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3. Religiosidade e agregação

3.1. O triunfo do coro

Uma das principais indagações que busquei fazer no processo de pesquisa procurou questionar a razão pela qual os valores estéticos contidos nas apresentações das Escolas de Samba brasileiras não figuravam como parte sistemática dos Estudos de Teatro, no Brasil. A resposta tinha por objectivo, situar a relevância do meu objecto de estudos, um espectáculo de

rua, orientado pelos fundamentos estéticos que conduzem os desfiles carnavalescos das metrópoles brasileiras. A questão remeteu ao processo de constituição das expressões cénicas desde o processo de colonização, assinalando para a prioridade que tem sido dada às experiências enquadradas num determinado “sistema teatral”, assemelhado ao encontrado na Europa, ao longo dos séculos. Encontrei argumentos plausíveis para defender que havia um recorte de classe a marginalizar espectáculos de rua, inspirados em tradições ibéricas, mas que nem sequer são reconhecidos como pertencentes ao campo das artes cénicas ou performativas, sendo encontradas como objecto de atenção, com maior frequência, no campo disciplinar das Ciências

Sociais51. A questão da distinção de classes sociais surgiu como um dos

factores da exclusão, no Brasil, alinhados com o enfraquecimento económico de determinadas regiões, algo que representou uma explicação parcial para o fenómeno, ao menos se pudesse acreditar que se trataria de um episódio exclusivo ou particular da realidade brasileira. Num sentido alargado, a “cultura transplantada” para o Brasil, carregou consigo os vícios e as virtudes registadas na origem. Um dos males herdados foi exactamente a desvalorização das expressões colectivas de sentido comunal de entre as artes performativas, cujo paradigma foi estabelecido no epitáfio do Teatro grego.

Tratou-se do momento em que, nas origens do teatro Ocidental, o protagonista se desgarrou do coro. Em meus estudos sobre o espaço cénico e relações de representação, desenvolvidos no primeiro nível da pós-graduação, tracei o percurso através do qual a disposição circular, ao redor do sacrifício ofertado a Dioniso, evoluiu até à moldura cénica do palco frontal, a contornar a abertura da caixa óptica, desde o teatro à italiana (SOUZA, op. cit., pp. 29-35). Agora, a partir do cruzamento de semelhantes informações herdadas pela tradição, depositei a atenção sobre o lugar do trabalho de actor desde a Antiguidade Clássica, passando pelo Renascimento, ao longo do qual temos a valorização crescente da individualidade em detrimento do coro.

A compreensão do que teria sido o teatro na Grécia nos é oferecida,

fundamentalmente, pela “Ars Poética”, onde Aristóteles (2015) defende como

sendo o ditirambo a matriz, a partir da qual evoluiu o espectáculo. As grandes festas e o cortejo em louvor a Dioniso culminariam em um acto sacrificial

oferecido no altar, “thymele”, dedicado ao deus. Nesse quadro, pouca

referência se faz à distinção entre os participantes, até o atrevimento atribuído a Téspis ao personificar a divindade, algo que teria levado a que acção una e

colectiva passasse a se converter em narrativa52, logo, distinguindo

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Temas como o Bumba-meu-boi, do Maranhão, as Congadas, do sudeste brasileiro, O Cavalo-Marinho, de Pernambuco, entre outras “Danças Dramáticas”, são encontradas com frequência em estudos promovidos nos campos da Antropologia ou da Sociologia.

52 “Psístrato, o sagaz tirano de Atenas que promoveu o comércio e as artes e foi o fundador das Panatenéias e das Grandes Dionisíacas, esforçou-se para emprestar esplendor a essas festividades públicas. Em Março de 534 a.C., trouxe da lendária Icária para Atenas o actor

gradativamente o rito do espectáculo, assim como, a exigir o surgimento de funções especializadas e hierarquizadas. A acção destacada do conjunto está contida na própria etimologia da palavra protagonista, caracterizando a acção

destacada, “prótos”, exercida por aquele que se envolve em um confronto,

“agonistès”. Por contraste, a acção do coro não traria envolvimento directo com o conflito, ainda que coubesse a ele opinar, ponderar, evoluir, cantar e dançar, mantendo-se fisicamente afastado do herói trágico, dadas as delimitações

inscritas na área de representação, “skéne” e “orkhestra”. No enquadramento53

do teatro da Antiguidade é impossível afirmar que o coro não fosse relevante, ao contrário, bastando referir a atenção dedicada por Aristóteles para descrever o movimento de entrada e saída do conjunto, parábases e “eisodos”,

assim como a necessidade de direcção especializada, “chorodidaskolos”,

deixando clara a contribuição coral no desenvolvimento do “mythos” (op. cit., pp. 17-18). Contudo, segundo a bibliografia disponível, no período final da era de Péricles, época em que Eurípides destacou-se como tragediógrafo, se registrava a redução gradativa dos integrantes do coro, a tal ponto que a partir do teatro romano, a “orkhestra” deixava de figurar como área de representação, passando o palco a exercer essa função com exclusividade. O herói mantém- se sobre o tablado, orientando o sistema teatral ocidental para o percurso crescente da individualização.

À luz dos meus argumentos, a Idade Média correspondeu a um lapso histórico, logo após o qual a valorização da singularidade individual encontrou terreno fértil com a sociedade renascentista. As condições concretas que cercavam esse contexto orientaram as forças produtivas do mundo ocidental e suas formas de representação. Politicamente, o Estado Absoluto era encarnado pela figura do príncipe; e economicamente, a expansão mercantil foi obra do comerciante; ambos encarnavam a vontade livre do indivíduo dotado

da “virtú”, logo, apto a superar obstáculos contrários aos seus objectivos

(BOAL, 1980). Desde o Renascimento, portanto, os valores dessas classes dominantes buscaram representação em cena, observadas na dramaturgia e na arquitectura cénica, destacando a interpretação individual.

Téspis, e ordenou que ele participasse da Grande Dionisíaca. Téspis teve uma nova e criativa idéia que faria história. Ele se colocou à parte do coro como solista, e assim criou o papel do hypokrites (‘respondedor’ e, mais tarde, actor) que apresentava o espectáculo e se envolvia num diálogo com o condutor do coro” (BERTHOLD, op.cit., pp.104-105).

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Na busca pela definição do teatral na contemporaneidade, Josette Féral parte da ideia de “transcendência da teatralidade”, “qualidade quase universal e presente no homem antes de todo ato propriamente estético” (2015, p. 88). Segundo a autora, a noção de jogo é fundamental ao desenvolvimento do ato teatral, “cujos objectivos, intensidade e manifestações variam de um indivíduo a outro, de uma época a outra e de um género a outro” (op. cit, p.94). A “moldura de acção”, herdada da noção de jogo, corresponde a padrões estéticos historicamente constituídos, logo, não universalmente válidos. Convocando Goffman, Féral avança na distinção entre “moldura”, um conceito dotado de maior rigidez, em favor de “enquadramento”, caracterizado por “sublinhar o carácter dinâmico do processo” (idem, ibidem). Josette Féral (2015) Além dos limites: teoria e prática do teatro1 edn. São Paulo: Perspectiva.

De forma coerente, a arquitectura cénica alcançou a tipologia ideal com o palco à italiana que, empregando a perspectiva linear, tomava como ponto de fuga central a visão à partir do “lugar do príncipe”. As linhas de construção eram projectadas até aos limites da moldura da caixa óptica, constituindo um espelho no qual a individualidade estava reflectida entre o monarca e o protagonista. No plano da escritura cénica, a valorização do agente individual se estende até à crise do drama burguês, como bem aponta Szondi (2001, pp. 29-30), quando o diálogo intersubjectivo figurava como motor da acção, assim como a hierarquia se fazia notar nos tratados de dramaturgia, bastando recorrer à proposição piramidal de Hegel sobre a escalada quantitativa do drama em direcção ao ápice, operada em atendimento ao conflito principal, após o qual se descreve a curva descendente em busca do desfecho (PALLOTINI, 1983, pp. 19-20). Em síntese, as condições objectivas solicitavam ao teatro atender aos ditames do poder político e económico, sem os quais a produção se tornaria inviável, ou marginal, servindo as regras do Neoclássico francês como principal referência (CARLSON, 1995, pp. 87-105).

Em meio às suas contradições, a revolução burguesa, ao destituir a ordem aristocrática, consolidou a perspectiva social e económica alicerçada na iniciativa pessoal. O pensamento liberal passou a prevalecer de modo que a produção teatral também obedeceria às regras de mercado. As produções dependiam, doravante, da parcela da sociedade dotada de condições para arcar com o valor dos ingressos: o público consumidor. Um segmento do teatro se lançou com maior desenvoltura na disputa pelo mercado do entretenimento, de modo que ao longo do século XIX, o desempenho do primeiro actor,

também conhecido como “vedeta”, figuraria como importante factor de atracção

de público54.

Tal mentalidade aportou no Brasil, como demonstrou a citação de Décio de Almeida Prado abordando a transferência da companhia encabeçada por Ludovina Soares da Costa para o Rio de Janeiro, em 1829, apresentada nos seguintes termos: “a melhor que existia no mercado, com cerca de vinte pessoas, distribuídas harmoniosamente segundo a hierarquia habitual do

palco” (PRADO, 1999, p. 34, grifo do autor). A hierarquia habitual, nesse caso,

corresponde ao desempenho prestigiado do primeiro actor, ao redor do qual orbitavam os astros de menor grandeza, configurando um sector da produção teatral economicamente viável que, aclimatado no Brasil, ficou conhecido como “companhia de atores empresários”, até aos anos 50 do século passado.

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Um ponto de clivagem se acentuou entre as perspectivas dos dramaturgos e encenadores que se opuseram a noção do teatro como mero entretenimento, desde o Romantismo. As posições de Antonin Artaud são emblemáticas nesse sentido. No entanto, as contradições exaladas entre os compromissos socioculturais do teatro e sua capacidade efectiva de produção continuam a figurar como desafio.

Os estatutos estéticos na Modernidade foram revolucionados com o desenvolvimento dos sistemas de reprodução da imagem, como bem apontou Benjamin (1996), exercendo influência sobre o mercado do entretenimento, nomeadamente com o aperfeiçoamento do cinema como parte da Indústria

Cultural. Num plano geral, a “produção em série” demonstrou extraordinária

capacidade de absorção de técnicas e procedimentos dos sistemas artísticos que a antecederam. Com relação às artes do espectáculo, a valorização do

protagonista converteu-se no “star system”, a transcrição em língua inglesa

para o conceito de “vedeta”. O alcance do cinema, e por extensão as modernas

produções audiovisuais, fizeram uso desse “modelo de negócios”, cultivando a

imagem do “primeiro actor” como “factor dinâmico” dessa economia.

Embora não se possa confundir a natureza distinta entre o teatro e a produção audiovisual, em sua fase incipiente, o teatro identifica essa concorrência, constituindo mais um ingrediente que contribuiu para a ruptura da arte moderna com a passividade, paradigma do surgimento das performances. Era preciso ofertar ao público algo que não poderia ser encontrado no palco frontal ou na sala de cinemas, a possibilidade de contacto directo entre realizadores e assistentes. Em contrapartida, tais esforços não impediram que, visto do lugar-comum, a moldura da caixa óptica e o “ecran” oferecessem a mesma recepção passiva. Se entre os produtores teatrais parece clara a distinção face à Industria Cultural, não me parece razoável negar que o público apresentará tendência a procurar, no palco, os actores e actrizes que passa a encontrar nos “écrans”, de modo que o actor se tornou refém do protagonismo.

No sentido contrário, voltei á Antiguidade Clássica quando, após o desaparecimento do império grego, em Roma, ao lado do enfraquecimento e supressão do coro do edifício teatral, as Saturnais, enquanto grandes celebrações públicas, permitiram que as ruas fossem invadidas pelo poder renovador do riso, dando origem, segundo Bakthin, aos delírios do carnaval

(1987, p. 5). “Stricto sensus”, o carnaval não se configuraria como uma forma

espectacular, visto que em seu quadro performativo não havia distinção entre actores e espectadores (op.cit., p. 6). O fenómeno compreende, até aos dias de hoje, o estado de comunhão e a suspensão de fronteiras entre o real e o imaginário, quando os elementos de representação assumem lugar prioritário na vida.

Enquanto dura o carnaval, não se conhece outra vida senão a do carnaval. Impossível escapar a ela, pois o carnaval não tem nenhuma fronteira espacial. Durante a realização da festa, só se pode viver segundo as suas leis, isto é as leis da liberdade. O carnaval possui um carácter universal, é um estado peculiar do mundo: o seu renascimento e renovação, dos quais participa cada indivíduo. Essa é a essência do carnaval, e os que participam dos festejos sentem-no intensamente (idem, ibidem).

No esforço de determinação das matrizes da obra de François Rabelais (1493-1553), Bakhtin ofereceu uma rigorosa análise das expressões cómicas herdadas da Idade Média, no amplo quadro da carnavalização. Nesse momento histórico, a festa se caracterizava como o “triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente” (op. cit., p.

8)55. Dialecticamente, em momento em que a componente religiosa era

determinante, o carnaval se opunha à festa oficial consagradora da desigualdade, organizada pelo Estado feudal e pela Igreja, rompendo fronteiras entre o sagrado e o profano, mas ao mesmo tempo estimulava a expressão colectiva pela qual o homem aspirava ao contacto com sua dimensão cósmica. Os traços oriundos dos rituais que estiveram nas origens do teatro ocidental, caracterizados pela relação com o tempo, estão presentes na obediência aos ciclos correspondentes aos fenómenos da natureza, onde os princípios de renovação, morte e ressurreição eram representados.

O autor russo defendeu que entre o “mundo infinito das formas e

manifestações do riso”, seria possível identificar unidade de estilo na cultura carnavalesca medieval e renascentista, categorizadas entre “formas de ritos e espectáculos”, “obras cómicas verbais” e “formas e géneros do vocabulário familiar e grosseiro” (BAKHTIN, op. cit., p. 3). Relacionadas ao primeiro item, cita o “rico cortejo dos festejos públicos (durante o qual se exibiam gigantes, anões, monstros e ‘animais sábios’)”, assim como se referiu a “obras cómicas representadas em praça pública”, derivadas da cultura carnavalesca. Não menos, o riso atingia as celebrações oficiais, de modo que “a representação

dos mistérios e ‘sotiés’ dava-se num ambiente de carnaval” e “o riso

acompanhava as cerimónias e ritos civis da vida cotidiana” através da paródia

e da inversão de hierarquia56 (op. cit., p. 4).

Rosenfeld (2008) acompanha o pensamento de Bakhtin na exposição dos traços épicos contidos no teatro medieval ao afirmar que:

o mesmo interesse amplo, a mesma atmosfera de culto ou festa encerra no seu círculo mágico, desde o início tanto o palco como o público; a causa é comum, o próprio público promoveu o espectáculo e participou da sua elaboração, boa parte dos atores é constituída por leigos e conhecidos (ROSEFELD, op. cit., p. 50).

O autor reitera o sentido colectivo relacionado com os autos, “onde participava e colaborava toda uma cidade com suas corporações artesanais,

55 Maria Isaura Pereira de Queiroz questiona as proposições de Bakthin na análise que faz sobre o Carnaval nas cidades como Tatuí, Piracicaba e São João Del Rey, onde são

reafirmadas a ordem vigente e as distinções sociais. Apesar da qualificada exposição feita pela autora, os conceitos de Bakthin empregados fora de contexto: o carnaval na Idade Média e Renascimento europeus como matriz para compreensão da obra cómica de Rabelais

QUEIROZ, M. I. P. d. (jun.1995) 'A ordem carnavalesca.', Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, (no. 1-2), pp. 27-45..

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O Rei Momo é herdeiro da tradição de eleição de reis e rainhas para rir, durante as festas carnavalescas desde a Idade Média (BAKHTIN, op. cit., p.4).

quer como executantes, quer como produtores e espectadores”. A finalidade didáctica e popular desse teatro de tema religioso feria as normas da dramática rigorosa, procurando tratar de epopeias bíblicas convertidas em “conto dramático ilustrado por cenários e personagens” (ROSENFELD, op. cit., p. 47). Atender a um conteúdo de tamanha proporção exigia o emprego de complexa e grandiosa maquinaria cénica e caracterização de personagens, de modo que os elementos visuais eram essenciais ao desenvolvimento dos enredos, assim como a palavra era empregada na sua forma coral e musical por atores que eram “portadores´ das personagens”, nunca seus “criadores, ou recriadores” (op. cit., p. 50).

Bakhtin situa o estado do carnaval como derivado do crescimento dos elementos profanos brotados da própria festa religiosa medieval e renascentista, antes mesmo da tentativa de reclusão da festa no limite temporal do intervalo suspensivo que antecede a Quaresma. Portugal oferece vários exemplos vivos como prova de que a afirmação permanece válida. Cito, por experiência as Festas de Lisboa, um indiscutível carnaval, em homenagem a Santo António, enquanto no Porto é São João o celebrado. Herança indiscutível, a homenagem aos santos José, Pedro e João, são consagradas em praticamente todos os lugares do Brasil. Com nítido vigor performativo, é impossível não destacar os festejos de São João em determinadas cidades

nordestinas57, uma marca identitária que atrai viajantes, pesquisadores e,

inclusive, turistas.

Do carnaval, no sentido alargado bakhtiniano, vamos delimitar o termo,

classificado como o evento que “situa-se no calendário romano, marcando o

período que antecede a aparição de Cristo [ressuscitado] entre os homens”

(DAMATTA, 1997), a Quaresma. Preservado o sentido universalista e transcendente entre pólos opostos, desde o medievo, “um tempo de licença e abuso, o Carnaval conduz de modo aberto à focalização de valores que não são somente brasileiros, mas cristãos” (op. cit., p. 54), trazido para o Novo Mundo junto com as caravelas portuguesas. A abordagem de Damatta sobre o

carnaval reside sobre o sentido sociológico da festa, pertencente ao “universo

dos acontecimentos extraordinários” do mundo cotidiano, no qual estão “contidos os eventos previstos e imprevistos pelo sistema social”, subdivididos entre aqueles “altamente ordenados” e os “dominados pela brincadeira, diversão e/ou licença” (DAMATTA, op. cit., p. 49, grifos do autor). Interessaram- me a mim, por ora, as aproximações entre os festejos do Carnaval e os

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O culto aos santos católicos, no Brasil, compreende o “ciclo junino”, parecido com “joanino”, em referência ao período do mês, a celebrar em conjunto, José e João. Carregado de

elementos oriundos da tradição rural, nos bairros periféricos, nas vilas das pequenas cidades, nas capitais regionais de tradição católica, a festa preserva padrões similares nos diversos cenários culturais. No Nordeste, porém, o centro da festa sugere a manutenção da herança portuguesa, exaltando em particular a São João.

eventos de ordem religiosa, nomeadamente a Semana Santa, e o sentido comunal a integrar os grupos ou categorias sociais promotoras desses eventos. Intrinsecamente ligado à Quaresma, o carnaval contrasta com a contrição do culto reencarnacionista, por tratar-se de festa nocturna cujas formas são os bailes e desfiles, mas isso não autoriza a negar que “o tempo do carnaval é cósmico e cíclico, colocando-os [os participantes] em contacto com o mundo do sagrado, do divino e do sobrenatural” (DAMATTA, op. cit., p. 55),

onde a rua, em oposição à rotineira casa, é o espaço ritual. Como “comunhão

ritual” a festa religiosa, assim como o carnaval, é portadora da herança simbólica dos cultos à fertilidade e fecundidade, logo, se encontra, diametralmente oposta à individualidade, portanto, sendo incapaz de manifestar-se sem a produção colectiva.

A descrição sobre a organização das escolas de samba, tema ao qual me deterei, em breve, assinala o papel da vida comunitária, na produção da festa:

(…) os desfiles são organizados e levados a efeito por meio de organizações privadas (como as escolas de samba ou blocos do Rio de Janeiro) que em geral reúnem, como corpo permanente, pessoas das camadas mais baixas da sociedade local. As organizações são no Brasil, associações voluntárias, e podem estar centralizadas em bairros, simpatias pessoais, classe ou mesmo região de origem dos fundadores, o que significa acentuar seu carácter de grupo aberto e movido por múltiplas relações sociais e princípios ordenadores. De fato, eles se constituem com o carácter de clube e a sua ideologia é a comunitas, no sentido que Turner empresta a esse termo (DAMATTA, op. cit., p. 57).

De modo geral, em seu sentido popular, os blocos e escolas de samba, assim como, as Festas de São João, nordestinas e portuenses; as Festas de Lisboa, em louvor a Santo António, entre tantos outros exemplos, são eminentemente fenómenos colectivos, tanto no processo de preparação quanto no desenvolvimento do enredo da festa. Os destaques, inclusive a representação das autoridades políticas ou religiosas, não se sobrepõem à colectividade, pois sua unidade comunitária protagoniza aquele evento. Se pudesse aceitar que as festas religiosas se diferem dos cortejos das escolas de samba, na medida em que os últimos são claramente espectaculares, ou seja, feitos para a fruição de uma plateia, reitera-se a singularidade dos desfiles das Escolas de Samba, em sentido de redenção face à sobrevalorização da individualidade no Teatro, representando, portanto, a expressão mais autêntica do “triunfo do coro”.