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2. Constelações sociais, performance e cultura 1 Discurso ideológico lacunar

2.2. Período colonial

2.2.2. O destino das pessoas no sentido da colonização A chegada dos navegantes lusitanos ao Novo Mundo foi parte de um

2.2.2.4. Teatro popular de matrizes ibéricas

As considerações trazidas por Franco demonstraram como a natureza

tolerante da Companhia de Jesus, influenciada pela “performatividade latente”

do ambiente tropical, levou a que os religiosos estabelecessem estratégias de partilha com os povos originários, em respeito ao seu “modus vivendi”, incluindo aspectos das suas formas de representação, com intuito da gradativa conversão ao Cristianismo. O que havia de, tendencialmente, inclusivo e humanitário no modelo missionário jesuítico fora confrontando, em tensões ascendentes, com os interesses trazidos pelo avanço da “grande lavoura” e da “febre do ouro”, robustecidas pelos “factores dinâmicos da economia” mercantilista. Seguindo as directrizes económicas do Mercantilismo, encontrava-se justificativa para a apropriação das terras e, para naturalizar o instituto da escravidão, a apelar-se a defender que perante a Deus, haveria desigualdade antropológica entre europeus e não-europeus.

Mesmo que a maior parte das batalhas tenham sido perdidas pelos jesuítas desde então, o projecto de escravidão massiva dos nativos não prosperou, por razões ligadas, não só à protecção, mas também, à índole e à saúde dos povos originários. Sem que se alterassem os fins, o projecto de colonização encontrou, igualmente, por razões económicas, outros meios para extrair a força da mão-de-obra, com a captura de seres humanos nas colónias portuguesas, em África. Enquanto o fluxo de “navios negreiros” crescia progressivamente, entre África e América, no território brasileiro, as aldeias restantes estariam protegidas, quanto mais distantes pudessem se manter das “terras de branco”, os núcleos coloniais litorâneos.

Ocorre não esquecer que, mesmo na Europa, indivíduos moralmente indesejáveis, também eram “convidados” ao “retiro espiritual”, no Purgatório, apartados, por serem incapazes de reconhecer as regras consideradas indispensáveis ao convívio social na corte. A base económica com a qual seriam identificadas as situações de exclusão, me parece indiscutível. Desse modo, a propriedade, não constituindo “conflito de interesses” directos, unia ambas as entidades sociais, Estado e Religião, em defesa do interesse comum: como administrar o excedente de mão-de-obra servil. A corte, a sociedade composta pelos nobres que foram aceitos a ter fixação nos limites do castelo, era obrigada, junto com o clero, a administrar, de um lado, a necessidade dos serviçais e, o do outro, como aceitar a conduta e os contactos sensoriais com a plebe. A caracterização das ameaças fora irradiada desses dois pontos de reverberação, o fluxo da relação laboral, em condição servil, e a incidência de atentados contra a pessoa e contra a propriedade. Um dos inconvenientes do contacto com os miseráveis fazia com que a nobreza não pudesse, por exemplo, ostentar sua riqueza livremente, sem o risco de ser atacada por gente que passava fome. Sem ultrapassar a contradição entre eliminar os miseráveis ou erradicar a miséria, os valores elevados da corte

corriam o risco de serem contaminados pela proliferação de sangue plebeu, com ingresso crescente de fidalgos vindos da nobreza baixa, no círculo da corte.

Os pilares da conduta moral, nesse instante da História, para os europeus, logo, transversal aos “conflitos de classe”, era a “fé católica”. Nesse quadrante do desenvolvimento humano, o líder espiritual era reconhecido como inseparável do político, em praticamente todos os quadrantes documentados do globo. A Europa civilizacional enfrentava um dilema entre atender a missão salvacionista da doutrina cristã, ou separar os interesse e conduzir a sociedade para que aceitasse um Estado laico. O tema se esboçava em meio à ebulição do cisma protestante. Para a Igreja Católica, ainda predominante na Europa, os mitos apocalípticos do Velho Testamento se instrumentalizavam na forma dos Tribunais da Inquisição. Postas em xeque, estavam as monarquias, a

indagarem-se sobre a conveniência de acompanhar a “práxis” da Entidade

Religiosa, mas a relação entre a propriedade e a servidão, permanecia intocada, enquanto constante histórica.

Não pode haver receio em afirmar, que a maioria das pessoas destinadas aos coutos era contida em “reservas”, nas quais deveriam ficar até

ao momento em que estivessem devidamente domesticadas. A “discriminação

antropológica” estava contida no sistema do trabalho servil, mas ministrando profilaxia dirigida aos sintomas e não à doença, acabando por ser considerado mais cómodo, fazer aceitar aos mais carenciados que os crimes eram atribuídos à porosidade moral de cada um, por onde penetrava o pecado, ao invés de percebidos como resultantes da pobreza material. Por extensão, os degredados para o Brasil eram “despossuídos”, gente que perdera tudo o que tinha no reino; nunca nele, nada tivera; ou corria o risco de jamais reaver a suas posses.

A “performatividade latente” do clima tropical não teria influenciado apenas aos jesuítas, mas também aos demais portugueses, que, livres do controlo do Estado, tinham espaço para dar vazão aos seus apetites em terras brasileiras. A conduta de parte dos degredados, como bem apontou Pieroni, oferecem crédito ao argumento de Cafezeiro e Gadelha, referente ao destino das obras anchietanas, cujos signos relativos ao pecado deveriam surtir mais efeito sobre os europeus do que sobre os nativos, algo que não excluía os esforços de conversão dos “gentios”.

Se posso considerar que as fontes ofereceram sentido mais alargado ao trabalho jesuítico no Brasil, com base na recomposição do quadro social do período colonial, coube reflectir sobre a tese da lacuna teatral, fundamentada na ausência ou escassez de produção dramatúrgica. Como citado, os autores fluminenses elencaram um número relevante de manifestações teatrais além daquelas produzidas por José de Anchieta, acrescidas da menção a formas

encenadas de carácter popular, desconsideradas nas obras comparadas. Saliento que não estou a depositar a atenção simplesmente na existência de novas fontes, mas buscando compreender o processo pelo qual se construiu o “discurso ideológico lacunar”, ou seja, identificar os “critérios de selecção” que, até hoje, em termos da História, permitiram com que o sentido mais alargado

da “performance” ficasse ensombrado pela nuvem da dramaturgia. Para tanto,

retomei o percurso com a atenção para os traços da cultura e para a organização social que distinguiam, não apenas, os nativos e os negros, mas também os brancos, numa sociedade de classes.

O sociólogo francês Roger Bastide, responsável por importantes obras de análise sobre a religiosidade dos negros, no Brasil, desde 1960, não poderia deixar de estabelecer correspondências entre a religião e o conjunto da sociedade esclavagista. Seus argumentos indicaram os processos de adaptação à realidade nos trópicos, inclusive o combate às “tentações” trazidas pela ecologia sul-americana. Uma vez mais, lembrou que o lugar de desejo dos primeiros colonos situava-se em tentar reproduzir, no Além-mar, os hábitos da cultura portuguesa. Do cavalo às sementes, do granito ao mármore, da

administração à religião, a vontade era edificar a “Nova Lusitânia” aos moldes

do reino (BASTIDE, 1989, p. 55).

Como não poderia deixar de ser, a hierarquia social foi levada na bagagem, a guardar semelhança com aquela que seria deixada na Corte, mas entre castelos amuralhados. Com base no painel até ao momento trabalhado,

tornou-se coerente articular o aumento dos “potentados do reino” com a

necessidade de convencer a “nobreza” de que a migração para a nova “classe

de proprietários”, na colónia da América, seria vantajosa40

. Um argumento

sedutor avalizava de que seriam reconhecidos dentre os “homens bons” e,

assim visto, a eles seriam reservados os postos de “decisão política”, nas Câmaras municipais. Com certeza, os fidalgos não seriam capazes de abstrair o que representaria essa aventura de cruzar o grande Oceano e, tampouco, o que seria encontrado do outro lado de sua imensidão.

Os dividendos retornaram aos primeiros senhores que ingressaram no sistema açucareiro colonial, em proporções imensamente superiores aos temores que os pudessem ter atormentado. Bastando citar que, noventa por cento de toda a renda obtida com a produção do açúcar era concentrada nas mãos dos proprietários, segundo Furtado (op. cit., p. 51). Por terra, rio, ou mar, na medida em que se ia conhecendo o continente, a suspeita do infinito, deve ter retirado qualquer tipo de possibilidade, ou, até mesmo, de interesse, por compreender o que representava aquela imensidão de terras. No olhar dos fidalgos, sem dúvidas, iria se compondo um desenho dotado de duas funções:

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Essa é a percepção de Caio Prado Júnior a assinalar como estímulo à adesão ao projecto de colonização, a oferta do prestígio advindo do vasto controlo sobre terras e gentes, que não encontrava meios de se expandir na Europa. (op. cit., pp. 22-23).

reconfortar as ansiedades e projectar as ambições. Conforto pelo sucesso de ter alcançado o Novo Mundo, como integrante do “projecto de colonização”. Mas junto ao encanto com a aventura, ao fazerem prospecções sobre a terra, afecto ao plano das mentalidades, as grandes dimensões libertaram o bote sinuoso da ganância, inevitavelmente, em algum momento, reduzida à sua génese, a mesquinharia. Isso se demonstrou fácil de perceber, pois o poder que os senhores de engenho detinham, brotava do controlo sobre as “forças de produção” e, como o empreendimento foi aceito em nome da concentração de bens, em movimento de contradição, aumentava o arco de carências ao redor do poder senhorial. A concentração dos bens materiais, ao invés de partilhar riquezas, alastrava miséria.

Ainda que do ponto de vista económico o processo colonial brasileiro não possuísse configuração feudal, no plano social, o mesmo não se aplicaria.

De fato, é ao redor do senhor de engenho ou do senhor de gado que se agrupam todos aqueles que vivem à sombra de sua Casa-grande: primeiro sua família sobre a qual exerce um poder absoluto, casando os filhos à sua vontade, traindo sem escrúpulos sua mulher, sem se ocultar, com suas amantes de cor; os escravos, que ele pode punir, matar impunemente; seus negros livres, condutores de carros-de- bois, marceneiros, ferreiros, tropeiros que conduzem o gado do sertão ao litoral, feitores vigiando os cortadores de cana, os limpadores de açúcar, etc. Também os “brancos pobres”, pequenos proprietários que são obrigados a levar suas colheitas ao engenho do senhor; camponeses a quem ele dá permissão de, em troca de alguns dias de trabalho construir na sua propriedade sua casa, fazer um jardim, mas que ele pode despachar impunemente quando bem lhe aprouver, e que se misturam com os índios, perpetuam-se em filhos mestiços (BASTIDE, op. cit., pp. 58-59).

Apesar de conectada com um sistema económico avançado em sua época, os padrões sociais transplantados para os trópicos permaneciam com fortes traços feudais. Bastide nos faz ver inclusive, como nexo capilar da

propriedade, que o senhor de engenho seleccionaria dentre as “suas gentes”,

os mais qualificados para integrar um “núcleo militar” a serviço da Casa-

grande. Além de fazerem com que a vontade do senhor fosse cumprida nos limites de sua propriedade, como lei, atendiam ao apetite por terras, pulsação estimulada diante da sensação de inexistência de obstáculos para o seu poder patriarcal. Mas o desejo de uns se chocaria os dos outros, movidos pelo mesmo sentimento. Mas conflitos, alguns sangrentos, entre membros da classe senhorial e seus agregados, não eram motivados, apenas pela disputa pela posse de terras, mas, igualmente, como fruto do choque entre os exercícios de mando dos diferentes proprietários.

O fenómeno da mestiçagem, se pôde perceber, obedecia a um claro recorte de classes, sendo possível entre os brancos desprovidos de posses. Os filhos mestiços, por vezes bastardos, e os nativos aprisionados nos domínios

coloniais, engrossavam a classe de desfavorecidos. Para os colonos, a assimilação dos processos de produção dos povos originários, de forma alguma indicava reconhecimento ao valor dos homens e mulheres que já se encontravam na terra, antes da chegada dos colonizadores.

A horta ou a chácara, o pomar, foram abandonados para serem substituídos por grandes plantações de cana-de-açúcar, o que ainda os forçou a modificar seus antigos métodos de produção, sua agricultura tradicional para aceitar a dos indígenas, o desbravamento da floresta e a cultura itinerante entre as queimadas. Tudo isso não ultrapassa certamente o campo da ergologia; os empréstimos são mais materiais que sociais e são impostos menos pelo índio enquanto índio que pelas necessidades do meio, do clima, necessidades às quais o índio soube dar condições que na prática provaram ser eficazes, melhores que as técnicas ou os objectos transportados do outro lado do Atlântico (BASTIDE, op. cit., p. 56)

Além da disputa entre senhores, o sistema de agregação social ao redor do detentor das terras, tenderia a exercer mutações nos valores tradicionalmente portugueses, em especial entre os mais carenciados, que estavam a perder “seu rico folclore, seus grupos de vizinhança, seus bens comunitários, seus hábitos de ajuda recíproca e de cooperação vicinal, sua solidariedade em torno da igreja paroquial” (op. cit., p. 57).

Por evidência, era urgente que o reino tomasse providências para

controlar a herança de “mal hábitos” que os fidalgos haviam levado consigo

para as terras brasileiras, assim como, a desagregação social generalizada. Do ponto de vista administrativo, enviaram representantes régios para integrarem a Câmara dos “homens bons” e controlar os interesses da Coroa no que tange à arrecadação dos impostos e à organização da defesa. No entanto, a fragmentação da sociedade “transplantada” para o Brasil, exigia recurso eficaz de aglutinação e preservação dos valores europeus, papel, esse, que caberia à religião e, particularmente, aos jesuítas.

A primeira tentativa de resgatar valores assemelhados à solidariedade portuguesa passou por revestir a imagem do senhor de engenho com um verniz benevolente, dando azo ao “compadrio”. A oferta de benesses entre os agregados, muitas das vezes, esteve associada aos ritos religiosos, como baptismo, casamento e participação nos festejos. Em sua contra face, o “compadrio” fortalecia os laços de dependência, pois estabelecia como moeda de troca, a “dívida em favores”41. Para ser percebido como “bom cristão”, o patriarca mandava erigir uma capela, incrustada em algum ponto dentro do perímetro da grande fazenda. O momento auge desse espaço, enquanto lugar

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Os privilégios, autoritarismo e hipocrisia moral perduraram por muito tempo entre a cultura dos latifundiários, apresentados com maestria por Jorge Amado, em “Gabriela, cravo e canela” (1958). Celso Furtado igualmente trata da relação entre o prestígio político conquistado pelos senhores de terra como reflexo do quadro de dependência dos “não proprietários”.

de “performance ritual”, era atingido com o espectáculo da missa. Surge um novo foco de atenção das autoridades reais, visto que a liturgia era conduzida por capelães, algo que sugere leigos, sob tutela do patriarca, logo, sem vínculos enraizados com a estrutura da Igreja.

Posso inferir do texto que, um elemento que deve ter auxiliado para que

a presença da ordem fosse aceita nos “territórios patriarcais” nordestinos

residia na reconhecida eficácia da acção dos missionários nas áreas da

educação e da catequese. Para a mente senhorial, o sinónimo de “bons

padres” era “bons convencedores”, peça útil na preservação da essência do “obedecer”. A outra mais-valia representava o contacto directo com homens altamente qualificados para transmitir, aos filhos do proprietário, a educação

europeia42. Os saberes do Velho Mundo seriam considerados úteis, por

contribuírem para preservar a distinção entre os “bons homens” e os “homens

de cor”.

De um ponto de vista tomado a partir daquilo que se pôde documentar sobre os negros, Bastide apontou a direcção para compreender o lugar dos padres jesuítas entre os brancos. A missionação se tornara necessária para

manter os elos culturais entre Brasil e Portugal, pois afinal, “uma herança que

não se renova por um contacto directo com suas fontes de inspiração corre a

longo prazo o risco de se empobrecer”43. Nesse cenário, surgia a necessidade

de se recorrer às ordens religiosas, em resposta ao qual, o rei, se considerarmos o período dos eventos, designou a Companhia de Jesus,

tomada como o mais confiável “canal de ligação ente a Europa e a América”

(BASTIDE, op. cit., p. 61).

Aqui recuperamos a contribuição de Cafezeiro e Gadelha, a pista deixada diante dos olhos, voltada para o ambiente social. Visto com maior atenção, a posição na hierarquia da sociedade colonial demonstrou que seria erróneo acreditar que o silêncio fora imposto apenas com base nos lugares de origem, pois transversalmente foi a condição social que determinou a mudez.

Voltando a atenção para os acontecimentos no terreno, já tinha relatado episódios de dificuldades na acção missionária junto aos colonos, fossem eles degredados, ou não, sendo que, como centro da produção económica, a maior concentração de europeus fora observada no território ocupado pelo sistema açucareiro. Com relação aos primeiros colonos, a maior parte das queixas dos Governadores e padres, dizia respeito ao comportamento moral, e só muito

42 “Esse sentimento variará segundo as regiões, será menor em São Paulo […] que nos

engenhos do Nordeste, por ser a população de S. Paulo mais plebeia, menos rica e mais móvel que a dos nobres, proprietários de vastos latifúndios da Bahia e de Pernambuco. A civilização paulista isolada do oceano pela Serra do Mar e, por conseguinte, mais independente daquela metrópole, mestiçar-se-á em maior grau: a do Nordeste será mais orgulhosamente lusitana” (BASTIDE, op. cit., p. 61).

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depois começam a surgir reclamações dirigidas pelos colonos contra as propriedades jesuíticas e a protecção aos nativos. Os jesuítas encontravam portugueses cujo baixo nível de instrução e condição social eram semelhantes àqueles que possuíam no reino. Foi preciso aqui separar o trabalho nas aldeias e nos povoados e vilas. É muito provável ter ocorrido aos padres da ordem que a actuação nas “terras de branco” ofereceria alguma liberdade adicional para o desenvolvimento do projecto intercultural entre os nativos.

Reorientar as condutas na colónia exigia métodos de missionação específicos para aqueles fiéis, sobretudo a considerar que, a medida em que crescia a “grande lavoura”, o trabalho passava a ser desenvolvido sob os olhos atentos do senhor da Casa-grande, portanto, nenhuma estratégia poderia estar muito distante das expectativas do patriarca. Por óbvio, logo, promover espaços de solidariedade entre os colonos, deveria contribuir para a preservação da centralidade política dos patriarcas, aos moldes do “compadrio”. Os olhos e ouvidos do grande proprietário queriam ver e ouvir a docilidade dos fiéis, a agradecerem por serem pobres, mas com a “graça do senhor”, na prática, muito mais da terra, do que do céu. Mas a subserviência não era capaz de ocultar a prova material da riqueza e dos privilégios acumulados por poucos indivíduos. O espectáculo da missa precisava ter momentos próprios para alargar-se além dos pórticos da basílica. Era necessária a festa.

Não haveria como não trazer para reflexão, o lugar da festa popular na cultura desde os períodos medieval e renascentista, desenvolvida por Bakhtin (1987). A própria Igreja Católica, mesmo em seus momentos de maior austeridade, compreendia a importância em oferecer válvulas de escape, para as agruras cotidianas. Bastide lembrava que o culto aos santos, comum no período medieval, foi resgatado na fase do “compadrio”, quando a família prestava homenagens ao seu santo padroeiro (BASTIDE, op. cit., p. 60) e, como é sabido, aspectos da vida dos santos integravam o repertório dos autos

de Anchieta44. Ao longo de dois séculos, as expedições jesuítas foram

responsáveis pela formação dos núcleos coloniais ao redor do tripé arquitectónico constituído por Igreja, Convento e Colégio, modelo levado a pontos longínquos do território, desde a Amazónia até o extremo sul do país, hoje Rio Grande do Sul.

Nos momentos da confissão, no deslocamento para o colégio e nos dias de missa, os colonos saiam do isolamento, a reunirem-se para que a Europa renascesse em seus corações. Nos dias de missa ou de festa, a frente da igreja se constituía em lugar de fluxo e de trocas de toda a espécie, desde o escoamento dos eventuais excedentes de produção doméstica, como de

44 Maria José Palla (2003) desenvolve uma análise da “pulha” no Auto Pastoril Português, composto por Gil Vicente e representado para D. João III, em Évora, por ocasião das festividades natalícias, em 1523.