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O transplante hepático desafios para a pessoa que o realiza

1. INTRODUÇÃO 33 A gestão da doença crónica

1.2. O transplante hepático desafios para a pessoa que o realiza

Em Portugal, de acordo com os dados da Autoridade para os Serviços de Sangue e da Transplantação (ASST) no ano de 2010 realizaram-se 245 transplantes hepáticos, contudo houve um decréscimo de 3,9% em relação ao ano anterior, que resultou da diminuição do

39 número de transplantes por Polineuropatia Amiloidótica Familiar (PAF) (ASST, 2010). No ano de 2012 realizaram-se 188 transplantes hepáticos, em 2013 houve um aumento para 243, que voltou a ter um pequeno decréscimo em 2014 (209 transplantes hepáticos) e, em 2015 realizaram-se 249 transplantes hepáticos (IPST, 2016). Assim, a nível nacional nos últimos 5 anos (2011-2015) realizou-se um número considerável de transplantes hepáticos (1108), com uma média anual de 222 pessoas submetidas a transplante hepático. Com o elevado número de pessoas submetidas a transplante importa compreender os desafios que a estas pessoas se colocam, pelo seu forte impacte na sua qualidade de vida e, consequentemente, nos custos em saúde.

O transplante hepático sendo nos seus primórdios um procedimento de elevado risco, com os avanços na técnica cirúrgica e com a terapia imunossupressora demonstrou uma melhoria significativa da sobrevivência após transplante (Yang, Shan, Saxena, & Morris, 2014). Enquanto abordagem terapêutica, o transplante é tido como um importante contributo para a melhoria da qualidade de vida dos clientes. Neste sentido, a pessoa é convidada a reformular e a integrar novos aspetos no seu autocuidado, por forma a garantir a viabilidade do novo órgão e, portanto, a vida com a melhor qualidade possível.

No período pós transplante existe uma miríade de fatores que influenciam a sobrevivência pelo que é fundamental um bom acompanhamento de follow-up (Bucuvalas, Alonso, Magee, Talwalkar, Hanto & Doo, 2008). De forma a melhor compreender a evolução no follow-up de um cliente transplantado hepático é fundamental ter em consideração fatores centrados no dador, no recetor e no procedimento cirúrgico (Rana, et al., 2008).

“A seleção de um dador apropriado é crucial no sucesso do transplante hepático” (Mehrabi, Fonouni, Muller, & Schmidt, 2008, p. 250). As causas de morte dos dadores em Portugal são maioritariamente de origem médica (78% em 2015), estando na sua base o acidente vascular cerebral em 66% das mortes (IPST, 2016). Ao longo dos anos a idade média dos dadores tem vindo a aumentar, passou de 47,20 anos em 2009 para 51,27 anos em 2010, variando entre os 2 anos e os 79 anos, pelo que a percentagem de dadores com mais de 60 anos aumentou em 2010, com 34% dos dadores neste grupo (30% em 2009) (ASST, 2010). Num estudo desenvolvido por Ferla e colaboradores (2016) a sobrevivência dos enxertos de dadores mais velhos é pior, demonstrando uma sobrevida melhor apenas em clientes com hepatocarcinoma, pelo que aconselham a utilização destes órgãos apenas em pessoas com diagnóstico de hepatocarcinoma. Dada a escassez de órgãos os centros de transplantação têm necessidade de aceitar enxertos de qualidade inferior e com potencialidade de piores resultados após o transplante (Orman, et al., 2015), pelo que o acompanhamento próximo destes clientes é extremamente relevante.

Durante o acompanhamento é importante ter em consideração as complicações que podem surgir centradas no recetor, tais como rejeição aguda ou crónica, infeção, complicações biliares e recidiva da doença que conduziu ao transplante (Yang, Shan, Saxena, & Morris, 2014).

Contudo, “o sucesso da cirurgia depende, em princípio, do diagnóstico da doença de base, da determinação da sua extensão e do grau de repercussão sistémica” (Castro-e-Silva, et al., 2002, p. 83), ou seja, o estadio de avanço da doença hepática pré transplante tem impacte no período pós transplante, pelo que poderá haver benefício no transplante precoce, abonando a favor a boa condição do cliente pré transplante.

Na perspetiva de Bucuvalas e colaboradores (2008) durante o período de follow-up deve ser prioritária a sobrevivência do enxerto com a respetiva monitorização da imunossupressão e bioquímica, pelo seu grande impacte na qualidade de vida sendo necessário para isso uma boa gestão do regime terapêutico.

No que se refere aos critérios identificados em estudos de follow-up como tendo impacte no sucesso da transplantação temos a idade, o sexo, o tempo de isquemia quente e os testes bioquímicos da função hepática (bilirrubina, INR, albumina, creatinina, transaminases) (Hickman, Potter, & Pesce, 1997; Bjornsson, et al., 2005; Marmur, Bergquist, & Stal, 2010). Na perspetiva biomédica a combinação dos testes bioquímicos da função hepática com os testes histológicos, permite prever a presença de complicações pós transplante.

As alterações verificadas nos parâmetros bioquímicos da função hepática manifestam-se num conjunto de sinais e sintomas clínicos (de natureza qualitativa), no domínio dos processos corporais (cfr. ICN, 2011), tais como a retenção de líquidos (ascite e edemas), a encefalopatia, o prurido, as perdas sanguíneas, a dor abdominal; que são resultado, frequentemente, da rejeição ou da degradação da função do órgão enxertado (Maddrey & Sorrell, 1995).

Os testes da função hepática são realizados por rotina ou quando existem alterações prévias nos dados analíticos. A intervenção a implementar depende da severidade e tipo de alteração (colestática, hepática ou outra), contudo, quando não há perceção de sintomatologia recomenda-se repetir os testes analíticos entre 1 a 2 semanas (Lucey, et al., 2012). Em síntese, é da combinação entre aquilo que é a perceção do conjunto de sinais e sintomas indicativos da alteração da função hepática e, dos próprios resultados dos testes bioquímicos, que é tomada a decisão clínica quanto à sistemática do acompanhamento do cliente, em função da presunção do nível de risco que lhe está associado.

Na perspetiva de Mehrabi e colaboradores (2008) o follow-up do cliente submetido a transplante hepático deve realizar-se aos 1, 3, 6 e 12 meses e, depois todos os 6 meses, nos

41 quais se realizam testes analíticos. O acompanhamento poderá ser mais apertado se houver suspeita de rejeição ou trombose da artéria, ou seja, se houver uma causa fisiopatológica que o justifique.

Foram efetuados estudos de forma a conseguir predizer a sobrevida dos clientes submetidos a transplante hepático. Neste âmbito, há estudos que recorrem ao Model for End-stage Liver Disease (MELD) (Habib, et al., 2006), contudo, a sua utilização neste âmbito não é consensual na comunidade científica (Ishigami, et al., 2008).

Em Portugal, o score MELD é utilizado para priorização dos clientes em lista de espera. O score MELD é descrito sob a forma de equação matemática e utiliza a bilirrubina, INR (International Normalized Ratio) e a creatinina, e será prioritário o cliente com maior score. É calculado de acordo com a seguinte fórmula: MELD = 3,78[Ln bilirrubina sérica (mg/dL)] + 11,2[Ln INR] + 9,57[Ln creatinina sérica (mg/dL)] + 6,43.

Um conjunto de investigadores alemães desenvolveu um score de prognóstico da sobrevivência após transplante hepático (SALT). É calculado de acordo com a seguinte fórmula: SALT = 0,04 x idade (anos) + 0,003 x creatinina sérica (µmol/l)] - 0,349 x colinesterase (kU/l). A sua utilização em Portugal é limitada, uma vez que não é frequente a análise à colinesterase.

Este score não inclui os parâmetros do dador, ao contrário do score Survival Outcomes Following Liver Transplant (SOFT) desenvolvido nos Estados Unidos que prediz a sobrevida do cliente transplantado aos 3 meses, enquanto complemento ao score MELD (Rana, et al., 2008).

Todos estes scores têm centralidade em processos bio/fisiopatológicos que, nesta fase, dependem pouco do controlo pessoal. Contudo, e centrados no recetor, os indicadores anteriores dependem em grande parte dos comportamentos e da atitude que este apresenta face à sua condição de saúde/doença e ao seu tratamento.

Assim, a gestão da doença crónica deve incluir um aumento do suporte ao autocuidado; um fortalecimento dos cuidados de saúde primários; oferta de uma resposta especializada; e uma boa gestão dos casos vulneráveis, antecipando as suas necessidades (Mota, 2011). Isto porque, as situações de incumprimento do regime terapêutico podem desencadear graves problemas de saúde, com repercussões pessoais, mas também económicas para o serviço nacional de saúde (Arenas-González, Padín-López, & González-Escobosa, 2012). Os comportamentos de não seguimento do regime terapêutico estão diretamente relacionados com as causas de morbilidade e mortalidade dos clientes transplantados (Stilley, et al., 2010), evidenciando-se as doenças cardiovasculares e a falência renal como as principais causas

não hepáticas de mortalidade e morbilidade tardia após transplante hepático como demonstra a tabela 1 (Lucey, et al., 2012).

Tabela 1: Prevalência dos fatores de risco cardiovasculares e doença renal crónica durante o primeiro ano após transplante hepático (adaptado de Lucey, et al., 2012)

Taxa de prevalência Fatores de risco cardiovascular

Síndrome metabólico1 Hipertensão Diabetes Mellitus Obesidade Dislipidemia Fumador 50%—60% 40%—85% 10%—64% 24%—64% 40%—66% 10%—40%

Doença renal crónica (estadio 3-4)2 30%—80%

Doença renal terminal 5%—8%

1 - Qualquer três dos seguintes: hipertensão, obesidade, dislipidemia e diabetes 2 - Taxa de filtração glomerular 15 para <60 mL/minuto/1.73 m2

Em resultado do impacte das causas de mortalidade e morbilidade na gestão da doença crónica hepática torna-se fundamental orientar os clientes ao longo de todo o processo desde o pré ao pós transplante, para que estes façam as melhores escolhas. Esta orientação deve ser efetuada através de meios de comunicação eficazes, encorajando comportamentos desejáveis ao “sucesso” do transplante e ajudando a retomar a vida quotidiana reintegrando- os socialmente (Baldoni, et al., 2008).

Contudo, o sucesso nas práticas clínicas depende da experiência dos profissionais de saúde, da participação ativa dos clientes e famílias no plano terapêutico (Baldoni, et al., 2008). Dada a complexidade do procedimento cirúrgico do transplante hepático, o seu sucesso depende de uma complexa infraestrutura hospitalar e de uma equipe multiprofissional altamente treinada no procedimento e no acompanhamento dos clientes gravemente debilitados, já imunossuprimidos pela doença (Nogara, Wiederkher, Benghir, Zalli, & Helena, 2009).

Através do acompanhamento do indivíduo e, com o reconhecimento dos condicionalismos pessoais que podem influenciar a forma como o indivíduo desenvolve mestria (Meleis, Sawyer, Messias, & Schumacher, 2000; Meleis, 2007) no cuidado da sua saúde, poder-se-á desenvolver modelos de gestão de casos. Os modelos de gestão de casos são um enorme contributo no desenvolvimento de populações mais saudáveis, para as quais os enfermeiros podem ser mais significativos.

43 Baldoni e colaboradores (2008) desenvolveram, em Itália, um modelo de acompanhamento do cliente transplantado, desde o pré ao pós transplante hepático. Este modelo tem como objetivo fornecer uma eficiente educação aos clientes, colmatar as necessidades de aprendizagem dos profissionais de saúde no que se refere ao “que ensinar” e “como ensinar” os clientes, adquirir meios de comunicação eficazes e monitorizar o processo de educação. A avaliação de componentes psicossociais tem impacte significativo nos resultados da transplantação e inclui a evidência do seguimento das diretivas médicas, suporte familiar no período peri-operatório, e ausência de doença psiquiátrica com impacte na gestão do regime terapêutico que inclui comportamentos prejudiciais à saúde (como o consumo de álcool, tabaco ou uso de drogas) (Martin, DiMartini, Feng, Brown, & Fallon, 2013).

A componente psiquiátrica assume extrema relevância na avaliação dos clientes uma vez que os estudos demonstram que 52% dos clientes evidenciam doença psiquiátrica como depressão, ansiedade, problemas de compreensão, concentração e memória; e 13,3% tiveram necessidade de tomar medicação para problemas psiquiátricos no passado durante 30 dias (Weinrieb et al., 2001).

Apesar do impacte da doença psiquiátrica esta não é contraindicação definitiva para transplante, pelo que pessoas com doença psiquiátrica severa com adequado suporte social podem ter ótimos resultados a longo prazo (Martin, DiMartini, Feng, Brown, & Fallon, 2013). Deste modo, na avaliação das pessoas com doença psiquiátrica ou consumo de substâncias ilícitas deve ter-se em consideração toda a sua rede de suporte social, identificando o cuidador que dará suporte em toda a logística da saúde e que assegura a toma adequada da medicação (Martin, DiMartini, Feng, Brown, & Fallon, 2013).

Assim, é de extrema relevância as questões comportamentais na gestão da saúde/doença após transplante hepático. A forma como a pessoa é capaz de se autocuidar após transplante hepático tem impacte significativo na sua qualidade de vida e no sucesso do transplante.