente excludentes.

A doutrina clássica, ao estabelecer essa diferença – trabalho escravo/servil e trabalho livre/subordinado - tratou de esconder o trabalho livre que existia antes dos modos de produção capitalista. É que esse modelo de sociedade precisava também comprar o trabalho executado livremente e submetê-lo aos ditames rígidos das fábricas. Assim, fora ele – o trabalho livre/subordinado – recepcionado pelo Direito do Trabalho como seu próprio objeto.12

O questionamento sobre a ausência de liberdade nesse tipo de trabalho já vinha sendo realçado desde a primeira metade do século XIX e revelado como uma forma mais sofisticada de exploração. Os socialistas utópicos foram os primeiros a descrever as barbáries dessa maneira de exploração. Foi, em seguida, denunciada, pela doutrina anarquista e o socialismo científico.

Mas, o que vinha a ser o trabalho livre, no contexto de uma concepção filosófica que se contrapunha à filosofia liberal?

Dizia Marx (MARX e ENGELS, 1953), por exemplo, que o escravo não poderia vender o trabalho ao seu possuidor, assim como o boi não vende o produto do seu trabalho ao camponês, já que ele mesmo era uma mercadoria que pode passar de um proprietário a outro. Por sua vez, o servo vende apenas parte de sua força de trabalho. Não recebe ele salário do proprietário da terra, mas é o proprietário da terra que recebe dele o tributo.

Quanto ao chamado “trabalho livre”, afirma ele:

O servo pertence à terra e entrega aos proprietários frutos da terra. O

operário livre, pelo contrário, vende a si mesmo, pedaço a pedaço.

12

Segundo o professor Everaldo Gaspar Lopes de Andrade, “a filosofia utilitarista e o racionalismo instrumental a serviço da produção capitalista consolidaram a evangelização do trabalho abstrato. Instituíuram, pois, a supremacia desse trabalho em contraposição ao trabalho livre. Aquele, aparecendo como sinônimo de honradez; este enquadrado como preguiça e passível de punição. Passou, no começo, a chamar de ‘livre’ o trabalho abstrato, a partir da comparação entre trabalho escravo e o arrendamento; ou, entre as relações de trabalho subordinado e as relações escravocatas e servis”. ANDRADE, Everaldo Gaspar Lopes de. A desconstrução do paradigma trabalho subordinado como objeto do direito do trabalho. Revista LTr, v. 72, n. 8, p. 913 - 919, agosto 2008.

37

Vende, ao correr do martelo, 8,10,12,15 horas de sua vida, dia a dia, aos que oferecem mais, aos possuidores de matérias-primas, dos instrumentos de trabalho e dos meios de subsistência, isto é, aos capitalistas. O operário não pertence nem a um proprietário nem a terra, mas 8, 10, 12, 15 horas de vida diária pertencentes a quem as compra. O operário abandona o capitalista ao qual se aluga, tão logo o queira, e o capitalista o despede quando lhe apraz, desde que dele não extrai mais nenhum lucro ou não obtenha o lucro almejado. Mas o operário, cujo único recurso é a venda da sua força de trabalho não pode abandonar toda a classe dos compradores, isto é, a classe

capitalista, sem renunciar á vida. Não pertence a tal ou patrão, mas

à classe capitalista, e cabe-lhe encontrar quem lhe queira, isto é, tem de achar um comprador nessa classe burguesa (ibidem, p. 63 - 64).

Ainda na no texto Trabalho Assalariado e Capital, Marx deixa uma passagem emblemática para desmitificar a ideologia do trabalho livre, ao estabelecer uma comparação entre o trabalho assalariado e o bicho-da-sêda.13

O estudo não pretende assumir posições diante dos confrontos ideológicos desencadeados a partir da primeira metade do século XIX. O que se pretende deixar evidenciado, como criticável na doutrina trabalhista clássica, é exatamente a defesa e a difusão de um discurso que aparece como uniforme e consensual, em que o trabalho livre/subordinado se revela com uma grande conquista frente ao trabalho escravo/servil. Pretende ainda afirmar que, por trás dessa aparente neutralidade, os juslaboralistas assumem deliberadamente uma de suas correntes: o pensamento liberal de ontem e de hoje.

13

“Mas a força de trabalho em ação, o trabalho mesmo, é a atividade vital peculiar ao operário, seu modo peculiar de manifestar a vida. E é esta atividade vital quele vende a um terceiro para assegurar- se os meios de subsistência necessários. Sua atividade vital não lhe é, pois, senão um meio de poder existir. Trabalha para viver. Para ele próprio, o trabalho não faz parte de sua vida; é antes um sacrifício de sua vida. É uma mercadoria que adjudicou a um terceiro. Eis porque o produto de sua atividade não é também o objeto de sua atividade. O que ele produz para si mesmo não é sêda que trece, não é o outro que extrai das minas, não é o palácio que constrói. O que ele produz para si mesmo é o salário, e a sêda, o ouro, o palácio, reduzem-se, para ele, a uma quantidade determinada de meios de subsistência, talvez uma jaqueta de algodão, alguns cobres ou o alojamento no subsolo. O operário que, durante doze horas, tece, fia, fura, torneia, constróio, maneja a pá, entalha a pedra, trasporta-a, etc., considera essas suas doze horas de tecelagem, fiação, furação, de trabalho de tôrno ou de pedreiro, de manejo da pá ou de entalhe da pedra como manifestação de sua vida, como sua vida? Muito pelo contrário. A vida para ele principia quando interrompe essa atividade, à mesa, no albergue, no leito. Em compensação, ele não tem a finalidade de tecer, de fiar, de furar, etc., nas doze horas de trabalho, mas a finalidade de ganhar aquilo que lhe assegura mesa, albuerque e leito. Se o bicho-da-sêda tecesse para suprir sua exigência de largata, seria um perfeito asalariado” (MARX e ENGELS, 1953, p. 63).

38 A produção acadêmica desenvolvida desde a década de 60 do século passado vai na mesma direção daqueles que mantêm uma atitude crítica.14 É importante assinalar que este perfil não é patrimônio exclusivo da versão marxiana sobre o trabalho15.

Mesmo no contexto do Direito do Trabalho, vários juristas vêm questionando essa linha de pesquisa que se vincula aquele marco teórico16.

O estudo, a partir do presente capítulo, procurará demonstrar a obsolescência do trabalho subordinado enquanto objeto do Direito do Trabalho. O fará, como convém a um estudo acadêmico, a partir de uma visão epistemológica contemporânea e baseado em duas evidências: as vidências empíricas e as evidências analíticas.

Essa demonstração respaldará os fundamentos teóricos da dissertação, no sentido de privilegiar uma concepção ontológica do trabalho humano dissociado do trabalho sofrimento e servirá também para desqualificar o pseudo-discurso centrado na idéia de um trabalho livre e ao mesmo tempo subordinado, bem como para desvendar o aparente equilíbrio entre as partes contratantes – empregado e empregador – a partir de uma nova compreensão acerca do poder disciplinar e da subordinação jurídica.

14

Richard Barbrook, citando Michel Foucault e a propósito do panóptico – uma prisão que existia no final do século XVIII, que foi construída para manter prisioneiros sob constante vigilância -, afirma que Foucault, em sua obra Vigiar e Punir, essa prisão como pioneira “no modelo disciplinar que mais tarde foi usado para controlar os trabalhadores das fábricas e escritórios do fordismo. Ver: BARBROOK, Richard. Futuros Imaginários. São Paulo: Peirópolis, 2009. p.104.

15 As décadas de sessenta e setenta do século passado tornam-se um marco fundamental nas pesquisas acadêmicas, sobretudo, para desvendar o despotismo das fábricas. Aí aparecem, na década de 60 uma obra depoi traduziada para o português, com o título: FRIEDMANN, Georges. O Trabalho em Migalhas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. Na década seguinte e também traduzida para o português: GORZ, André. Crítica da Divisão do Trabalho. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Partindo do conceito de solidariedade orgânica desenvolvida por Durkheim admite que “todas as formas de divisão social do trabalho que não engendre a solidariedade serão consideradas patológicas” (p. 114). Para André Gorz, “o despotismo de fábrica é tão velho quanto o próprio capitalismo industrial. As técnicas de produção e a organização do trabalho que elas impõem sempre tiveram um duplo objetivo: tornar o trabalho o mais produtivo possível para o capitalista e, com essa finalidade, impor ao operário o rendimento máximo através da combinação dos meios de produção e das exigências objetivas de sua execução” (ibidem, p. 81).

16

O professor Everaldo Gaspar Lopes de Andrade, no seu último livro, abre uma secção, no capítulo 6, intitulado “O Sinal de Alarme e a Nova Doutrina” para expressar a reação dos juristas contra a teoria e a doutrina tradicionais. Ver: ANDRADE, Everaldo Gaspar Lopes de Andrade. Princípios de Direito do Trabalho: Fundamentos teórico-filosóficos. São Paulo: LTr, 2008. p. 128-131.

39 Sem essa pauta hermenêutica não seria possível ao presente estudo a apresentação de alternativas de trabalho e rendas dissociados da tradição trabalhista recepcionada pelo Direito do Trabalho clássico.