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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.7 O uso do termo “erro ortográfico”

As discussões à cerca do termo “erro ortográfico” têm tido um campo fértil entre os estudiosos da língua. Antes de adentrarmos no mérito da questão, centrando-nos no cerne da ortografia, é mister fazermos algumas considerações sobre outras terminologias que também vêm sendo fruto de embates.

Os linguistas modernos têm sido enfáticos no combate às concepções que sinonimizam, que entendem os termos “língua” e “gramática normativa” como sendo a mesma coisa. Antunes (2007, p. 39) aponta que:

A CONEPÇÃO de que língua e gramática são uma coisa só, deriva do fato de, ingenuamente, se acreditar que a língua é constituída de um único componente: a gramática. Por essa ótica, saber uma língua equivale a saber, sua gramática; ou, por outro lado, saber a gramática de uma língua equivale a dominar totalmente essa língua.

Essa sinonímia entre língua e gramática normativa tem sido fonte de preconceito linguístico. Bagno (2011, p.19) elucida que “o preconceito linguístico está ligado, em boa medida à confusão que foi criada, no curso da história, entre língua e gramatica”. O autor completa que em nossa sociedade atual temos lutado para combater todos os tipos de preconceito, porém não tem acontecido o mesmo empenho quando a intolerância, a discriminação é linguística. Sobre isso, esse autor fala que:

Infelizmente, porém, esse combate tão necessário não tem atingido um tipo de preconceito muito comum na nossa sociedade brasileira: o preconceito linguístico. Muito pelo contrario, o que vemos é esse preconceito ser alimentado diariamente em programas de televisão e rádio, em colunas de jornal e revista, em livros e manais que pretendem ensinar o que é ‘certo’ e o que ‘é errado’, sem falar, claro, nos instrumentos tradicionais de ensino da língua: as gramáticas normativas e boa parte dos livros didáticos disponíveis no mercado (BAGNO, 2011, p. 23).

A noção do “certo” e “errado” é, segundo Neves (2013), uma “herança da tradição gramatical do Ocidente” que temendo a ameaça da fala dos “bárbaros”, os gregos criaram manuais de gramática para conservar o tido como “belo”, ou seja, resgataram durante o período helenístico a linguagem dos renomados escritores gregos, como Homero. Portanto,

[...] surgiram os manuais de gramática, não como ciência, mas como técnica e arte: a partir das obras modelares compunham-se, expunham-se (e impunham-se) os paradigmas, entendidos como os padrões que explicavam em que consistia a ‘pureza’ e a ‘regularidade’ daquela língua que urgia defender e conservar (NEVES, 2013, p. 56-57).

Percebemos que a seleção dos itens que iriam compor esses manuais não abarcou toda a variedade linguística existente no grego da época, assim usaram somente os moldes dos grandes intelectuais gregos, em outras palavras:

Diante de toda essa diversidade, eles concentraram seus esforços na direção do estabelecimento e do cultivo de um ideal de língua, isto é, de um determinado conjunto de fatos de linguagem tidos como corretos. E a referencia para esse ideal era precisamente a língua como se encontrava nos grandes escritores (FARACO, 2008, p. 135).

Daí em diante, as noções do “certo” e do “errado”, com base em modelos e concepções resultantes de construto sociopolítico e cultural, estenderam-se até os dias de hoje. Porém, linguistas modernos têm se debruçado sobre os estudos da linguagem, defendendo um ensino mais cientifico, tentando desconstruir essa concepção de erro na língua e mostrar que

A principal (e pior) consequência do elitismo e do caráter não cientifico da Gramatica Tradicional foi o surgimento da noção folclórica de ‘erro’. Como já vimos, tudo o que não estivesse de acordo com a régua da GT, tudo o que escapasse de seu sapatinho de cristal, era considerado ‘errado’, ‘feio’ , ‘estropiado’, ‘deselegante’ etc. O grande problema com essa noção ultrapassada é que, como os estudos linguísticos modernos têm revelado, simplesmente não existe erro em língua (BAGNO, 2001 p. 25).

Assim, perante essas questões, concordamos com o autor acima sobre “o não existir erro em língua”, já que sendo fonte de construção histórica e não ligado diretamente às questões inerentes ao funcionamento da língua, todo e qualquer enunciado, sendo compreendido, será perfeitamente tomado como correto. Já que “quando se trata de língua, só se pode qualificar de erro aquilo que comprometa a comunicação entre os interlocutores” como nos dar conta Bagno (2001, p. 26).

Para ratificar as questões acima, usamos as afirmativas de Cagliari (2009b, p. 30-31) sobre essa noção de “erro” em Língua Portuguesa:

“A Língua Portuguesa, como qualquer língua, tem o certo e o errado somente em relação à sua estrutura. Com relação a seu uso pelas comunidades falantes, não existe o certo e o errado linguisticamente, mas diferente. Por exemplo, um falante do português dizer ‘Carta eu longa escrevi uma’ em vez de ‘Eu escrevi uma longa carta’ é um erro, porque o sistema da língua não permite que as palavras fiquem nessa ordem”.

Ditas essas questões primárias a respeito do conceito de “erro” em Língua Portuguesa, entremos então no ramo mais específico da ortografia que, como já vimos, é fonte de acordo

social, uma convenção social, em determinado período. Assim, como a noção de gramática normativa, que também compreendemos como um construto social, concordamos com Bagno (2001, p. 28) quando afirma que “erro de ortografia não é erro de português”, pois tendo sido criada para facilitar a leitura ao padronizar diversos falares da gama de variações que existem no idioma, não representa naturalmente a língua, já que é heterogênea. Segundo o mesmo autor, o que as pessoas geralmente nomeiam de “erro de português” são apenas transgressões daquilo que se convencionou socialmente por meio de acordo.

Neste trabalho, usamos a palavra “erro”, levando em conta a ideia do supracitado autor sobre a “noção de erro”, que além do mais nos alerta como nós professores de Língua Portuguesa devemos agir diante dessas questões de “certo” ou “errado”. Ele pontua sobre a questão, dizendo que

[...] é importante um professor está sempre consciente de que o aluno que comete desvios de ortografia não está cometendo ‘erros de português’. O aprendizado da ortografia exige exercício, memorização, treinamento – é uma competência que tem que ser aprendida, ao contrário de outras competências que são adquiridas naturalmente. (BAGNO, 2001, p. 30).

Acreditamos que, após esses esclarecimentos, nós professores de Língua Portuguesa temos que tratar a “noção de erro” não como um problema do usuário em não saber utilizar a língua, temos que ter a consciência de nosso papel como professores e principalmente como cidadão na busca de evitar o chamado preconceito linguístico. Cagliari (2009b, p. 29), falando sobre o papel do professor, afirma que “sem uma base linguística verdadeira, as pessoas envolvidas em questões de ensino de português acabam ou acatando velhas e erradas tradições de ou se apoiando explícita ou implicitamente em concepções inadequadas de linguagem”.

Cientes disso, retirando todo e qualquer uso da palavra ‘erro’ com alguma acepção preconceituosa e taxativa, tratamos esse termo, concordando com Morais (2003, p. 17) que diz:

Se sou favorável a toda pedagogia que persiga essas boas intenções, lembro que não é substituindo a expressão ‘erros’ por ‘variações’ ou ‘hipóteses’ (ou qualquer alteração similar) que alteramos substancialmente o quadro do ensino-aprendizagem da ortografia. Para dominar o objeto, o sujeito precisará ‘reproduzir’ as formas escritas autorizadas’, isto é, nunca estará liberado para construir o que quiser, praticar as variações que desejar. Se vier a fazê-lo conscientemente, criando transgressões intencionais como os escritores profissionais, é porque terá desenvolvido um nível bastante consciente das restrições da norma. Saberá errar a propósito porque tem muita clareza do que é certo.

Sem deixar de reconhecer a importância de determinadas nomenclaturas na busca da desconstrução de certos paradigmas, pensamos que o fazer pedagógico é muito mais importante do que esses problemas terminológicos; trabalhamos com termos como “erro de ortografia”, “erros ortográficos” no sentido que já vimos, de desvio da ortografia oficial, aquela que é convencionada, no caso da Língua Portuguesa, pelo Decreto Presidencial nº 6.583, de 29 de setembro de 2008.

Os próprios linguistas modernos, apesar de combaterem o preconceito linguístico, de defenderem cientificamente o ensino de língua materna com base na diversidade linguística e sem privilegiar variante A ou B, “não podem desprezar o fato de que, como bem simbólico, existe sim uma demanda social por essa ‘língua certa’, identificada como instrumento que permite acesso ao circulo dos poderosos, dos que gozam de prestigio na sociedade” (BAGNO, 2007, p. 79-80). E, sendo a ortografia, parte da “norma-culta”, o usuário tem que dominar sim, nas situações que se fizeram necessárias, essa convenção.

Em sentido pedagógico, usamos os termos no sentido de erros construtivos, pois revelam pistas do que o aprendiz já sabe e as hipóteses que usa para chegar ao certo, pois nas palavras de Cagliari (2009a, p. 244), “erros de ortografia relacionam-se com as hipóteses que alunos levantam sobre a escrita, apenas isso” e que podem ser tratados com suporte, base inicial para se chegar a escrita ortográfica.

Por tudo isso, reconhecendo e respeitando a diversidade linguística, o combate a certas atitudes preconceituosas (inclusive linguisticamente falando), quanto à noção de “erro de ortografia”, assumimos uma nomenclatura embasada em princípios mais pedagógicos e coadunada com os principais teóricos que embasam nossa pesquisa como Morais (2006), Cagliari (2009a), Zorzi (1998) e Oliveira (2005) e, assim, usamos os termos erros, erro de escrita, erros de ortografia, erros ortográficos neste trabalho sem grifos.